Googlistão, ou uma fábula sobre o totalitarismo virtual


Era uma vez num país distante um programador chamado Snowden, que revelou todos os segredos escondidos da NSA. Não, não posso começar assim meu conto. A realidade fantástica do Googlespy já constitui um tipo de literatura muito comum nos jornais. Então começarei meu conto de maneira um pouco diferente. Não sei porém como tudo isto irá acabar.

 

O facho de luz amarelo segue lentamente fazendo a varredura das ruas à minha frente. De quando em vez o mesmo para e se torna azul e murmura algo que não posso escutar. Quando a luz toca algo diferente ela fica vermelha, para e começa a apitar até que os agentes de segurança do Googlestado atendam a ocorrência. Depois ela segue em frente. Vou fazendo meu caminho de maneira a não ser lucificado.

 

Não faz muito tempo que esta novidade foi apresentada ao publico. Antes dela porém começaram a funcionar os Googlescolas. Coloridas e aparentemente inofensivas, as mesmas foram concebidas como centros de ensino altamente especializados para garotos com QI acima da média. O meu era baixo, mas suficientemente elevado para ficar longe daquelas instituições privadas.

 

As Googlescolas eram construídas sempre em frente ao Fórum da cidade. Os prédios tinham sempre o mesmo formato arquitetonico. Fachada de vidro, dez andares de altura, vinte metros de frente e cinqüenta da frente aos fundos. O volume perfeito e monótono, perfeitamente liso só tinha uma entrada na frente e uma saída de serviço nos fundos. A Googlescola geralmente era levantada no centro de um quarteirão em que todos as demais construções eram derrubadas para ser visto por todos os transeuntes das quatro ruas adjacentes.

 

Os painéis que compunham a fachada do prédio na verdade não eram de vidro. No dia da inauguração, os quadro lados do prédio eram ligados ao sistema central e revelavam ser o que de fato eram: imensa telas OLED interativas. Tudo que a Googlescola quisesse que a comunidade soubesse sobre algo era estampado no painel tocado pelo interessado, mas ninguém poderia usar toda a fachada do prédio como seu mural. Apenas o sistema escolhia o que merecia ser visto com destaque e decidia quanto tempo a mensagem seria divulgada. O grande CEO também escolhia, aleatoriamente dizia a propaganda do sistema, que mensagens eram dignas de serem vistas na totalidade da fachada do prédio. Entre uma mensagem e outra, o prédio voltava a ser digitalmente pintado com as cores da empresa e a mostrar o logotipo da mesma sob uma foto tridimenssional do grande CEO.

 

Ninguém sabe o que ocorria dentro das Googlescolas. O contrato de adesão impedia aos Googleleitos revelar qualquer coisa sobre o sistema de aprendizado, rotina de ensino e equipamentos que haviam dentro do prédio. A passagem para dentro da Googlescola era só de ida e conferia grande prestígio social aos escolhidos. Mas curiosamente eles rapidamente preferiam se isolar de suas comunidades, preferindo viver em grupos de Googleitos quando estavam fora da instituição. O isolamento se tornava completo quando as outras pessoas passavam a encarar os Googleitos como uma elite que merecia ser segregada porque procurara se distanciar.

 

Quando as Googlescolas já haviam sido instaladas em todas as cidades, o sistema foi atualizado. Vi a novidade ser anunciada na fachada da que existia na minha cidade natal. O grande CEO informava a todos que a partir daquela noite um Googlespectro passaria a mapear as ruas das cidades informando o sistema de tudo quanto o sistema necessitasse saber. Na noite do lançamento da novidade, os Googleleitos da minha cidade realizaram uma cerimônia estranha cuja simbologia não me passou desapercebido.

 

Reunidos na frente da Googlescola, os Googleleitos deram as costas para o Fórum deixando um espaço no centro deles. Então, do alto do prédio da Googlescola um faixo de raio laser projetou uma deusa da justiça na fachada do Fórum. Alguns segundos depois, a imagem ganhou vida e veio caminhando até onde estavam os Googleitos. Eles a envolveram e a mesma desapareceu quando eles reentraram no prédio. “Esta Googlidade foi consagrada” foi a mensagem mostrada na fachada interativa da Googlescola sob uma foto do grande CEO. A justiça tinha um novo lar, foi o que conclui. Meu QI reduzido, porém, não me permitiu compreender a profundidade do que estava para ocorrer.

 

Algum tempo depois, o Googlespectro ganhou forma no alto do prédio, desceu pelas paredes se destacou da construção e passou a vagar pelas ruas. Ele tinha o formato de um homem, mas era apenas um scanner ligado ao prédio por um fio de luz que parecia um laser. O Googlespectro varria tudo e todos, nunca parava. Quem fosse por ele lucificado, trespassado, sentia um formigamento. Dias depois, passava a defender a Googlescola mesmo que antes não gostasse muito dela.

 

Instintivamente, porém, algumas pessoas passaram a evitar o Googlespectro. É coisa do demônio, diziam os evangélicos. A justiça não pode ser distribuída por uma empresa, afirmavam os socialistas. Esta novidade não foi prescrita pelo Papa como sacramento da Igreja Católica, vociferavam os católicos. Os espíritas ficaram divididos, alguns aceitavam a Googlificação como uma nova benção outros a rejeitavam como uma maldição. Todos os que não desejavam ser lucificados, porém, ficavam em casa à noite. Os mais ousados seguiam tendo uma vida noturna, tomando cuidado para se desviar do Googlespectro.

 

Os bêbados e os drogados quase sempre eram lucificados sem saber quando perambulavam de volta para casa. Os mendigos eram scanneados quando estavam dormindo. Eles foram os primeiros a desaparecer, mas ninguém ficou sabendo como isto ocorreu. “O Googlespectro está devorando gente” noticiou um jornal. No dia seguinte a noticia alarmante havia parado de circular, pois a empresa de comunicação foi comprado e passará a ser administrada por um Googleleito.

 

Certa feita uma Googlescola e seu Googlespectro foram denunciados na Delegacia e no Fórum. Alguns dias depois os processos foram arquivados, pois o grande CEO tinha um imenso poder de persuasão e as autoridades quase sempre gostavam de ser persuadidas por um preço justo. Na entrevista que deu ao jornal local o Juiz encarregado do caso disse que espectros não podiam cometer crimes, nem tinham personalidade jurídica para que pudessem ser responsabilizados pelos seus atos. Disse também que as Googlescolas eram uma benção privada que o Estado, tão carente de boas escolas, não deveria nem poderia controlar.

 

Foi então que surgiu a resistência e que a guerra realmente começou. Informado, o sistema atualizou o Googlespecto. Doravante, toda a noite ele varria as ruas ainda mais rápido. Quando cruzava alguém considerado inofensivo, a luz amarela ficava azul modulava algo que parecia ser a palavra “autorizado” e seguia adiante. Os suspeitos e procurados faziam o Googlespectro ficar vermelho e começar a apitar. Os pelotões de choque compostos pelos Googleitos saiam à caça do procurado, que era seguido pelo dedo-duro virtual até que fosse apanhado e eliminado.

 

Não se pode matar um raio de luz sem saber o que o gera, sem conhecer sua fonte ou como o sistema o opera. A única coisa que se sabe sobre o Googlespectro é que ele pode ser mortal mesmo não podendo matar ou ser morto. As Googlescolas as vezes eram atacadas com coquetéis molotov e explosivos. Como o grande CEO já havia privatizado e absorvido a função de arrecadar tributos, os volumes perfeitos perfeitamente iguais eram sempre reconstruídos. Nas cidades onde a resistência era maior, eles brotavam aos pares uma Googlescola dando cobertura à outra. E o processo de sedução dos jovens continuava como se nada tivesse ocorrido.

 

O terrorismo também se atualizava. Mas a cada atentado bem sucedido, o sistema do Googlestado refinava sua capacidade de prevenir e reprimir novos ataques. Os retardados e doentes mentais começaram a desaparecer. O QI deles era considerado perigosamente incerto, inexato, impossível de ser logicamente medido pelo Googlespectro. Tudo que fosse instável desagravada aos responsáveis pela Googleficação social. O sistema só conseguia reconhecer dois padrões bem distintos: os submissos e aceitos, os rebeldes e elimináveis. Bem e mal eram novamente a raiz da única equação e, portanto, a fonte do problema. Apesar de toda sofisticação, o Googlistão era o maniqueísmo programado em ação.

 

Ficarmos vivos uma noite após a outra é só o que podemos fazer. Em algum momento o sistema todo entrará em colapso. Quando isto ocorrer alguns serão perdoados, outros não.

 

 
Fábio de Oliveira Ribeiro

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