Haddad e a Bertoleza

Esqueça o que aprendeu sobre cortiços no livro clássico de Aluísio de Azevedo. Em pleno Século XXI, o cortiço que João Romão ergueu ajudado pela escrava Bertoleza em Botafogo, no Rio de Janeiro, no século XIX, seria um luxo perto dos cortiços que ainda existem há poucos quarteirões do Centro paulistano.

 Há mais de século e meio a Baixada do Glicério é a periferia da cidade. Antes mesmo de existirem indústrias, o Rio Tamanduateí já recebia o esgoto, os resíduos dos matadouros e curtumes e ficava sujo demais para que as lavadeiras o utilizassem em seu trabalho.

 Em parte pela insalubridade real, provocada por ser uma área de várzea sujeita às inundações e, em parte pela insalubridade fictícia, derivada da superstição que as áreas baixas produziam miasmas causadores de doenças, a baixada não se beneficiou de nenhum dos surtos de progresso que atingiu a cidade. Há poucas quadras das movimentadas estações Sé e Liberdade do metrô, continuam sobrevivendo cortiços muito semelhantes aos que lá existiam há 50 ou mesmo há cem anos, mais abarrotados de gente e muito mais caros.

 Na Bela Vista, o tradicional bairro do Bixiga, que cresceu nas primeiras décadas do século passado tornando-se o bairro dos imigrantes calabreses que buscavam trabalhos nas fábricas e na construção civil, outro tanto de velhos casarões foi se transformando em cortiços, gerando outra periferia em pleno coração do Centro, entre a Sé a rica região do espigão da Paulista.

Estas duas regiões reuniam, em 2011, segundo levantamento do Plano Municipal de Habitação, mais de 11 mil famílias residindo em cubículos infectos, com alugueis chegando a R$ 600 ou R$ 700, com um ou dois banheiros para atender algumas dezenas de famílias.

Entender o que leva estas famílias a viver nestas condições é essencial para compreender porque a habitação é um dos principais problemas da cidade. As pessoas moram lá, em primeiro lugar, pela proximidade com o emprego e a maior facilidade de obter mais renda com um trabalho informal.

Como a maior parte dos empregos e oportunidades estão na região central, faz mais sentido pagar por um cubículo o que se pagaria por uma casa de dois ou três cômodos na periferia, onde se levaria de duas a três horas diárias para chegar ao emprego em um transporte coletivo lotado.

 As condições indignas e insalubres destas 11 mil famílias que moram em cortiços na Bela Vista ou no Glicério poderiam ser sanadas sem nenhum investimento monstruoso. Segundo os estudos realizados pelo Plano Municipal de Habitação em 2011, seria preciso investir, ao longo de 16 anos de aplicação do plano, R$ 190 milhões, sendo 150 milhões nos primeiros quatro anos, R$ 30 milhões no segundo e o restante diluído ao longo do tempo, inclusive já contando com os pagamentos produzidos pelo investimento original. O investimento médio por unidade seria de cerca de R$ 33 mil e a quantidade de área necessária seria de menos de 60 mil metros quadrados para uma quota parte de 35 m2.

Para se ter uma ideia da ordem de grandeza destes números, os valores disponíveis para investimento nas três esferas de governo em habitação para a cidade de São Paulo é de R$ 1,5 bilhão. Além disso, existem hoje no Centro de São Paulo cerca de 4 milhões de metros quadrados construídos e ociosos, que poderiam ser  transformados em habitação social.  

Tais números mostram que longe de ser algum projeto utópico, a erradicação dos cortiços do Centro e a produção de unidades de moradia dignas para estas famílias é uma proposta perfeitamente plausível e realizável por um governo que realmente leve a sério a redução do déficit habitacional e as questões de mobilidade.

Ano passado, o governo de Fernando Haddad destinou à rubrica de requalificação de cortiços o valor simbólico de mil reais. Mais do que isto, fez com que a sua bancada rejeitasse emenda que apresentei elevando o valor para R$ 32 milhões. É quase certo que reproduzirá o deboche no orçamento do próximo ano.

Nem o João Romão de Aluísio de Azevedo poderia contar com a ajuda de tal Bertoleza para continuar a expandir seu cortiço tanto quanto esta oferecida pro Haddad. Mas o prefeito talvez devesse ler o romance para descobrir o que acontece com quem se alia aos “João Romão”.
 

Redação

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