MANIFESTO SLOW-READING:PRECISAMOS FALAR DE MEDITAÇÃO, AUTOCONHECIMENTO E CULTURA DE PAZ

 

Por Natália Albuquerque, em seu Facebook:
 

MANIFESTO SLOW-READING: PRECISAMOS FALAR DE MEDITAÇÃO, AUTOCONHECIMENTO E CULTURA DE PAZ
ou 
SOBRE COMO FIQUEI 9 DIAS SEM FALAR, SENTADA 10 HORAS POR DIA MEDITENTANDO E NÃO SURTEI (OU PIOR, CURTI!)

(em época de twitter e informações restritas a manchetes no WhatsApp, me permiti escrever sem censura, o quanto foi preciso – um bocado – então se quiserem se aventurar, estejam convidados, se acomodem confortavelmente, peguem um chazinho, que o papo pode ser interessante…)

Nos últimos 2-3 anos venho buscando experiências terapêuticas diversas, da programação neurolinguística (PNL) ao eneagrama e à Gestalt. E nesse caminho a minha neurose foi se tornando cada vez mais evidente. Fui percebendo como funciona meu ego, como ocorre a insatisfação/sofrimento na minha vida e como eu busco desenfreadamente preencher um vazio existencial que na verdade não se consegue preencher (como todo típico ser humano neurótico). A conclusão dessas experiências foi que é melhor aprender a lidar com o vazio existencial do que tentar preenchê-lo. E foi assim que eu resolvi seguir adiante no caminho da meditação, já havia dado uns passos tímidos e percebido algum benefício, então quem sabe se seguindo nesse caminho eu não aprendo alguma coisa a mais para lidar com esse tal de vazio? Resolvi fazer um retiro de 10 dias de meditação Vipassana. São praticamente dez dias sem falar, sem se comunicar com as outras pessoas, nem com o olhar, sem o celular (obviamente), meditando de 4:30h da manhã até às 21h. E é sobre essa experiência e as reflexões que me vieram disso tudo que quero falar. Mas preciso explicar rapidamente (nem tanto) sobre o que é Vipassana, afinal.

Diz-se que a tradução da palavra Vipassana seria algo do tipo “ver a realidade como ela é” e que foi Sidarta Gautama, o Buda, que a criou, sentadinho embaixo da árvore, quando se iluminou. Diz que a intenção dele era a de esmiuçar como a lei da natureza e o sofrimento funcionam para entender como se libertar disso. Dhamma (em páli, ou Dharma em sânscrito) é o nome que se dá à lei da natureza. Ela é formada por 3 aspectos: sîla, sammādhi e paññā. Sîla seria o viver sem causar dano aos outros (e a si mesmo) e fazer o bem, sammādhi fala do aspecto de controle da mente, a concentração, e paññā o desenvolvimento da sabedoria interior, de perceber que a natureza da vida é impermanente, que a vida como a levamos gera muito apego e portanto sofrimento e que na verdade somos todos um, interligados, que o paradigma da vida vai além do “eu” e do “outro”…

É importante deixar bem claro nesse ponto que isso tudo que estou dizendo e irei dizer foi basicamente o que assimilei de toda a experiência e das palestras que são dadas no retiro (pesquisei uma ou outra coisa), e não uma revisão teórica sobre a técnica, então perdoem os erros de conceito e escrita. Deixarei alguns links interessantes nos comentários. Sigamos.

Pois então, Dhamma não era novidade para nenhum sábio da época de Buda, sabia-se que esse era o caminho: levar um modo de vida correto e dominar a mente para alcançar a sabedoria e se libertar do sofrimento. Mas via que as pessoas não conseguiam atingir a verdadeira sabedoria porque existiam apenas 2 tipos: a sabedoria assimilada de fora, ouvida, lida (palestras, escrituras, etc) e a sabedoria intelectual, de compreender algo teoricamente. Vipassana foi a ferramenta que ele criou para a adquirirmos a sabedoria experimental, pela vivência. Diz-se que ele dizia para não aceitarmos nada cegamente, para avaliarmos e experimentarmos. Se racionalmente algo parecer lógico, saudável, do bem, se não houver nada que possa ser censurável ou que possa causar dano, bom, então vale a pena experimentar! E foi o que ele fez, sentou embaixo da árvore e foi investigar e experimentar a fundo a estrutura do sofrimento.

O cara no mínimo era um bom pesquisador, além de saber muita PNL. O modelo que ele mapeou da interação mundo-mente-corpo é muito lógico. Ele sacou de mente inconsciente, de átomos, elétrons, energia em movimento e tudo mais com uma sentada. Rs. Partiu de um princípio básico da natureza: a lei da ação e reação, causa e efeito. Verificou que os tipos de ações que existem podem ser físicas, verbais e mentais. Podemos, por exemplo, ser insultados e então bater na pessoa, xingar ou somente ficar pensando “que ódio que eu tô de fulano!!!”. É tudo ação (ou melhor, reação). E a gente fica achando que se controlar as reações físicas e verbais então tá de boa, mas a reação mental na verdade é a que mais importa, pois é nela que a coisa cresce e se reproduz, no pensamento, na intenção, no inconsciente. E de onde vêm as reações? Elas vêm do funcionamento vicioso do ciclo da interação mundo-mente-corpo.

A mente tem 4 aspectos básicos: a CONSCIÊNCIA, a PERCEPÇÃO, a SENSAÇÃO e a REAÇÃO. Seria assim como se nossos 6 sentidos (os 5 de visão, audição, paladar, tato e olfato, e a mente em si – os pensamentos, imaginação e emoções) captassem o mundo e levassem a informação para a primeira parte, a CONSCIÊNCIA (aqui não necessariamente a informação chega de uma forma “consciente”, como entendemos na psicologia, é mais o input da informação). A informação chega e passa para a próxima parte, a PERCEPÇÃO, essa é quem classifica: ah, isso é som! Hum.. palavras, com essa entonação e volume, etc. O processamento se segue na próxima etapa com a produção de uma SENSAÇÃO. Toda a informação captada pelos sentidos (incluindo a mente) produz uma sensação no corpo. Uma imagem, um som, mas também uma emoção, lembra do friozinho na barriga só de lembrar de alguém?! É exatamente isso. E sensações podem ser agradáveis ou desagradáveis. Sensações por sua vez, geram REAÇÕES: mentais, verbais e físicas.

Toda reação é chamada de sankhāra. Quando temos uma sensação agradável pensamos: hum… que bom! Quero mais! Nasce o desejo, a avidez. Quando temos reações desagradáveis: afff!!! Não quero! Nasce a aversão, a rejeição. Contudo, a vida é cheia de pegadinha e nem sempre acontece o que queremos ou deixa de acontecer o que não queremos. E quando acontece algo desejável, bom, parece que a gente fica com mais sede e quer mais e mais. A avidez cresce. Ah, quero um carro, mas agora quero um mais novo, um dessa marca tal, dois carros, um helicóptero, um avião, enfim, um exemplo bobo, mas já viram onde vai dar. Uma hora não acontece. Da mesma forma que tem coisa que não queremos que aconteça. Por exemplo um relacionamento que acaba, alguém morre, ou adoece, aquela promoção no trabalho não sai. Daí vem o sofrimento. Do desejo e da aversão, mas principalmente do apego. O apego se forma a partir de pequenas reações mentais inconscientes que se formam a partir de desejos e de aversões passageiras. Quando as reações se repetem vão se intensificando de momento a momento, se fortalecem e formam reações mentais, verbais e físicas poderosas, fixações, sankhāras profundos, não mais somente sankhāras passageiros. E então seguimos reagindo e atuamos no mundo a partir de nossas fixações e recebemos as reações do mundo através do input sensorial que expliquei lá no início, da CONSCIÊNCIA, e o ciclo se recomeça, um ciclo sem fim…

Então Buda olhou para essa estrutura toda e pensou: onde podemos cortar esse ciclo vicioso para acabar com o sofrimento? No input da informação? Hum… Não dá né, os sentidos são inerentes à vida. Na reação? Bom, já tentamos né, controlar impulsos de desejo, os pecados, renunciar forçosamente a algumas coisas, auto-flagelação, isso tudo não surte efeito, só produz mais culpa, mais raiva, mais sankhāra, mais reação de rejeição. Bom, parece que uma solução é atuar onde surge o apego, na criação do desejo e da aversão. Ele entendeu que se conseguíssemos somente observar as sensações que surgiam no corpo, no processamento da informação, sem gerar desejo por uma sensação agradável ou aversão por uma sensação desagradável, estaríamos livres das reações! E isso é simplesmente o que se propõe na Vipassana.

A Vipassana que eu aprendi é basicamente: 1) treinar a mente para identificar sensações no corpo (um pinicar, calor, frio, tremor, peso, dor, cócegas, expansão, contração, etc) e manter a atenção nas sensações; 2) desenvolver um olhar equânime, neutro, distanciado, desidentificado com a sensação (sem achar ela boa ou ruim, que é um prazer ou uma aversão), simplesmente olhar para uma sensação de forma científica, só observando como ela ocorre na realidade, naquele exato momento (porque afinal, tudo muda a todo momento).

Diz-se que qualquer coisa que trabalhe a atenção/consciência no presente, na realidade como ela é, e mantenha esse olhar equânime, é Vipassana. Digo isso pois é importante que saibam que existem outras linhas de Vipassana. O objetivo final é de nos levar à percepção, à sabedoria, pela vivência, da lei da impermanência inerente ao universo e à vida, e da ilusão do “eu” (ou do ego) como algo sólido e permanente.

O processo que ocorre quando se consegue manter o olhar equânime para as sensações é que paramos de produzir novas reações, novos sankhāras de aversão ou desejo, e esse próprio ato de parar de produzir novos sankhāras faz com que os antigos venham à tona, à superfície, saiam das profundezas do inconsciente onde se enraizaram e se manifestem como novas sensações no corpo e se desfaçam. Observar sensações é uma das melhores provas da impermanência, de anicca (pronuncia-se “anitcha” e quer dizer mudança). Você disseca uma sensação: “hum… olha, tô sentindo uma dor aqui, parece que lateja também… pinica… vem daqui até aqui, esse pontinho aqui é o que lateja. Hum.. Interessante, vamos ver quanto tempo isso dura.” E segue adiante para outro lugar do corpo (e quando se atenta de novo para o lugar inicial, a dor já passou, anicca…). Ao invés de: “affff!!! Essa dor de novo!! Não aguento mais!”, desviando a atenção e deixando o pensamento embarcar livre na geração de sankhāras. Quando conseguimos evitar esse julgamento e ficamos equânimes, é como se parássemos de carregar a bateria do celular. Se deixar assim por muito tempo, mesmo desligado, a bateria vai se acabando. Precisamos parar de carregar nosso estoque de sankhāra para que os mais profundos venham à tona e se desfaçam e acabem também.

Buda diz que quando nos encontramos livres de sankhāras e alcançamos a sabedoria também na experiência, nos vemos livres do sofrimento, nos iluminamos, alcançamos o nibanna (ou nirvana). Mas a receita não é só essa, precisamos ainda encher os potinhos dos paramis. Explico, paramis são qualidades que devemos cultivar durante a existência para que possamos estar no ponto passível de se iluminar! Rs. São 10 qualidades:
1. dana parami: generosidade
2. sila parami: conduta apropriada
3. nekhamma parami: renúncia
4. panna parami: sabedoria 
5. viriya parami: esforço
6. khanti parami: tolerância
7. sacca parami: honestidade
8. aditthana parami: determinação
9. metta parami: amor gentil, compaixão
10. upekkha parami: equanimidade

Tem coisa ai que já falamos sobre, a própria sabedoria (paññā), a equanimidade (upekkha) e a tal da conduta apropriada (sîla). Dai então entro para a reflexão sobre o retiro de Vipassana de 10 dias e esse formato de se ensinar essa técnica de meditação e o caminho do Dhamma (entenda, nada que falei aqui é ensinando a técnica, não tentem em casa, crianças!!! Se ficaram interessados, façam o curso!).

Alguém aí pode ter notado que existe alguma semelhança de Vipassana e Mindfulness. E tem, mais do que expliquei. Não que eu saiba muito sobre Mindfulness, fiz só um workshop curto e li umas coisas a respeito, mas é bem semelhante. E me atrevo a dizer que Mildfulness é Vipassana nutella, desculpa se eu ofender alguém com essa afirmação, ainda mais só com o superficial que conheço (de ambas as técnicas na verdade, apesar do curso de 10 dias de Vipassana). Mas tem uma coisa importante nessa história de Dhamma que fiquei pensando se a Mindfulness também engloba. O Vipassana é encarado como uma ferramenta parte do Dhamma, então se queremos que a prática de Vipassana tenha algum efeito maior em nossas vidas precisamos das outras partes de Dhamma: de sîla, sammādhi e paññā. E através do caminho do Dhamma, preencher esses potinhos dos paramis. Sem essa noção global toda podemos simplesmente ficar “jogando o jogo das sensações” e não colher todos os benefícios da técnica, ficando “só” (porque isso já é muito na verdade) com o treinamento da atenção, que é o que me parece que o Mindfulness enfoca. Fico pensando se Mindfulness também fala das outras coisas importantes, parece na verdade que foi construída retirando-se essa parte propositadamente para se adequar ao nosso estilo de vida ocidental e para eliminar o que parecia ensinamento religioso/budista… Não sei. Algum leitor pode comentar.

Mas explicando um pouco mais sobre a importância que percebi nessa visão global, no dia em que chegamos no retiro (e eles avisam isso já no site na hora da inscrição), precisamos nos comprometer a fazer 5 coisas durante esses 10 dias: não matar, não roubar, não ter relações sexuais, não mentir e não usar intoxicantes. Isso é uma adaptação de sîla. Sîla é aquela parte do Dhamma que fala de não causar dano a ninguém e fazer o bem. Portanto não matar, faz muito sentido, nem mesmo uma formiguinha, e eles nos mostram como usar um “kit salva insetos” para devolvermos eles à natureza, se toparmos com um bichinho no nosso quarto por exemplo. Espera-se, obviamente, que ninguém roube ninguém! Sobre as relações sexuais, existe uma segregação, homens e mulheres não têm contato durante quase todo o tempo, exceto em meditações em grupo (não que isso evite alguma coisa, até porque Tim Maia tava por fora e vale sim homem com homem e mulher com mulher). Mas enfim, se compromete. Para não mentirmos (e também para ajudar na concentração e no ambiente de meditação), o voto de silêncio. Só no 10⁰ dia é permitido falar. E os intoxicantes, bom, não pode. Nem aquele analgésico básico (basta conversar com a professora e ela libera). Sim, na verdade podemos conversar com duas pessoas, com o professor sobre a meditação e todo o processo, e com a gerente do curso, sobre problemas materiais do dia-a-dia (por exemplo quando se quebra o estrado da cama… é… pois é… rs! Ela foi bem humorada e disse: o sankhāra tá tão pesado assim?! Tá.)

O propósito de criar um ambiente propício ao respeito de sîla tem a finalidade de te ajudar na meditação. O que acontece é que levar uma vida do bem te ajuda a meditar melhor pois te traz menos distrações, gera menos sankhāras. E a própria meditação, no caminho da vida, te ajuda a desfazer alguns sankhāras que por sua vez diminuem desejo e aversão e te ajudam a respeitar sîla. Quando entendi esse processo de um ajuda o outro, fiquei mais tranquila. Cheguei a perguntar à professora: o que acontece se a gente não consegue respeitar sîla na vida lá fora? (pensando em toda a carne que como – vamos falar disso, o álcool que consumo, mentiras que nem percebo que falo, e outras coisas mais…). Ela disse justamente isso, que “a gente segue tentando, uma coisa ajuda a outra”. Não se deve impor uma restrição tão grande que vai lhe causar rejeição e mais sankhāras. A ideia é que você elimine aos poucos seu desejo para atingir um ponto que respeitar sîla não é um sofrimento. E só pra deixar todo mundo ainda mais tranquilo, na vida fora do curso podemos sim ter relações sexuais e ainda respeitar sîla, desde que sejam relações sexuais que não causem dano nem a si nem ao outro. E a questão do álcool e outros tóxicos, bom, é a explicação é porque eles podem te deixar negligente e passível de causar dano a si e a outros (bem lógica, né?!). Ser vegetariano? Na verdade, precisar, não precisa. Desde que você mesmo não tenha matado o boizinho para comer, você não está desrespeitando sîla. Mas de forma indireta você estimula que alguém mate, o que não é legal, e a alimentação vegetariana é mais leve energeticamente e isso te ajuda na meditação. Sim a comida é vegetariana, a última refeição do dia é as 17h, quando comemos só 2 frutas e um chá, mas não, a fome não foi um grande incômodo. Passamos cerca de 10 horas por dia sentados meditando. Temos longos intervalos para café da manhã, almoço e lanche, e pequenos intervalos a cada 1h-1h30min de meditação. Sim, dói. Mesmo com os intervalos. O corpo cansa. Almofadas e mais almofadas, encontrar a posição. Precisei usar uma cadeira de meditação para conseguir progredir (pessoas mais velhas podem meditar em cadeiras mesmo, normais. Dá pra fazer, minha gente!). Alongamentos ajudam, e muito! Mas não se pode fazer yoga lá.

Bom, percebem sobre o quê mais estou falando aqui com todas essas dificuldades que se enfrenta? Sobre paramis, os potinhos: renúncia, esforço, tolerância, determinação. Uma oportunidade ótima de cultivar essas características. Inclusive, depois do 4⁰ dia, quando efetivamente aprendemos Vipassana (nos primeiros 3 dias aprendemos Anapana, uma meditação que é bem Mindfulness, que serve como uma preparação para Vipassana, nos ajuda a concentrar e aprender a identificar as sensações), fazemos 3 sessões de 1h de Vipassana aditthana (com firme determinação), não se pode mexer pernas, braços nem abrir os olhos. Mais um parami. Conseguimos encher de pouquinho a pouquinho, algumas gotinhas, todos os nossos potinhos/paramis fazendo um curso desse. Nessa estrutura toda só ainda não mencionei dois paramis: a generosidade/doação e o amor gentil/compaixão. O curso é na verdade de graça, você recebe acomodações honestas, alimentação saudável, ensinamentos preciosos por 10 dias, em troca de uma doação. Se tiver só 10 reais, e isso que puder contribuir, é isso aí. Se quiser doar muito mais, pode também. Não se exige um valor. Você pode depois voltar e doar com serviço e tempo também. Ir trabalhar num próximo curso desse depois que fizer o primeiro, na cozinha por exemplo (sim, as pessoas voltam!!! Eu também fiquei trucando no primeiro dia, o que??? Voltar?! Nem sei se vou conseguir ficar!! Mas confesso que sai pensando em voltar…). E sobre a compaixão? Bom, essa é a lição final. O objetivo disso tudo é com que a gente se livre do sofrimento, e a pessoa que se iluminou e se livrou dessa insatisfação crônica, nada mais é que uma pessoa de ação livre no mundo (sem ficar presa na REação daquele ciclo) e que experimenta o amor puro, compassivo e só quer o bem de todos os seres! No último dia aprendemos um outro tipo de meditação, chamada de Metta, a meditação da compaixão e ensaiamos um pouco disso.

Percebem como a lógica do curso é estruturada para que possamos realmente experimentar todo esse potencial que temos? A estrutura é essa no mundo todo. Goenka, o mestre Birmanês que foi responsável pela propagação dessa linha do Vipassana no mundo, foi quem aperfeiçoou o formato de ensino da técnica para leigos (pessoas que não são monges). Ele morreu em 2013, mas seguimos ouvindo todos os dias a voz dele durante as meditações e à noite nas palestras que explicam isso tudo.

Ok, Natália, mas isso é muito pesado, tem gente que não aguenta e deve ter alguma contra-indicação! Tem, três: você precisa de ter um nível mínimo do funcionamento cognitivo preservado, certa estabilidade emocional e durante os 10 dias do curso não deve fazer nenhuma outra prática de meditação, terapia ou rituais religiosos. O cognitivo e o emocional são realmente para você entender a técnica e conseguir sobreviver à rotina sem surtar. Rs. Tem gente que não aguenta e vai embora, 4 pessoas desistiram, das mais ou menos 80 que tinham lá. A questão de misturar outras práticas é para você experimentar os benefícios da técnica pura, para não misturar outras coisas que possam também trabalhar com as energias e com o inconsciente (por exemplo Reiki, barras de acesso, etc). E os rituais religiosos também para não misturar, mas principalmente porque eles reforçam que o que ensinam é Dhamma, não é budismo, e que toda e qualquer pessoa de qualquer crença religiosa pode aprender sobre Dhamma, que é algo universal, não sectário. Então não tem a ver com rituais religiosos e não se deve praticá-los ali. Achei esse ponto bem interessante. Quando voltei do curso fui visitar minha irmã e contar como foi, explicar o que é Dhamma e ela escutou e começou a falar sobre a visão dela sobre a vida e tudo que eu ouvia pra mim era Dhamma, só que com outra forma de se dizer.

Além dessas contra-indicações, acho importante falar sobre o que percebi de efeitos colaterais e riscos. Durante o processo de limpeza e dissolução dos sankhāras, podemos começar a sentir efeitos no corpo. Eu tive 2 episódios de diarreia, uma dor no punho antiga voltou, sem explicação nenhuma, achei que teria uma infecção urinária, e tudo isso desapareceu ao longo dos dias também sem explicação nenhuma. Conversei com duas colegas que contaram que vomitaram nos dois primeiros dias. Eu sentava pra meditar cheia de dores, e algumas vezes, mais pro final, com a técnica mais lapidada, levantava sem dor alguma com o corpo cheio de vigor. O negócio as vezes parece meio mágico. Diz-se que muitos problemas de saúde, principalmente os que tem algum fundo psicossomático, melhoram. Mas esse não deve ser o ponto a te motivar conhecer o Vipassana. Goenka procurou o Vipassana a princípio para resolver uma enxaqueca e um vício de morfina que ele adquiriu para lidar com as dores que nenhum médico no mundo resolvia. O mestre dele não o aceitou para o curso enquanto o objetivo dele era só resolver a enxaqueca. Só depois, quando ele, mesmo sendo de uma família hindu tradicional, abriu mente e coração para aprender sobre Dhamma. E passado o curso, seguiu sendo hindu.

Outro efeito que senti foi uma experiência muito significativa que para mim foi uma mudança de paradigma. Lá pro 8-9º dia, depois de sentir as sensações no corpo e ter aprendido a notar as sensações mais sutis (as grosseiras são mais fáceis), conhecemos o fluxo livre e podemos ter a experiência de adentrar o corpo com esse fluxo livre (a princípio ficamos só na superfície). Se você consegue chegar a esse ponto, progredindo um pouco mais, você atinge o que eles chamam de estágio de bangha, que é quando sentimos o fluxo livre e conseguimos trazer à tona os sankhāras mais profundos, mais enraizados e, mantendo a equanimidade, sentimos tudo se dissolver. Eu acredito que tive um vislumbre do que seria esse fluxo livre pelo corpo todo, inclusive por dentro. E nunca havia experimentado nada com a consciência tão clara que me fizesse sentir (e entender) que somos só um punhado de átomos, como todas as coisas, e que esse negócio de “eu” na verdade é só um ponto de vista da realidade da vida, que não havendo “eu”, aquela coisa que eu sentia e me motivou a procurar isso tudo, o vazio existencial, é na verdade uma ilusão. Sério, gente. Foi muito louco. Desde o 4-5º dia eu já estava com essa intuição na mente, comecei a desconfiar que o vazio era uma ilusão. Mas sentir ele no final, sentir no corpo um outro vazio completamente diferente (da movimentação dos átomos), o corpo dissolvendo, faz a gente entender que é possível mesmo essa noção do “eu”, do ego, dissolver também. Não, não usei nenhuma droguinha. Foi tudo com meditação.

E um efeito dessa experiência foi que comecei a acreditar que o maior risco disso tudo é a gente se iluminar! Raraarar! Sério! Quando Goenka afirma veementemente que a iluminação não é algo só pra monge, lama, padre ou pessoa que dedica a vida à espiritualidade, e que milhares de pessoas ditas leigas, desde a época de Buda, já se iluminaram com essa técnica, eu comecei a ficar preocupada. Meu ego se preocupou. Vai que essa doida me dissolve aqui de verdade?! Rararar!

Não acredito que vou me iluminar nessa vida. E pra quem acredita aí em reencarnação, bem capaz de levar várias… Mas uma coisa maravilhosa disso tudo é que o benefício se colhe agora. Você não precisa de achar que vai ter que levar uma vida cheia de restrições, pra quem sabe um dia se iluminar ou ir pro céu. A ideia não é evitar pecados, é perceber o benefício que se colhe agora do seu próprio esforço, do que você acabou de plantar e tá aguando e cultivando. A plantinha já começa a dar frutos. Levar uma vida do bem, caminhar na trilha do Dhamma, colocar uma gota que seja nos potinhos do paramis, é colher benefício a cada passo.

Nisso eu fiquei pensando, pôxa… Se o benefício se colhe agora, sem pensar nessa história de querer se iluminar, tem tanta gente precisando. O quê mais essas eleições nos mostraram senão o quanto precisamos de evoluir como sociedade? No quanto precisamos de mais tolerância, honestidade, equanimidade, compaixão, generosidade… Todos esses paramis e a tal da sîla, da moralidade. A moralidade que precisamos é outra e não essa que pregam por ai! É o não fazer mal a ninguém e fazer o bem! E isso tudo é exatamente o que o Dhamma nos ensina e o Vipassana nos faz sentir na pele. Como seria a sociedade se as pessoas olhassem pro seu umbigo de uma outra forma? Se autoconhecimento fosse algo que se falasse todo dia, mais do que futebol, que se ensinasse nas escolas, que fosse assunto do jantar dentro de casa? Se todo mundo passasse 1-2h do dia treinando concentração, domínio da mente, sentindo a impermanência na pele, aprendendo a lidar com as vicissitudes da vida, cultivando uma atitude de equanimidade e equidade? (A equidade aqui é porque na técnica também dedicamos mais tempo para as sensações mais grosseiras, para elas se tornarem sutis). Essa é a parte que vocês falam: oh lá! Já quer pregar o Vipassana pra todo mundo! Bando de budista topetudo! Rs!

Não, não quero pregar essa técnica específica e nem sou budista. Mas sim talvez eu queira pregar a meditação e o autoconhecimento, porque por todos os lados que olho, só consigo ver que essa solução está na raiz. O tal dito que não adianta querer colocar tapete no mundo todo, melhor colocar pantufas. Pode-se tentar o escambau para melhorar uma sociedade, se a mudança não passar pela pessoa, se não passar por autoconhecimento (e aí a meditação é uma puta ferramenta de autoconhecimento) não há sociedade, coletivo, que melhore. Não há cultura de paz que se instaure. Não há Comunicação Não Violenta que dê conta (apesar da CNV na verdade também ser uma baita ferramenta de autoconhecimento, mesmo não tendo esse enfoque). Se não está convencido ainda que precisamos investir em autoconhecimento (e meditação) para evoluirmos enquanto sociedade, ao menos considere a meditação como uma prática para melhorar a saúde. Numa busca rápida encontrei 5093 estudos no PubMed falando sobre meditação, tudo, aparentemente, sobre benefícios (alguns comprovados e outros mais na base do indicativo) e uma revisão sistemática muito bacana sobre como algumas práticas de meditação podem estimular comportamentos empáticos, compassivos e “prosocial behaviors”.

Outro estudo chamou a atenção para os diferentes efeitos no corpo das diferentes práticas que chamamos de “meditação” que existem. Meditação não quer dizer sempre que vamos entrar num estado mais tranquilo e calmo, mesmo no próprio budismo. O estudo faz um apanhado de técnicas e mostra que meditações das tradições Teravada (a mais clássica, de onde vem o Vipassana) e Maaiana causam sim efeitos de tranquilidade no corpo com aumento do tônus do sistema nervoso parassimpático, mas que meditações Vajrayana (tradição derivada das outras duas, conhecida como o budismo tibetano ou tântrico) causam estados de excitação, aumento do tônus simpático no corpo. O interessante é que de um jeito ou de outro, todos buscam a iluminação (aquele conhecimento prático da impermanência da vida, do somos todos um e somos nada ao mesmo tempo… enfim) e a própria tradição Vajrayana fala que as outras (que são mais de acalmar a mente) são muito importantes.

E o que eu queria dizer, minha gente, é que seja acalmando ou não, essa história de viver com maior controle da mente, mais atenção no presente, é muito importante! Que precisamos falar sobre essa tal de meditação e sobre autoconhecimento se quisermos promover uma cultura de paz! Que quando meditamos, aos poucos vamos entendendo melhor como nós mesmos nutrimos nosso sofrimento, que não temos sob nosso controle muita coisa do que acontece na vida (quase tudo), que o que podemos é escolher como vamos re-agir às coisas que acontecem. Que ao invés de ficarmos dias ruminando algo que nos irritou, se seguimos meditando nessa busca, vamos diminuindo isso até que sejam horas, até que não nos irritemos mais! Porque, afinal, não faz mal repetir, o sofrimento é opcional.

Enfim, fica aí a minha reflexão e esse relato enooooorme dessa experiência que tive. Afinal, foi só uma experiência. E o balanço do experimento:
– 98 horas sentada meditentando (e algumas vezes conseguindo)
– 3 técnicas novas de meditação aprendidas (Anapana, Vipassana e Metta)
– 10 dias sem celular no pós-segundo turno (impagável)
– 1 cama quebrada
– 2 rupturas de sîla durante o curso (matei 1 inseto, no automatismo mesmo, e roubei uma pitanga, só percebi depois!)
– 1kg a menos no corpo (que já recuperei)
– 12 dias vegetariana (sim, já voltei a comer carne e já estou diminuindo de novo. Por conta da observação dos efeitos no corpo, na digestão, na energia, na meditação… Tem sido bem interessante essa observação… Com o álcool também)
– vários sankhāras a mais (porque afinal nesse estágio em que estou da vida, quase que só respirar já é gerar um novo sankhāra) e alguns a menos (assim eu espero)
– 1 modelo da interação mundo-mente-corpo e da geração do sofrimento assimilado 
– 1 novo olhar sobre o meu vazio existencial
– 1 relato de experiência publicado na esperança de que alguém vai conseguir ler até o final e quem sabe se interessar por meditação
– 1 vontade de fazer o curso de Anapana e começar um grupo de meditação lá no posto
– 1 plano de seguir meditentando e observando.

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