Melhor ser vil do que por vil ser tido

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A vileza e  sua variante perversa, tomar o outro por vil, que não deixa de ser uma forma de vileza, é tema clássico e foi eternizada pelo bardo de Avon, Shakespeare, e, três séculos depois, genialmente recriada e atualizada por outro bardo, leitor do primeiro, o português Fernando Pessoa. Se o poeta inglês não foi original nos temas, por que o português deveria?

 

William Shakespeare

Soneto 121

Tradução de Ivo Barroso

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Melhor ser vil do que por vil ser tido,

Quando se acusa a quem não é de o ser;

E um justo prazer morre, envilecido,

Não por nós, mas por quem assim quer ver.

Por que um olhar adulterado iria

Louvar-me o sangue de impulsivo tom,

Ou se sou fraco, algum mais fraco espia,

Vir dar por mau o que eu pretendo bom?

Não, sou o que sou; quem achar iníquos

Os meus abusos, fala pelos seus:

Posso ser reto, já que não são oblíquos,

Não vê a mente espúria os feitos meus;

…. A menos que a sentença seja vera,

…. De que todos são maus e o mal impera.

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Álvaro de Campos

Poema em linha recta

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Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

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sem data

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1. SHAKESPEARE, William. In: BARROSO, Ivo (tradução e apresentação). William Shakespeare 50 Sonetos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

2. Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).  – 312.

 

Redação

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