Orfãos de geração

FABRÍCIO CARPINEJAR – O globo

 

 

E quando você descobre que seu pai é racista, o que fazer?

Quando você percebe que seu pai acha absolutamente normal chamar alguém de macaco, que seu pai acredita que negro é preto, que é absolutamente contra cotas, onde colocar seu desespero?

Aquele pai amoroso, afetivo, preocupado, atento, dedicado, que trabalhou o tempo inteiro para que pudesse viver bem, tem um outro por dentro e é um outro por fora.

Qual o desencantamento quando você entende que ele é seu pai biológico, mas não é seu pai ideológico, muito menos seu pai espiritual, que não concorda com nenhuma de suas convicções sociais?

Ele é uma aberração para a sociedade resmungando daquele jeito no almoço. Não difere de um nazista defendendo a discriminação enquanto procura retirar com os dentes a carne do osso da costela.

Não usa guardanapo para falar, assim como usa para comer.

Eu não imagino o quanto o filho deve sofrer. Não é somente decepção, é uma humilhação interminável.

Pela distância de geração, não tem como convencê-lo. Ele se considera pai e superior, ele se considera pai e sábio, ele se considera velho e esclarecido. Grita e gesticula suas verdades equivocadas como se fossem naturais.

Espera que obedeça e concorde, mas é impossível ser indiferente.

Você apenas não consegue encaixar aquele pai educado e gentil com aquele pai preconceituoso e criminoso.

Mas são a mesma pessoa. A mesma gente.

Você tem amigos negros, já teve namoradas negras, o preconceito dói em si como se arrancasse sua pele, e seu pai encarna o que mais abomina: o ódio burro, a raiva escravocrata.

Como continuar sendo seu filho? Como cortar o cordão umbilical do abraço?

Não sei a resposta. Não sei o que dizer.

É um desencanto maior do que a morte.

Como separar os momentos felizes paternos das palavras coléricas e espantosamente injustas contra toda uma cultura?

Como falar depois disso que seu pai é ótimo, é sensível, é perfeito? Como escrever cartões elogiando sua emoção?

É igual com a mãe que é homofóbica.

E homofóbica quando o próprio filho é homossexual. Não tenho ideia o quanto sangra alguém rejeitado pela própria família. Alguém que precisa disfarçar seu temperamento, sua escolha afetiva, seus namorados, para não se opor à monstruosidade caseira.

Aquela mãe que colocou você no colo, que cativou sua adoração por histórias, que ensinou a cordialidade, que é cúmplice e delicada, vira uma fascista ao falar de gays. Confia piamente que sexo e amor só podem ser realizados entre homem e mulher, que a homossexualidade é doença, que a homossexualidade tem que ser tratada pela psiquiatria.

É tão comum testemunhar filhos que amam seus pais, mas que não tem como amar o que seus pais acreditam. O que fazer? Como prantear essa distância filial? Como enterrar a admiração pelas pessoas mais importantes de sua vida?

 

Redação

5 Comentários

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  1. Democracia, na lei e na marra.

    Não tem que enterrar nada nem ninguém. 

    Tem que fazer a luta política.

    Seu pai ou mãe sobem num palanque e você sobe em outro. Vocês defendem propostas antagônicas, pedem voto para candidatos distintos, depois descem do palanque e vão para casa abraçados. 

    E o povo que faça sua escolha. Numa democracia é assim

    Lá em casa também sempre foi assim. No maior antagonismo e na maior harmonia. Sem crise

  2. Não exatamente por esses

    Não exatamente por esses motivos, mas até hoje, depois de mortos meus país, ainda os divido entre o Sr. Benedito e meu pai e a Dona Augusta e minha mãe. Era pessoas absolutamente diferentes numa mesma pessoa.

     

  3. Patrícia Moreira

    A Desmassificação Massificada de Patrícia Moreira 

    Por Reinaldo Melo

    Uma das características do ser humano é o medo de ser tocado pelo desconhecido. 

    Consequentemente, há o desejo de isolamento social, em que estabelece estratégias comportamentais para não haver qualquer relação com o outro, ou físico, se fechando dentro de um espaço onde o contato com o mundo não ocorra, sentindo-se amplamente protegido. A aversão a qualquer contato é inerente à natureza humana. Essa essência contrasta com a necessidade de socialização de nossa espécie. 

    Freud dizia que o indivíduo na sociedade moderna estaria condenado à infelicidade. O ser humano não é essencialmente gentil, é agressivo. No entanto, a culpa de manter interiorizada tal agressividade o condiciona a plena insatisfação. Para a civilização moderna, esse impulso agressivo é o que ameaça a sua existência; a condição civilizada da sociedade sempre está à beira do precipício da barbárie. Para que não ocorra a queda o impulso individual muitas vezes deve ser sacrificado pelo impulso social.

    Tal medo e conflito são amenizados no processo de massificação do indivíduo. A massa é uma integração de indivíduos de diferentes estratificações sociais, profissionais, sexuais, etc, em torno de algo comum que os iguale por completo. Por exemplo, uma torcida de um time de futebol. Na massa, além do indivíduo perder o medo do contato com o outro e com o mundo externo, há o sentimento de proteção e integração. Tudo é o oposto da individualização. O medo se torna coragem, o que era reprimido passa a ser liberado.

    Patrícia Moreira era apenas uma indivídua comum de nossa sociedade. Jovem, círculo social natural para a sua idade, funcionária na área de odontologia de um departamento militar, foi a um estádio para apreciar seu time do coração. E diante da derrota, fez coro à turba furiosa inconformada com a apresentação do seu time, destilando seu impulso individual agressivo a uma das figuras do time adversário, o goleiro Aranha, chamando-o de macaco.

    Até aí, nada “incomum” do que já foi visto em diversos estádios do mundo, mas a moça não contava que a proteção que a massa poderia lhe dar, para que seus impulsos reprimidos se liberassem, fosse tão frágil diante de outra ferramenta de massificação: a TV.

     Flagrada pelas câmeras, Patrícia Moreira massificadamente se desmassificou, ou seja, a partir dali a mídia iniciou uma construção falsa de sua individualidade alçando-a como a mulher mais nefasta do país. Na era do espetáculo, a mídia trata todos os fenômenos pelo viés sensacionalista. Ao mesmo tempo, faz o papel de Estado com a cumplicidade de seu público: ela testemunha o crime, abre o inquérito, estabelece o processo, opera o julgamento e condena ao seu bel prazer. É a substituição bárbara do estado democrático de direito. Meses atrás, Raquel Sherazade defendeu o linchamento de um menor de idade suspeito de roubo, incitando a população, cansada de impunidade e da ausência do Estado (que ironicamente é implacável contra pobres, especialmente os negros), a tomar as rédeas do que se entende por justiça. Depois de tal declaração houve uma epidemia de linchamento no país. E o linchamento não é nada mais nada menos do que um fenômeno de massificação. A turba reunida diante de um suposto criminoso, inocente ou não, libera seus impulsos agressivos e massacram o indivíduo sem chance de recorrer ao direito de defesa que a civilização teoricamente lhe garante. Patrícia Moreira, que em seu contexto de indivídua massificada, fazia coro com a massa que massacrava verbalmente o goleiro adversário, ironicamente foi desmassificada, mas não para ser tratada como um indivíduo único e especial, mas como um ser merecedor de um massacre, de um linchamento midiático e social, a ponto de perder o trabalho, o direito de poder sair à rua e ao mesmo tempo assistir à derrocada de sua família, que não possuía relação alguma com o crime que ela cometeu dentro do estádio. Todo um roteiro ideológico programado pela mídia hipócrita, que coloca negros como empregados em suas novelas, que estampa o negro nas suas manchetes policiais, que trata o negro apenas como pagodeiro, jogador de futebol ou protagonista de comercial de café, e que sempre se coloca contra as cotas raciais em universidades e concursos, desprezando que somos uma sociedade de maioria negra, mas que esta é marginalizada dos direitos constitucionais mais básicos. Tudo se discutiu nessa história menos o racismo e suas fontes. Quando se dá mais ênfase à racista do que o processo que formula e mantém o racismo em nossa sociedade, a mídia mata dois coelhos com uma cajadada só: promove o justiçamento, se colocando como protagonista dos valores que a turba furiosa necessita e mantém intacta a estrutura ideológica do racismo que ela mesma reproduz diariamente, se isentando do crime racial que ajuda a propagar. Patricia Moreira, assim como os outros torcedores, merece ser processada e julgada, mas dentro do que lhe garante o estado democrático de direito. Quando tratamos um criminoso sem a humanização que lhe cobramos, em nada diferimos dele. Dentro de um processo civilizatório, a pena para um criminoso é muito mais do que lhe negar o convívio em sociedade ou lhe imputar ações (como trabalhos comunitários) contra a sua vontade, deve-se focar também a sua reeducação para se conscientizar de que fez algo errado e não reincidir em tal prática. Assim como se destrói um indivíduo por meio de qualquer ato de discriminação, não se humaniza alguém o destruindo, como estão fazendo com Patrícia Moreira. De nada vale defender a civilização, sendo tão bárbaros quanto os que a ameaçam. 

     

     

  4. Larga de frescura e vai trabalhar.

    Tipo do texto que você acaba de ler e se pergunta?

    Está, e daí?

    Alguém já viu algum adolescente se preocupar com a opinião do pai sobre algum assunto. O pai está errado e pronto. Agora, esse cara tem 42 anos, já era para ter, no mínimo, acomodado essas diferenças.

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