Paulo Leandro: a Justiça dos macacos

No momento em que a sociedade brasileira clama por uma Justiça Cidadã, e percebe no seu Poder Judiciário avanços capazes de aproximar a realização desse desejo coletivo, surge em boa hora o clamor coletivo, contra o racismo, pelas ondas midiáticas vindas da Espanha.
Percebemos, em coro miscigenado e agudo, a necessidade de seguir Daniel Alves, em seu gesto altaneiro e superior de se alimentar com a banana que lhe foi ofertada, na mensagem interpretada como comparação a um primata, tido como espécie inferior ao homem europeu.
Até figuras midiáticas geralmente apáticas, ou marqueteiramente orientadas para a neutralidade, saíram a campo, bananas em punho ou na genitália, a publicar nas redes sociais sua súbita indignação, alinhando todos a uma só seleção: somos todos, afinal, macacos.

O espanhol, que presenteou a banana, talvez tenha involuntariamente retribuído um pouco do que seu país ganha ao importar tantos macacos para seu futebol . Mas, como bom toureiro, tentou ser tão cruel quanto foram seus antepassados, ao chacinar incas, maias e astecas.
Soube Daniel marcar o racismo com a mesma categoria revelada desde sua descoberta por Caboclinho, ainda no Juazeiro Social Clube. O gesto de sabedoria, ao acolher, e não rejeitar o fruto, traz uma lição de antropologia que só mesmo um jogador de futebol poderia ensinar.
Prof. Dr. Daniel disse que ninguém é, por essência, ‘negro’, ‘espanhol’, ‘comedor de banana’, ou qualquer outro significante. Todas essas qualidades são construídas no contexto do compartilhamento, em expressão da sabedoria facebookiana, transmitida post após post.

Até os anos 1920, sequer ousávamos dizer a palavra ‘negro’,  sutilmente substituída nas páginas esportivas por ‘colored’, algo perto de ‘colorido’. O mesmo falso carinho que usamos quando substituímos a primeira liga racista pela ‘Liga dos Pretinhos’, em 1912.

Descascamos bananas por aqui desde as origens do nobre esporte bretão. Apolinário Santana, nome de rua no Quilombo do Engenho Velho da Federação, é o nosso primeiro Daniel Alves. Apelidado Popó, foi ele nosso primeiro retinto ídolo a fazer justiça com a bola nos pés.
Essa justiça, valor grego pensado por Platão, se une à cidadania, no momento em que a república se proclama no futebol. Nosso jeito de jogar bola não é essencialmente ‘colored’, ‘afrodescendente’, ‘negro’, ou ‘negão’, como arrisca-se a declamar o ídolo Jeferson Bacelar.
Somos tudo isso e mais alguma coisa, tipo arco-íris, mesmo quando brancos na pele, jogando como negros, pardos, mestiços, azuis ou lilases, perfil identitário tão rico quanto impossível de essencializar como afoitamente aparecem agora os oportunistas de banana na mão.

O risco da unanimidade oportunista e marqueteira é essencializar o racismo do espanhol de modo a reforçar no nosso imaginário um inexistente contraste que se pode perceber em outras nações, como as de colonização anglo-saxã, que não curtiram a felicidade do contágio.

Por Leônidas, Friedenreich, Fausto, Didi, Pelé, finado Dener, Paulo César Lima, e também por Zico, Osni, Mário Sérgio, Ademir da Guia, tantas misturas com a bola nos pés refletindo uma civilização brasileira multicolor e multicultural, não vamos permitir contrastes essencializantes.

O espanhol que ofereceu, num gesto de generosidade involuntária, o fruto da felicidade, já teve seu agradecimento, na educação brasileira de nosso jogador. Agora, podemos aproveitar a oportunidade e cuidar de nosso próprio racismo, o racismo de classe das arenas Fifa.

Outra chance de seguir Daniel, de verdade, é conhecer a história do quilombo Rio dos Macacos. Ali, há séculos, bem perto de nós, tem gente comendo a banana que o diabo amassou. Não precisamos esperar Daniel receber outra fruta de presente pra fazer valer a Justiça Cidadã.

http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/paulo-leandro-a-justica-dos-macacos/?cHash=550e3d10bb207157bec2c1f47221f863

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador