Morte de PC Siqueira e Jéssica Vitória, vítimas do “tribunal da internet”, reacende debate sobre regulação das redes sociais

Carla Castanho
Carla Castanho é repórter no Jornal GGN e produtora no canal TVGGN
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Numa terra sem lei, a falta de compromisso com a verdade dos fatos e com o direito à presunção de inocência, pode ser fatal

As tragédias envolvendo a adolescente Jéssica Vitória, 22 anos, e o youtuber PC Siqueira, 37, evidenciam de maneira drástica como a internet se consolidou como um ambiente propício à disseminação de ódio, mentiras e julgamentos que podem ser fatais.

Jéssica e PC Siqueira, que tiraram suas próprias vidas nos últimos dias, tinham algo em comum: precisavam lidar com o “tribunal da internet” desde que tiveram seus nomes associados a notícias que circularam sem compromisso com a verdade dos fatos ou com o direito à presunção de inocência.

Nesta quinta (28), na esteira do suicídio de PC Siqueira, o deputado federal André Janones anunciou que o Congresso retomará o debate sobre regulação das redes sociais. Janones argumentou que “nossa geração tem utilizado as redes sociais como uma ferramenta destruição da sua saúde mental”, sem considerar o peso da “exposição, a falta de privacidade e o poder de destruição do tribunal da internet.”

Ataques e cancelamento na internet

Antes de seu falecimento, Jéssica Vitória, até então uma jovem anônima, apareceu em prints de conversas falsificadas, onde os diálogos forjavam um flerte com o humorista e influenciador Whindersson Nunes. O material foi amplamente divulgado pela página de fofoca “Choquei” – que, somente no Instagram, tem mais de 20 milhões de seguidores – e acabou repercutido por outras mídias. Os dois envolvidos negaram a veracidade das mensagens e foram ignorados. Jéssica virou alvo de detratores que criticavam sua classe social, sua aparência e acusavam um suposto interesse pela fortuna de Whindersson, entre outros ataques. 

Em um esforço para conter a disseminação, Jessica publicou um manifesto no Instagram desmentindo a notícia do Choquei e solicitando a remoção das publicações. Mas o retorno que ela obteve do dono da página foi: “Avisa pra ela que a redação do ENEM já passou. Pelo amor de Deus!” – numa aparente demonstração de má vontade em ouvir o outro lado.

Tanto Jéssica quanto PC Siqueira tinham um segundo ponto em comum: lidavam com questões afeitas à saúde mental, como depressão. No caso do youtuber e ex-apresentador da MTV, o ápice da crise chegou em 2020, quando ele foi acusado de receber fotos de uma criança nua através da própria mãe da menina.

Em sua conta no Instagram, PC Siqueira negou veementemente as acusações à época dos fatos, chamando o áudio onde ele narrava o recebimento das imagens de “falsificação mal feita”. Ele também apontou diversas inconsistências técnicas no material que viralizou e respaldou a abertura de um inquérito. “A mais importante delas é que não sou eu”, afirmou no post. Mas o tribunal da internet já tinha um veredicto.

Isolado e cancelado pela internet, com prejuízos à sua vida profissional e pessoal, PC Siqueira teria terminado um relacionamento há poucos meses e acabou recorrendo à autoimolação na presença da ex-namorada, segundo informações preliminares. Somente agora que o influenciador está morto, é que jornalistas com milhões de seguidores deram espaço para a notícia de que o “laudo pericial não encontrou indícios” de que PC Siqueira armazenou ou compartilhou pornografia infantil. O inquérito da Polícia Civil ainda não está concluído.

A responsabilidade das mídias

As mortes de Jéssica e PC Siqueira acendem um debate sobre o papel das mídias digitais na formação da opinião pública e no cancelamento de anônimos ou influenciadores. De um lado, páginas de fofoca ou entretenimento prosperam com pouco ou nenhum compromisso com a checagem de fatos. E do outro da raia, na mesma disputa por likes, estão os portais de jornalismo profissional que tampouco parecem se preocupar com as consequências de assassinar reputações em troca de engajamento.

A reportagem do GGN conversou sobre a responsabilidade das mídias com a jornalista e pesquisadora Renata Mieli, ex-coordenadora do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Para ela, sejam veículos de notícias tradicionais ou sites de informações sobre celebridades, a responsabilização deve ser a mesma, independentemente de seu foco.

“Ele [Choquei] é um veículo, é uma empresa de produção de conteúdo informativo, então, sem dúvida nenhuma precisa ter as mesmas responsabilidades definidas para um veículo jornalístico como outro qualquer, e isso cabe tanto para os veículos pré-internet’, como os jornais impressos, revistas, emissoras de rádio e televisão, quanto para os veículos nativos digitais”. 

Renata Mieli, pesquisadora e ex-coordenadora do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Foto: Leonardo Attuch/Brasil 247

Além da produção, é essencial avaliar a outra camada de conteúdo – a do engajamento – ou seja, a distribuição e a circulação das informações, que segundo a jornalista, são fatores que têm um impacto considerável na disseminação de desinformação e ódio. 

“A produção de conteúdos de esclarecimento deveria ter circulado na medida em que esse conteúdo circulou. O produtor do conteúdo e a distribuição de conteúdo, e como esse conteúdo engajou, precisam ser bastante avaliadas para que cada um responda de acordo com o seu nível de responsabilidade”. 

Por conta da repercussão, a mãe de Jéssica Vitória, Inês Oliveira, chegou a gravar um vídeo relatando a fragilidade do estado de sua filha, que já enfrentava problemas de saúde mental, na esperança de que a mídia parasse de compartilhar notícias falsas. À TV Paranaíba, afiliada da Record em Minas Gerais, a mãe pediu Justiça e disse que a filha já nem tinha redes sociais para proteger sua saúde mental, tanto que as fotos que rotulavam Jéssica como affair de Whindersson foram copiadas do próprio Instagram de Inês. 

O humorista também se manifestou para esclarecer a falsidade das mensagens atribuídas a eles. Em suas redes, considerou a situação fruto de um “jornalismo não oficial”, e defendeu a regulação da mídia. 

O impacto do “Tribunal da Internet” na vida de influenciadores

Issaaf Karhawi, pesquisadora da USP. Foto: Reprodução/Mescla

A pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Mídias Digitais, o COM+, da ECA-USP, Issaaf Karhawi, também conversou com o GGN para analisar o impacto do “Tribunal da Internet” na vida de um digital influencer. Para ela, nesses casos, o impacto pode ser ainda mais prejudicial, porque todas as dimensões da vida de um influenciador estão expostas na internet, “do trabalho à vida privada”. 

“Às vezes a gente dá o mesmo peso para o uso das redes sociais para os influenciadores e para as pessoas comuns, ou seja, aquelas que não vivem profissionalmente das redes sociais – e aqui já tem uma diferença crucial”, ressaltou Issaaf.

Os influenciadores digitais passam por um processo de legitimação que, segundo ela, também é fácil de ser desfeito em um cenário de incansáveis cancelamentos. 

“Essa legitimação é como se fosse um carimbo de que essa pessoa vale a pena ser seguida, vale a pena consumir o conteúdo dela. É um processo bilateral: o influenciador só ocupa os lugares que ele ocupa porque ele é legitimado pelas audiências. E na mesma medida que a gente legitima alguém, a gente deslegitima, tira essa pessoa desse lugar.”

Regulação da mídia e educação midiática

A necessidade de regulação das redes sociais, para Renata Mieli, está entre as “grandes dívidas democráticas” que o Brasil possui.

“Há uma série de falhas no nosso ambiente legal que se aprofundaram muito com o advento da internet, porque a complexidade que nós tínhamos no caso dos conteúdos pré-internet aumentou muito com o advento não só da internet, mas das redes sociais. Então é urgente que o Brasil enfrente essas questões”. 

Já para a Issaaf, além da importância da regulação, “uma estratégia bastante efetiva tem a ver com a educação midiática”. 

“Quando a gente entende que existe um modelo de negócio que sustenta o mercado da influência, e que sustenta alguns perfis no Instagram que se dizem veículos midiáticos, a gente começa a entender também o nosso papel nesse ecossistema”, apontou.

O outro lado

Depois de permanecer cinco dias sem novas publicações, os perfis do Choquei foram atualizados nesta quinta-feira (28), com uma nota em que o perfil lamenta o ocorrido com Jéssica Vitória, presta solidariedade à família, além de se comprometer em contribuir com as investigações para elucidar o episódio.

A nota veio à tona após o o depoimento do proprietário da página de fofocas, Raphael Sousa, à Polícia Civil de Minas Gerais, que se comprometeu ainda com um “profundo processo de reavaliação interna dos métodos adotados” pela página, a fim de adotar “filtros e códigos de conduta para evitar que episódios dessa natureza voltem a acontecer”.

Peça ajuda

O Centro de Valorização da Vida (CVV) enfatiza que o suicídio não deve ser associado a um único evento. É uma questão complexa que geralmente envolve uma série de fatores. Reconhecendo o suicídio como uma questão de saúde pública, o CVV reforça a importância de oferecer ajuda e suporte. Para aqueles que buscam auxílio ou desejam oferecer apoio a alguém que esteja passando por momentos difíceis, o CVV disponibiliza assistência voluntária. É possível entrar em contato pelo telefone 188, um serviço que funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana.

Carla Castanho

Carla Castanho é repórter no Jornal GGN e produtora no canal TVGGN

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