Poesia e vida, trabalho e morte, na Farsa da Boa Preguiça de Ariano Suassuna

Claudio Santana Pimentel

 

A Farsa da Boa Preguiça, peça escrita por Ariano Suassuna em 1960, completa o ciclo de peças religiosas do autor, onde se destacam o Auto da Compadecida (1955) e A pena e a lei (1959). 

Decidi retomar a leitura de um aspecto dela, a visão do trabalho como exploração e gerador de morte, talvez nada mais atual num momento em que os direitos e garantias dos trabalhadores têm sido vistos, à luz do interesse dos donos do capital nacional e internacional (ou seria melhor dizer simplesmente internacional), como obstáculo aos seus lucros (ao desenvolvimento, dizem eles). 

Para Suassuna, “o único verdadeiro objetivo do Trabalho é a Preguiça que ele proporciona depois, e no qual podemos nos entregar à alegria do único trabalho verdadeiramente digno, o trabalho criativo, livre e gratuito. Os Poetas e os Artistas têm a sorte de poder unir o trabalho escravo e o trabalho criador numa só atividade, e era isso o que eu tentava mostrar, também, na Farsa da boa preguiça, através do personagem Joaquim Simão, o Poeta preguiçoso”.

Joaquim Simão, poeta-cantador, artista pobre que vive com a mulher e os filhos no sertão, e estão sempre em dificuldades. A peça é aberta por Manuel Carpinteiro, Simão Pedro e Miguel Arcanjo. Miguel critica a falta de empenho de Joaquim Simão no trabalho e o repreende. Simão Pedro, por sua vez, percebe a criatividade presente na preguiça e a injustiça presente no trabalho, escolhendo defender o poeta:

 

“Pode haver safadeza no trabalho,

e na preguiça pode haver criação!

Agora, existe um costume dos ricos endemoninhados:

como trabalham, se sentem no resto justificados.

Pagam mal aos operários, 

oprimem os camponeses, 

acusam quem defende os pobres 

de ser do Mal instrumento,

sopram dureza e maldade

nos atos e pensamentos,

dão-se à Avareza, à Lúxuria,

comem Fogo, bebem Ventos”

 

E é Miguel Arcanjo quem completa:

 

“Estes invejam dos pobres

até a pura alegria!

Pensam que Cristo é um deles!

E o Cristo foi sempre pobre!”

 

Percebia Suassuna a perversão do que se costuma chamar atualmente “meritocracia”, que, na maioria das vezes, não passa da justificação de privilégios, omitindo-se as assimetrias sociais e econômicas que os tornaram possíveis: imputa-se ao pobre a responsabilidade por sua situação subalterna, ignorando-se a condição decisiva que o acesso à educação, às condições de higiene e saúde, à alimentação, enfim, têm para a definição do sucesso ou insucesso social e profissional.

Vende-se convenientemente a ideia de que mérito e sucesso são resultado simplesmente de decisões individuais, em nada contribuindo os lugares sociais onde se encontram os sujeitos e as oportunidades que lhes são efetivamente oferecidas ou negadas.

O rico, Aderaldo Catacão, trabalhador, homem de negócios, porém, vive a se queixar que o grosso dos lucros vai de fato beneficiar os sócios estrangeiros. Para ele, a alegria do pobre é mais do que incompreensível, é inaceitável.

Sua esposa, Clarabela, pseudo-intelectual cuja principal ocupação é gastar em futilidades o dinheiro que o marido obtém com a exploração do capital e do trabalho. 

A semelhança com personagens atuais da política, donos de grandes empresas e suas respectivas senhoras fica por conta da sensibilidade de cada um.

Não me demorarei em aprofundar a descrição dessas personagens. Fica o convite para a leitura do texto e, principalmente, havendo oportunidade, prestigiar sua encenação. 

Joaquim Simão louva assim o ofício do poeta:

 

“E eu trabalho: penso, escrevo,

invento, na Poesia,

crio histórias para os outros,

espalho alguma alegria,

espanto a treva do Mundo

que em meu sangue se alumia,

dou beleza ao crime e ao choro…

É pouco, mas tem valia!”

 

O poeta é um trabalhador, que se diferencia por sua práxis: pensar, escrever, cantar e contar histórias.

A poesia não é algo apenas pessoal e particular, mas tem relevância social: traz alegria, espanta a treva, revela a beleza naquilo que em si não é belo: o mal, a tristeza. Permite à comunidade encontrar sentido em meio ao absurdo.

Se há um ócio negativo é o do rico, resultado da exploração do trabalho. Nisso não há nenhum mérito. 

É a transformação do trabalhador em mera despesa, a ser reduzida ao mínimo, para máximo proveito do lucro, que Suassuna critica. 

Atualmente, presenciamos o desmantelamento do Estado como garantidor de direitos sociais e trabalhistas em nome do lucro do capital internacional e de seus beneficiários.

No entanto, o Estado, para as elites financeiras internacionais, ainda cumpre uma função: a de garantir a transformação do capital em mais capital, sem a necessidade do trabalho, por meio dos títulos públicos e dos juros. 

Diferentemente do que se afirma, o Estado é fundamental para os donos do capital: existe para transformar os recursos que expropia da sociedade em lucro para os rentistas. Quanto maiores os juros, menos recursos para educação, saúde, previdência social.

Assim, a democracia torna-se uma farsa dispensável: é preciso garantir que o Estado sirva ao capital e não à sociedade. Daí a recusa às eleições. Não se pode correr o risco de permitir qualquer decisão ao povo.

Se há um ócio positivo, é o que resulta da poesia, da alegria, da festa, da confraternização comunitária que questiona, subverte e suspende as desigualdades e injustiças, ao menos de maneira temporária e simbólica.

 

https://www.youtube.com/watch?v=HScDjHLXSRA align:left

 

 

 

 

 

 

 

 
 
 
 
 
 
Redação

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