Sou Louco por Saúde, um alerta contra os manicômios, um texto de Dora Nassif

Dora Nassif *

Aquele parecia um dia como qualquer outro: frio, mas bonito, com raios de sol tímidos batendo sobre o asfalto. Os pássaros estavam silenciosos, algo comum para uma cidade como São Paulo. O barulho vinha das pessoas, que caminhavam apressadas sobre as ruas, trombando umas nas outras, preocupadas com os seus próprios problemas e obrigações. Presas em um universo tão particular e egocêntrico, que não faziam ideia de que a poucos quilômetros dali um grupo especial se reunia mais uma vez, protagonizando uma luta que não deveria mais existir, buscando a garantia de direitos que já deveriam ter sido estabelecidos. Suplicando para que fossem tratados com o merecido respeito e não como loucos. Suplicando pela não volta dos manicômios.

Uma roda de música se fazia presente, dando vida àquela manifestação. Com sorrisos de orelha a orelha, os manifestantes contavam a história da sua luta através da arte. A felicidade que eles transmitiam era escaldante, gozando de sua liberdade em um ambiente em que finalmente, pelo menos por um breve momento, eles seriam tratados como seres humanos dignos. Tratados como seres humanos capazes. Tratados como alguém que merece ser amado e respeitado. Apenas por um breve momento eles estavam cercados de pessoas que estavam ali uns pelos outros, juntos pela mesma causa. Lutando para que todos os outros momentos de sua vida fossem como era naquela manifestação.

Em outro ponto do ato, um grupo de estudantes de direito procuravam entender melhor sobre o que se tratava a luta antimanicomial. Optaram por fazer um noticiário envolvendo o tema para a aula de Antropologia Jurídica e foram muito bem recebidos por todos ao se integrarem no protesto. Perceberam que grande parte das pessoas ali presentes eram familiares de pacientes ou mesmo pacientes do CAPS – centros de atenção psicossocial –, e que todos eles tinham uma história para contar. Histórias bonitas sobre como os centros os acolheram e assistiram e agora conseguiam se integrar na sociedade com mais facilidade, até histórias fortes sobre a violência e negligência que sofreram quando manicômios ainda eram uma realidade brasileira.

Todos pareciam muito bem-dispostos a ajudar o grupo de estudantes. Participaram das entrevistas, os incluíram nas rodas de dança e de música e explicaram a eles os

horrores que sofriam pela sociedade. Os manifestantes entendiam que se pudessem mostrar para uma pessoa só a sua realidade, se pudessem abrir a mente nem que fosse de apenas aquele seleto grupo de estudantes, já faria uma baita diferença na sua luta. Só de saber que essas dez pessoas mudariam a sua visão de mundo e ajudariam o próximo, passariam a sua palavra para frente e militariam ao seu favor, já era algo absurdamente grandioso, porque significava que eles mudaram a vida de alguém. Significava que alguma pessoa que sofria de algum transtorno que tinha contato com eles seria agora mais bem tratada; seria agora humanizada de uma forma que, talvez, ela nunca tenha sido.

Para os alunos, participar daquela manifestação foi como um grande tapa na cara. O choque de realidade foi tremendo. Tinham uma certa noção de que manicômios não eram exatamente boa coisa, mas aquilo era muito pior do que a sua imaginação os permitia crer. O sofrimento causado, as torturas tanto físicas quanto psicológicas. Os tratamentos semelhantes com os de um animal. A ideia que a sociedade prega sobre pessoas com transtorno mentais é a de que são incapazes. Mas aquelas pessoas da manifestação – principalmente as que recebiam o devido tratamento pelo CAPS – eram tudo, menos incapazes.

O brilho nos olhos, o sorriso de orelha a orelha, a luta. Tudo isso é apagado por uma sociedade e por um governo que tentam trazer de volta os hospitais psiquiátricos. Os alunos entenderam que toda a história de vida, toda a ideia de que eles são sim pessoas que merecem respeito, merecem oportunidades e merecem ser representados são ofuscados por políticas e medidas inconstitucionais, contra os direitos humanos e de teor tortuoso. As sociedades os subestimam, mas tudo o que essa manifestação mostrou é a força inerente presente em cada um daqueles manifestantes. Nos pacientes, nos seus familiares e naqueles que os apoiam.

A música tocando, as pessoas dançando, se expressando, lutando! Médicos e psicólogos apoiando e ajudando no tratamento, todos juntos desenhando em cartazes, conscientizando quem quer que estivesse disposto a ouvir. Os alunos emocionados, arrepiados com a história e a força de cada um deles. E depois, os seus colegas de sala de aula que assistiriam à reportagem e as entrevistas também entenderiam, mudariam as suas atitudes. Aquela manifestação não era grande, mas uma corrente foi formada através dela. Um elo entre todos passou a existir e só tendia a aumentar. Era para a luta antimanicomial ter terminado, mas a realidade é que aquilo era só o começo. Havia um longo e perigoso caminho pela frente. Mas, para todos, havia apenas um fim possível, e eles lutariam o quanto podiam para garantir isso.

Considerações finais

No dia 15 de maio o Brasil sofreu um retrocesso na luta antimanicomial. Foi aprovado um projeto de lei que possibilita a internação involuntária de usuários de droga – a partir da isolação familiar e social –, enquanto o governo Bolsonaro publicou diretrizes que incluem eletrochoques e internação de crianças. Esse projeto de lei entra em contradição com a Lei Paulo Delgado 10.216/2001, que trata da proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo de assistência.

Por muitos anos os CAPS funcionaram como uma forma de apoio e assistência aberta para pessoas com transtornos mentais, incluindo abuso de álcool e drogas. Esses centros têm a função de acolhimento, são uma forma humanizada de hospitais psiquiátricos. Não há mais espaço na nossa sociedade para tratar agravos à saúde mental como impeditivo para o exercício da cidadania. Ao aprovar o projeto de lei, o governo retira os direitos das pessoas impedimento sua participação social.

É fato que os manicômios não produzem saúde, mas atuam a partir da privação de liberdade, do isolamento humano do usuário, promove a violação de direitos humanos, contribui para a lógica manicomial e impede a socialização das pessoas que fazem o uso abusivo de drogas. É inconstitucional, ao passo que fere a dignidade do ser humano.

  • Primeiro anista da Faculdade de Direito do Mackenzie
  • Trabalho de grupo: Dora Nassif, Fernanda Costa, Georgia Soriano, Giovanni Andreasi, Gustavo Navarro, Izabela Dias, Laise Martines, Marianna Sambra, Yasmin Lima

 

Luis Nassif

2 Comentários

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  1. CCHRInt: Childhood is Not a Mental Disorder
    https://youtu.be/Wv49RFo1ckQ

    Bonito ver uma parte da nova geração da elite econômica e cultural sensibilizada e atuante em temas de direitos humanos, cuja violação sempre tem um componente sócio-econômico e cultural “estruturante” – a prisão ou a exclusão sob aparente liberdade, por qualquer motivo, é sempre o destino dos indesejados, por serem pobres, desafiadores, independentes, éticos, autônomos, ou por serem a(l)tivos…ou todas as anteriores.
    Para interessados no assunto, a rádio UFMG Educativa tem um trabalho inovador e exemplar na forma como lida com a questão da saúde mental – e não apenas de quem é diagnosticado, corretamente, com qualquer tipo de transtorno: além das pautas frequentes na programação, trata-se do programa semestral Louca Sintonia, apresentado em edição especial no recomendável Conexões (segunda a sexta, das 10h às 12h, via internet para ausentes de BH, rs – a melhor rádio pública e universitária do país, https://ufmg.br/comunicacao/radio-ufmg-educativa).

    Aqui, dois sites para acesso a alguns programas

    https://www.ufmg.br/online/radio/arquivos/038315.shtml (até a quinta edição)

    https://ufmg.br/comunicacao/noticias/programa-conexoes-da-ufmg-educativa-veicula-o-especial-louca-sintonia (oitava edição, de 2018, sobre democracia; para que as pessoas sejam justas com os loucos ao evitar comparação com a gangue)
    (trecho da página sobre o programa de 2018)
    “O programa Conexões, da Rádio UFMG Educativa (104,5 FM), veiculou nesta quinta-feira, 28, a oitava edição do especial Louca Sintonia. Com uma hora de duração, o programa tem a proposta de abordar a luta antimanicomial e discutir questões relativas ao universo da saúde mental, com contação de causos, piadas, covers de bandas famosas e canções que vão do rap ao gospel.

    O Louca Sintonia conta com a participação de usuários do Centro de Convivência São Paulo, que fica na região nordeste de Belo Horizonte. Eles se envolvem em todo o processo de produção, desde a locução até a seleção musical, com mediação da equipe de produção da emissora e de estudantes do curso de Terapia Ocupacional da UFMG.

    Esta é a oitava edição do Louca Sintonia, que é apresentada semestralmente na disciplina Prática Clínica em Terapia Ocupacional, ministrada pela professora Regina Céli Fonseca Ribeiro, da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (EEFFTO).

    Por meio de parceria entre o Departamento de Terapia Ocupacional e o Centro de Convivência São Paulo, os estudantes desenvolvem ações que beneficiam os frequentadores. Em 2014, em visita guiada à Rádio UFMG Educativa, nasceu a ideia de participação dos usuários do centro de convivência na elaboração de um programa.”

    Para quem quiser ir mais fundo no tema geral da saúde mental e de sua instrumentalização social, política, médica e trabalhista, e da indústria da psiquiatria:

    1 – um documentário que deve ser visto

    Psiquiatria, uma Indústria da Morte – Completo e legendado PT BR
    https://www.youtube.com/watch?v=9uch5xT7kv8

    2 – um site que deve ser acompanhado: a versão brasileira de uma iniciativa dos USA (aqui, a página de uma dos mais instigantes filósofos (uso do termo em referência ao tempo em que filósofos eram “cicutados” (hoje, seriam eletrochocados) por ousar a dúvida e a busca da verdade) da medicina e da ética do cuidado e da saúde

    https://madinbrasil.org/author/pgotzsche/

    3 – dois filósofos da medicina que precisam ser conhecidos

    Peter Gotzsche, recentemente demitido da conceituada Fundação Cochrane por ser um crítico independente da máfia da indústria médico-farmacêutica (a crise dos opióides (drogas lícitas receitadas por médicos) nos USA não poderia ter acontecido sem muita conivência da rede envolvida na lucrativa indústria da exploração do sofrimento humano)

    Survival of a Whistleblower – Peter C. Gøtzsche at Summer Institute 2018
    https://youtu.be/G2mFHHWyTrc

    Thomas Szasz, já falecido

    Thomas Szasz – O direito de tomar drogas
    https://www.youtube.com/watch?v=pKuqy41qsAk

    Dr Thomas Szasz e a psiquiatria (legendado) [na página na Madinbrasil uma notícia de que estão diagnosticando, sem seu consentimento, Leonardo da Vinci com TDAH, hahahaha; imagina o risco se ele tivesse sido medicalizado, uma perda para a arte e a humanidade… coisas suspeitas e perigosas, para auditores da alma

    https://madinbrasil.org/2019/05/neurocientistas-tentam-diagnosticar-leonardo-da-vinci-com-tdah/%5D
    https://www.youtube.com/watch?v=itiSBNwAv8E

    4 – um livro que precisa ser lido
    Holocausto brasileiro, de Daniela Arbex

    e que virou documentário com produção, roteiro e direção da autora do livro, entre outr@s

    Holocausto Brasileiro I 2016 I Documentário completo
    https://www.youtube.com/watch?v=5eAjshaa-do

    Se você incomodar o establishment, será (1) preso se for pobre ou líder para outros pobres (milhões pelo mundo, e Lula no Brasil); (2) aposentado se funcionário público tão competente e honesto que não possa ser demitido (muitos no serviço público brasileiro); (3) demitido se ameaçar lucros bilionários (Peter Gotzsche, na Dinamarca, entre milhões anônimos); (4) torturado fisica e/ou psicologicamente se divulgar os crimes dos poderosos (Lula, Chelsea, Assange, vítimas judiciais da Lesa-Pátria, palestinos, ativistas… a lista é sem fim); (5) morto, de uma vez (os mortos da ditadura de 1964, os pobres ou periféricos, os “resistentes”, em autos falhos (atos falhos também) da policia); ou aos poucos todos os dias (todos nós).

    Mas temos música!

    Matchbox Twenty – Unwell (Official Video)
    https://www.youtube.com/watch?v=WziA88-n02k

    R.E.M. – At My Most Beautiful (Official Music Video)
    https://www.youtube.com/watch?v=UIXs66BPooY

    Sampa/SP, 01/06/2019 – 23:34

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