A ultradigitalidade, o ultra-arcaico e o primitivo, por Adriana C Saraiva

É a combinação entre o muito contemporâneo e "de ponta" com o absolutamente arcaico que tornam a ultradireita tão difícil de ser compreendida

A ultradigitalidade, o ultraarcaico e o primitivo

por Adriana C Saraiva

Nessa campanha, concretizamos finalmente o profundo abismo existente entre a esquerda e a ultra-direita:  enquanto os bolsonaristas são claramente digitais, nós – a esquerda, Lula – somos todos analógicos.

Não é apenas uma questão das tecnologias utilizadas, é mais profundo do que isso: trata-se de uma forma de conceber o mundo, pensar e fazer política, fazendo uso das noções mais avançadas – inclusive –  de manipulação psíquica, sem quaisquer regras ou princípios limitantes, traço há muito existente na política, mas aprofundado agora a escalas inimagináveis, em função do espaço aberto pelas tecnologias digitais.  No que concerne à comunicação, a ultradireita segue rigorosamente os moldes digitais: simula uma relação direta político / eleitor, focada em questões secundárias (poucas propostas, muita fofoca e difamação, muita teoria conspiracionista), tudo emitido em frases curtas (até simplistas), de fácil absorção e compreensão, embalado em um clima que cheira a improviso e “naturalidade”. Em tempos de excesso de informação e ausência de tempo, bem como, de capacidade de concentração (também induzidos pelo formato tecnológico) esses são elementos muito importantes para a efetividade comunicacional. Vale ressaltar também que essa forma de ver o mundo e se comunicar acopla-se com perfeição, em termos psíquicos, ao vale tudo do super-individualismo que vigora nessa era ultraneoliberal em que vivemos.

Mas há igualmente um grande paradoxo envolvendo a ultradireita global:  a despeito da digitalidade, essa vertente ideológica não abriu mão das práticas e valores mais retrógrados da política e da sociedade tradicional, quase medieval. No caso brasileiro, faz uso daquilo que se caracterizou como rol das práticas mais arcaicas de nossa história republicana. Estas vão desde o assédio, intimidação ou ameaça física e/ ou trabalhista aos votantes no oponente (voto de cabresto); farta utilização e distribuição de recursos federais (a rigor, proibidos pela legislação eleitoral); disseminação descontrolada de falsas notícias e, especialmente, violenta manipulação religiosa. Tudo isso constitui um imenso mix de práticas, a lá bricollage, que aliam o ultracontemporâneo ao ultraarcaico.

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Ao associarem à perspectiva digital essa imensa gama de práticas coronelistas, emergidas de nossa pré-história eleitoral, o bolsonarismo ultrapassa todos os limites previstos no jogo democrático moderno (e analógico), nos remetendo a tempos pretéritos da história ocidental, onde o fascismo imperou, ou a um futuro distópico, pressentido nas ficções científicas mais pessimistas.

Para além dessa associação arcaico- contemporânea, e em perfeita sintonia com o hiperindividualismo neoliberal, a política digital exacerba os desejos individuais mais recônditos, trazendo-os à flor da pele e fazendo crer que nada se opõe entre o indivíduo e seu desejo.  Remete-os ao primitivismo das emoções mais turbulentas e recalcadas, dentre elas o medo e ódio, sem freios. E, no que concerne ao sentimento religioso, desloca o indivíduo para o terreno do fundamentalismo obscurantista, espaço em que não há lugar para a reflexão e o diálogo racional e construtivo.

É essa combinação entre o muito contemporâneo e “de ponta” com o absolutamente arcaico (deplorável e as vezes inacreditável) e o que há de mais primitivo nos seres humanos, que tornam a ultradireita tão difícil de ser compreendida (por nós) e, portanto, combatida a altura.

A mudança requerida da esquerda nesse momento não passa necessária ou exclusivamente pela adoção da destreza digital esgrimida pela ultradireita. Ao contrário, diria que, mesmo que envolva saber usar essas armas digitais com alguma habilidade, é preciso desenvolver outros mecanismos – concretos, presenciais –  que tragam de volta corações e mentes, ativando perspectivas que emulem sentimentos e sentidos que não o medo e o ódio e levando os sujeitos a se envolverem criativamente (e porque não dizer, de forma revolucionária, já que absolutamente contra a corrente?), com perspectivas de transformação  do futuro, baseadas em emoções como solidariedade,  alegria e tolerância. Essa é, certamente, uma meta fundamental – e um imenso desafio – para nossa sobrevivência como sociedade, após termos sobrevivido aos terremotos deste período eleitoral. 

Por outro lado, isso também implica em mudanças profundas na própria postura da esquerda, entre elas, sua inquestionável acomodação institucional ao establishment e sua tendência a afastar de si tudo o que não é exatamente seu espelho ideológico, mesmo que se trate de perspectivas fertilizantes de movimentos e ações sociais reconhecidamente postadas à esquerda. Em outras palavras, é preciso também extirpar o narcisismo – e em casos mais graves, o autoritarismo – de esquerda. É sobre isso que nós, à esquerda, precisamos urgentemente pensar.

Adriana C Saraiva – Doutora em Ciências Sociais ELLA – UnB

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

2 Comentários

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  1. “Pra tudo se acabar na quarta-feira”, como dito por Martinho da Vila no samba enredo da Vila Isabel de 1984.
    A extrema-direita e os financistas vão abusar da liberdade e da tecnologia até não mais restar nenhuma institucionalidade de pé. E aí virão os malucos do Opus Dei com suas “soluções definitivas”, bloqueia tudo e mergulharemos na nova Idade Média.

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