Aos Democratas e à Democracia, por Luiz Alberto Melchert

É preciso ter sempre em mente que, a não ser que controlemos, haverá sempre um lobo dentro de nosso mais dócil cão

Aos Democratas e à Democracia

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

No dia 8 de dezembro de 2019, estive na Casa de Cultura Japonesa, na cidade Universitária da USP para dar uma palestra sobre cães guias. Era um ambiente hostil, pois  a audiência local e via internet era de supostos protetores de animais. Para essa categoria, os cães guias são o arquétipo da exploração, considerando-se seus usuários como escravizadores de seres indefesos. Não foi a primeira vez em que decidi, sem avisar ninguém, mudar de tema e partir para o da seleção genética. Expliquei que quem faz o animal é a Natureza, mas quem faz as raças é o ser humano conforme suas necessidades.

É a cruza controlada que faz com que animais e plantas tenham padrão e o comportamento próximo do esperado, com pequenas variações. Foi a cruza controlada que nos permitiu domesticar cavalos e jumentos que tanto nos ajudaram a chegar ao estado avançado em que nos encontramos. Foram os equídeos e os bovinos que nos auxiliaram a movimentar volumes e pesos inimagináveis. Foram eles que arrastaram as toras para construir os navios que os puseram no Novo Mundo. Foram eles que, baixados ao fundo das minas, sem nunca mais verem a luz do dia, que arrastaram vagonetes de minérios que se transformaram no aço que deu força à Revolução Industrial. Foram os cães que nos ajudaram a caçar quando ainda vivíamos nas cavernas. Resumindo, não seríamos nada sem domar a natureza que nos cerca para maximizar o proveito que tiramos dela.

Domar é o ponto fulcral do sucesso da Humanidade. Domamos animais e plantas, fazendo com que se reproduzam conforme nossas necessidades. Cavalos não seriam tão grandes e fortes, muito menos tão dóceis. Sem os cruzamentos programados, não haveria cães, somente lobos que seriam encarados como ameaça a ser destruída.

Quando se faz uma campanha de castração em massa ao mesmo tempo em que se condenam os criatórios, está-se fazendo uma seleção mais que inversa, perversa. É que só sobrarão os animais que não conseguimos pegar para castrar, ou seja, restarão os mais ariscos, os mais avessos à presença humana. Aniquilaremos os mais dóceis, os mais manipuláveis, os mais aptos ao convício com nossa sociedade. Resumindo, criaremos feras urbanas muito mais perigosas que as da floresta. Elas conhecem nossos hábitos e não nos temem. Os estudos mostram que os gatos voltam a ser selvagens depois de somente uma geração longe do nosso convívio, enquanto os cães precisam de três gerações longe dos humanos para tornarem-se lobos novamente. No Brasil, já começamos a ter problemas com gatos que se tornaram feras urbanas e atacam ninhadas de cães de pequeno porte, comendo-os todos, além dos pássaros, a ponto de a população de aves nos parques estar definhando.

É preciso ter sempre em mente que, a não ser que controlemos, haverá sempre um lobo dentro de nosso mais dócil cão, bem como algo muito parecido com uma jaguatirica dentro do mais pachorrento gato.

 Da mesma forma, haverá sempre um guerreiro primitivo dentro de cada ser humano, a não ser que a racionalidade seja imposta pela própria sociedade que se possa ameaçar. O nazismo e o fascismo, que  nada mais são do que o invólucro intelectual da barbárie latente em cada alma, encontra campo fértil na democracia mais ingênua.

Cabe aos democratas manter o conhecimento dos males que o extremismo, seja de esquerda, seja de direita podem causar. Da mesma forma que os criatórios de cães, gatos, cavalos e bois mantêm as características desejadas ao convívio com o ser humano, nossas escolas precisam manter vivo o conhecimento das ameaças provenientes de filosofias antagônicas ao bem viver. Isso só se consegue mantendo o acesso crítico ao conteúdo desses movimentos, em vez de tentar aniquilar suas fontes. Movimentos como o nazismo e o fascismo nunca serão extintos. Ganharão nova roupagem, até outros nomes como antiglobalismo, meritocracia ou anarco-capitalismo. Não passarão, porém, da mesma tendência á barbárie que mora nos corações dos insensatos, independente de sua formação ou dos seus títulos. Somente o estudo aprofundado e generalizado desses movimentos é que nos tornará aptos a nos defendermos condignamente. Há, entre nós, os que tendem aos gatos, cuja selvageria latente é mais superficial, e lobos, que se mantêm domésticos por mais gerações. Todos, porém, carregam uma ameaça escondida em suas almas. Reconhecer o fato é o primeiro passo para evitar catástrofes.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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