As Pernas da Serpente, por Nathan Caixeta

A trinca de liberais, um youtuber, outro comentarista político e o último deputado, não realizaram a defesa do Nazismo, mas vestiram as pernas da Serpente cozida em Weimar para justificar a liberdade de expressão

Salvador Dali

As Pernas da Serpente

por Nathan Caixeta

Pescando em frente a televisão, me peguei assistindo ao debate da emissora Jovem Pan, canal declaradamente bolsonarista. O tema era um tanto polêmico: a exclamação de Bolsonaro aos valores da Família tradicional, à pátria e à liberdade, ao lado do ditador hungáro Viktor Órban. Inflamado, um comentarista disparou: “tenho restrições ao regime hungáro quanto às reprimendas impostas aos veículos de mídia”, e prosseguiu quando acossado pela discordância do colega de bancada sobre o status ditatorial de Órban: “não há problema na intervenção do judiciário, Roosevelt tentou fazer isso”.

O debate prosseguiu nas escoras da rejeição do governo Bolsonaro entre os mais jovens. Os ataques aos institutos de pesquisa não são novidade. Mais à frente, o assunto recaiu na definição dos espectros políticos. Extrema-esquerda, esquerda, direita e extrema direita foram eleitos para a horda de chavões: e Cuba? e a Venezuela? e o PT? A definição oferecida traz o fiapo de lã que pretendo utilizar para costurar as meias da Serpente: “direita é tudo aquilo que prega a tradição e a supremacia da vontade individual em relação ao Estado” e “esquerda é tudo aquilo que propõe a revolução dos costumes e a participação do Estado nos meandros das relações sociais”. Ao ser lida, essa definição bem que caberia em qualquer dicionário escrito por Robespierre.

A temática da liberdade esfarelada ante o ping-pong de denominações políticas, encontra repouso em sua expressão utópica, enquanto autoproclamação do espaço onde “tudo é permitido”, recortado pela moral e distante o quanto possa da responsabilização, quando o poder autoproclamado respinga nos córneos de outra pessoa. O problema está no espaço exigido para o exercício da liberdade e nele todo o liberalismo filosófico se debruçou sem  solução satisfatória.

Edmund Burke esfregava a lâmpada mágica da moral imaginativa para defender a liberdade de opor-se àquilo que é estranho, protegendo os costumes sociais da invasão bárbara de ex-escravos, estrangeiros, pobres e todos que não carregassem a etiqueta da tradição Eduardiana. Nas masmorras do Século XX, Hayek foi mais ágil ao supor a liberdade como forma de “ataque” contra tudo aquilo que invadisse a privacidade demarcada pela noção da propriedade. Enquanto conceito abstrato, a propriedade vai ao encontro do Narciso que veste as capas do homem comum. Reflexo do poder “de poder”, diria Nietzsche.

A catastrófica roda onde giram as noções de liberdade, emperra sempre na restrição da demarcação. A oposição esmerada pelos comentaristas políticos da Jovem Pan entre Estado e indivíduo, é a imagem da galinha correndo atrás do ovo, procurando retornar ao seu estado primitivo.No fundo, reflete a nostalgia daquilo nunca vivenciado, mas sempre reunido ao pugilato político como quem contrapõe extremos, encontrando na média o conforto do senso comum: a liberdade deve ser preservada. Contra quem? Contra aqueles que para expandirem sua liberdade, seu poder, surrupiam dos demais. Conclusão: A liberdade age na ofensiva contra sua própria restrição.

Encaixotar esse dilema no conjunto de etiquetas políticas provoca a falsa sensação do Cavalo de Tróia: a defesa da liberdade carrega uma centena de nuances que desbancam a aparente posição de conservação dos costumes, enquanto exalta e justifica a expansão do poder daqueles que se vêem na posição privilegiada de Super-Homem. Nessa casca de Banana escorregaram Monark, Adrilles Jorge e Kim Kataguiri. A serpente chocada nos idos do Fuhrer, adormeceu nos berços do supremacismo, para ressuscitar embalada no ressentimento do homem comum e criar pernas ao absorver a liberdade como espaço de preservação dos costumes.

A trinca de liberais, um youtuber, outro comentarista político e o último deputado, não realizaram a defesa do Nazismo, mas vestiram as pernas da Serpente cozida em Weimar para justificar a liberdade de expressão como bandeira do conceito de liberdade. Ao peregrinar pelo liberalismo meia-cuia, a turma agarrou-se a utopia da liberdade pura, sem as máculas do poder.

A vantagem da posição utópica inaugura o contrafatualismo da dúvida razoável, algo tradicional nos discursos do falecido escritor Olavo de Carvalho e sempre presente no cercadinho do Capitão de Milícias. Se trata de uma técnica discursiva tão poderosa que Andrew Lobachevsky associou à psicopatia: a defesa dos costumes mediante a eleição de um inimigo, proteção da liberdade de agir segundo tais costumes, enquanto o poder se esquiva da multidão para subir ao pódio carregando a medalha do idealismo.

Olavo de Carvalho inaugurou a lógica da refutação construída pela dúvida do óbvio. Nessa lógica, o óbvio somente o é pelo recheio do senso comum. O questionamento lançado contra os efeitos da pandemia, a legalidade das eleições, o marxismo cultural na obra dos Beatles, dentre tantas pérolas, flamulam a bandeira na superfície. Entretanto, na profundeza da obra de Olavo, mais precisamente no artigo “As Garras da Esfinge”, Olavo deixa escondido em meio a discussão do poder global, seu próprio método de discurso: eleger algo oculto nos fatos reais para então colocar toda estrutura lógica em xeque, pois a contraprova supõe a autoevidência construída em meio ao discurso. Quando os fatos se levantam contra a dúvida, recorre-se ao argumento da manipulação que encobre a “verdade” sob o favor divino da libertação oferecida pelo evangelho. Direita x Esquerda, Ocidente x Oriente, Capitalismo x Comunismo, poder global x autonomia individual, são exemplos da polaridade enquanto discurso.

Bolsonaro certamente se inspirou em Olavo, reprisando um tipo menos professoral exibido por Donald Trump para lançar contra o mundo suas “verdades” eleitas. Ao ser refutado combate a realidade invasora com o argumento da manipulação, adicionando a ele, vejam só: a denúncia de tolhimento da liberdade de expressão.

A Serpente se esquiva no discurso da dúvida razoável, se utilizando da lógica da refutação para seduzir os desavisados. Mas são suas pernas protegidas pela fissura da liberdade que têm espalhado a polaridade como fundamento silencioso do neofascismo.

O caso da tríade de liberais é um sintoma da transmutação da política de massas. A polarização entre liberdade e restrição encerrada na defesa dos direitos políticos para a ideologia nazista, traz ao palco o inimigo da censura, carrega os costumes do liberalismo político, enquanto abre os flancos para a utopia do terceiro Reich. Esse é um exemplo do exercício do poder na era digital: a cultura do cancelamento vigia as verdades eleitas, enquanto a eleição de verdades têm no cancelamento seu alimento para lançá-lo como mecanismo de ocultação dessas mesmas verdades. As raízes do cancelamento se encontram no politicamente correto, ou na parte polida do ser humano que tem permissão para abandonar a esfera da consciência. O grande mal da modernidade, diria Freud, é o consumo do ego pela aparência, quando rompida a esfera da privacidade.

Enquanto o constrangimento, a autovigilância e as aparências embotam o indivíduo livre que alimenta a alma com curtidas no TikTok, a contraposição ao óbvio ornada da moral e protegida pela liberdade, abre alas para o autoritarismo erguido pela rivalidade entre liberdade e restrição. Bolsonaro deu exemplo ao questionar a justiça eleitoral, dedicando aos ministros do STF toda sorte de adjetivos para criar o clima de oposição entre pátria, família e liberdade e a bandalhada vermelha. Não importam os fatos, apenas o efeito que a dúvida é capaz de gerar. Tudo mais é ameaça à liberdade de expressão. Monark, Kim e Adrilles fazem a mesma trilha: identificam na existência de um partido nazista, que se expresse livremente, o antídoto contra o nazismo.

Ao agir contra sua própria restrição, a liberdade pretendida para conservação dos costumes demarca a resistência contra as igualdades, o reconhecimento das diferenças, a socialização do progresso técnico, servindo a manutenção do poder, sempre o poder “de poder”.

Nathan Caixeta, pós-graduando em desenvolvimento econômico no IE/UNICAMP e pesquisador do núcleo de estudos de conjuntura da FACAMP (NEC-FACAMP).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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