Cala a boca infeliz pastor, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Pode um pastor obrigar alguém a passar fome? A resposta é não. Isso atenta contra a dignidade humana tutelada pela Constituição

Imagem: Reprodução/Pinterest

Cala a boca infeliz pastor bolsonazista

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Um pastor evangélico ligado ao presidente Jair Bolsonaro disse essa semana que os mendigos têm dever bíblico de passar fome. A afirmação dele teve grande repercussão e merece ser comentada.

A primeira pergunta que a afirmação dele sugere é evidente: o que é um dever? 

Dever é aquilo que pode ser exigido de alguém. Quem está obrigado a fazer algo não pode se esquivar de sua obrigação. A recusa em cumpri-la resultará em consequências, que numa sociedade politicamente organizada só podem ser duas: reprovação moral e sanção jurídica.

O pastor pode reprovar moralmente a mendicância. Mas ele obviamente não pode impor sua crença àqueles que professam uma religião diferente da dele, pois a liberdade religiosa é garantida a todos (inclusive aos mendigos). Portanto, nem todos os mendigos precisam se preocupar com a reprovação moral de sua conduta. Eles podem comer o que lhes for dado e ignorar o que supostamente está escrito na bíblia e desprezar a interpretação desta que foi feita por aquele religioso.

Pode um pastor obrigar alguém a passar fome? A resposta é não. Isso atenta contra a dignidade humana tutelada pela Constituição Federal (art. 1°, III). Além disso, o Estado brasileiro tem o dever de adotar políticas públicas para erradicar a pobreza e promover o bem de todos (art. 3°, III e IV, da CF/88), bem como de tutelar o direito à alimentação (art. 6°, da CF/88). Essas são regras que se aplicam a todos os cidadãos e que independem da aprovação moral de qualquer líder religioso. No Brasil a bíblia não é a nossa constituição.

Em decorrência do que dissemos até agora, algumas conclusões podem ser extraídas.

1º – a moral do pastor se aplica apenas e ele e àqueles que a compartilham, ninguém pode obrigá-los a alimentar mendigos;

2º – as pessoas de outras religiões podem alimentar os mendigos sem se preocupar com o que disse o pastor;

3º – os mendigos podem se alimentar e até exigir que o Estado garanta sua alimentação;

4º – o Estado tem o dever de garantir a alimentação dos cidadãos, não precisando se submeter às interpretações da bíblia que foram feitas pelo pastor;

Pode um pastor forçar alguém de sua religião a cumprir a obrigação bíblica de passar fome que ele proclamou? A resposta é não. 

O art. 1º da LEI Nº 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997 tem a seguinte redação:

“Art. 1º Constitui crime de tortura:

I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;”

II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.”

A fome por um período prolongado acarreta intenso sofrimento físico a qualquer ser humano. Se ela for imposta a um mendigo sob os cuidados de um pastor por razões religiosas (ou porque ele odeia e discrimina quem não trabalha) a conduta dele configurará tortura e esse crime poderá ser objeto de sanção pela Justiça Criminal. Fazer apologia à prática da tortura também pode em tese ser considerado ato criminoso (art. 287, do Código Penal).

De tudo o que foi dito, podemos serenamente afirmar que o pastor bolsonarista falou bobagem. Se não calar a boca ele poderá ser processado por apologia ao crime de tortura. Se tentar obrigar mendigos a passar fome, ele poderá ser denunciado por um crime mais grave. 

A questão que merece ser feita agora é a seguinte: porque ele correu o risco de ser processado criminalmente ao proferir esse discurso? Algumas hipóteses podem ser levantadas. 

A primeira é a tentativa dele de se colocar publicamente como um antípoda do padre Júlio Lancelotti, religioso católico que tem sido criminosamente assediado por policiais em virtude de alimentar mendigos. Ao dizer que os mendigos devem passar fome, o pastor reforça a crueldade policial e legitima a perseguição imposta ao líder católico.

Num segundo momento, se levarmos em conta o contexto atual (o aumento da fome provocada pela política econômica de Jair Bolsonaro), o discurso do pastor fornece um anteparo discursivo para a revogação de políticas públicas que garantem a segurança alimentar. No limite, o líder evangélico pretende fragilizar a própria legislação que criminaliza a tortura e a apologia a esse crime, para permitir aos prefeitos e governadores bolsonazistas, bem como ao presidente da república, transformar a fome imposta política e religiosamente aos miseráveis numa instituição social admissível e até respeitável.

Após a derrota de Jair Bolsonaro, as autoridades devem começar a dar mais atenção a discursos dessa natureza. A liberdade religiosa não pode ser um escudo para a propagação da barbárie ou para uma inversão da moralidade que provocaria o colapso da civilização, a legalização da tortura e o assassinato em massa por inanição.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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Fábio de Oliveira Ribeiro

3 Comentários

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  1. Leitura simples da sitauação atual. Maioria de evnagelicos no Brasil segue a biblia. Os pastores que apoiam bolsonaro, nao conhecem Jesus Cristo. Os mandamentos do Filho de Deus estao na biblia. Logo a conclusão sensata de que nao conhecem a biblia. Discípulos da besta 666. ” Haverá falsos profetas usando meu nome para enganar os fiéis”. Mulher ajoelahada chorando. Deveria ´primeiro explicar o cheque de R$ 89.000,00 em sua conta bancária.

  2. Tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber…….Mateus 25:34.
    Cuidado com os falsos profetas, eles vem a vocês, vestidos de peles de ovelhas, mas por dentro sao lobos devoradores. Mateus 7:15.

  3. Lembro que o próprio evangelho exige que os cristãos combatam a fome, no Mateus 25,35-45, quando diz que é bendito do pai aquele que quando Jesus teve fome deu a ele de comer. Perguntado quando tinha feito isto, Jesus no juízo final disse, toda vez que o fizeste a um destes pequeninos foi a mim que o fizeste. Mais tarde falou a um que não ajudou a um faminto, que ele deveria ser condenado por não ter ajudado aos pequeninos. Não pode ser chamado nem de cristão aquele que diz coisas contrárias ao evangelho, quanto menos se arvorar o direito de conduzir outros. Fica difícil acreditar que um religioso cristão diga algo assim. Se o fez tem de deixar a função.

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