Eleições, golpismo e literatura, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Sempre que se sente ameaçado (por decisões do STF, pesquisas eleitorais, cobertura jornalística negativa, etc), Jair Bolsonaro ameaça usar a força bruta

Eleições, golpismo e literatura

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Aqui mesmo no GGN já falei algumas coisas sobre o Fake Militarism. Luis Nassif fez uma excelente análise acerca da possibilidade de violência política, mas o futuro é incerto. Bolsonaro é apoiado por alguns generais de pijama e por algumas hordas de policiais militares arruaceiros, mas encontra resistência entre os militares da ativa. Além disso as condições econômicas de grande parte da população brasileira continuam se deteriorando o que pode acarretar uma explosão social.

Sempre que se sente ameaçado (por decisões do STF, pesquisas eleitorais que atestam a possibilidade de vitória de Lula no 1º turno, cobertura jornalística negativa, etc), Jair Bolsonaro ameaça usar a força bruta. Ele diz que foi colocado na presidência por Deus e que somente o altíssimo pode tirá-lo de lá.

É evidente que Jair Bolsonaro trata a história do Brasil como se ela fosse um romance escrito por Deus em que ele mesmo aparece como personagem central. Portanto, convém refletir sobre a conduta dele levando em conta a teoria literária.

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Gilberto Freire afirma que:

“Os personagens de romance – seja o romance brasileiro ou russo, francês ou inglês, argentino ou anglo-americano – nãos e movem, a não ser excepcionalmente – repita-se – em vazios sociais. Não há, nem para a maioria de personagens principais – os que se destacam como ‘heróis’ ou como ‘vilões’ – nem para os seus comparsas, ausência daqueles condicionamentos sociais que podem ou não ser históricos – como são em Guerra e Paz, de Tolstoi – mas sem deixarem de influir como que autobiograficamente sobre os mesmos personagens, como experiências, sobretudo, de infância. O que é admitido pelos próprios interpretes anti-históricos da maior parte da literatura de ficção: aqueles que negam, nessa literatura, quer a existência do fator histórico, quer a importância do tempo. Evidentemente se referem ao tempo apenas histórico.” (Heróis e vilões no romance brasileiro, Gilberto Freire, Editora Cultrix/Edusp, São Paulo, 1979, p. 56/57)

Essas observações merecem ser levadas em conta levando-se a advertência feita por dois grandes escritores e teóricos da atividade literária:

“Os textos literários não somente dizem explicitamente aquilo que nunca poderemos colocar em dúvida, mas, à diferença do mundo, assinalam como soberana autoridade aquilo que neles deve ser assumido como relevante e aquilo que não podemos tomar como ponto de partida para interpretações livres.” (Sobre a Literatura – livro vira-vira 1, Umberto Eco, BestBolso, 2011, Rio de Janeiro, p. 13)

“É certo que a literatura jamais teria existido se uma boa parte dos seres humanos não fosse inclinada a uma forte introversão, a um descontentamento com o mundo tal como ele é, a um esquecer-se das horas e dos dias fixando o olhar sobre a imobilidade das palavras mudas.” (Seis propostas para o próximo milênio, Italo Calvino, Companhia das Letras, São Paulo, 1998 p. 65)

As personagens literárias existem em vazios sociais, mas os autores de romance não. Eles são seres históricos que fazem escolhas condicionadas por suas preferências estéticas, políticas, sociais, culturais, ideológicas, etc… Os leitores mantém uma relação íntima como texto. Eles pode imaginar quais eram as pretensões do escritor. Mas toda obra literária é polissêmica e funciona como um espelho liquefeito como aquele do filme Matrix. Assim que o tocam, os leitores começam a ser contaminados e a se transformar cada qual num objeto específico capaz de refletir, envolver e conter apenas sua própria imagem.

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Sondar a mente de Deus é algo mais perigoso do que penetrar nas cavernas da psique de um escritor. O autor do romance que Bolsonaro pretende vivenciar como personagem principal é caprichoso, belicoso e extremamente irônico. Ele escreve por linhas tortas e transforma o engano em ato para que sua obra possa se desvelar através dos erros cometidos por homens ambiciosos e sequiosos de poder como o presidente brasileiro.

Como personagem de um romance divino, Bolsonaro me parece numa situação bastante frágil. Ele diz não temer nada, mas deveria se curvar de maneira reverente apavorado diante de uma obra cujo desenrolar não será condicionado por seus desejos, caprichos e ações violentas. Não só isso. O homem que se diz religioso e pio deve ser humilde e reconhecer que sempre será o personagem de um romance cujos desdobramentos futuros ele ignora.

O tempo histórico não existe num texto literário. As palavras dele são mudas e tem por objetivo encantar e distrair os leitores. É possível ler os livros de autores como Stephen King e sentir medo em segurança. Quando fechamos um livro de terror a história fica contida dentro dele. Quando o terrorismo político se espalha pelo mundo ninguém pode se sentir seguro, nem mesmo um capitão que acredita ser general e que age como se pudesse realmente virar um ditador sem correr qualquer risco.

Aquilo que deve ser assumido como relevante num texto é diferente daquilo que pode ou não se tornar relevante no mundo dependendo de nossos atos. Ações autoritárias acarretam consequências legais e provocam reações políticas e militares imprevisíveis. O escritor do romance do qual Bolsonaro se considera personagem principal vitorioso pode facilmente transformá-lo em vilão derrotado. Ninguém sabe exatamente o que esse escritor misterioso pretende ao fazer o presidente brasileiro agir de maneira errática e acreditar que meia dúzia de militares marginais, policiais e pistoleiros podem escravizar mais de 200 milhões de pessoas.

Júlio César atravessou o Rubicão e triunfou, mas foi esfaqueado no Senado romano. Frederico Barba Roxa partiu em Cruzada para libertar a Terra Santa e morreu afogado ao cair num riacho não muito profundo vestindo sua armadura. Napoleão Bonaparte conquistou a Europa, foi derrotado pelo inverno russo e acabou confinado numa ilha no meio do nada. Adolf Hitler imaginou comandar uma raça superior, foi derrotado por uma raça que ele mesmo acreditava ser inferior e cometeu suicídio para não ser preso e humilhado.

O Brasil não é um vazio social. Nosso país contém histórias muito mais dramáticas, ridículas e imprevisíveis do que Guerra e Paz, de Leon Tolstoi. E Jair Bolsonaro é apenas um anão montado nos ombros de outros anões. As mesmas forças que o levaram à presidência podem esmagá-lo como se ele fosse um inseto peçonhento.

Sempre que Bolsonaro vomita ódio e se apresente como um eleito por Deus tenho a viva impressão de que ele pensa ser o ghost writer do altíssimo incumbido de, sozinho, escrever o futuro do Brasil assegurando seu bem-estar no capítulo seguinte. Em breve nós teremos a oportunidade de apreciar o final desse romance teológico-político.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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Fábio de Oliveira Ribeiro

1 Comentário

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  1. A gente abre a matéria esperando algo sobre literatura, depara-se com um proselitismo religioso infantil e cristão e três citaçõezinhas mequetrefes e fora de contexto. Das piores coisas que ja tive a oportunidade (infelicidade?) de ler na minha vida.

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