A nova condição humana, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Hannah Arendt não teve a oportunidade de ver a “sociedade do espetáculo” se tornar uma realidade compartilhada apenas virtualmente por bilhões de seres humanos.

A nova condição humana

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Em seu monumental A Condição Humana, Hannah Arendt afirma que:

“A queda do Império Romano demonstrou claramente que nenhuma ora de mãos mortais pode ser imortal, e foi acompanhada pela promoção do evangelho cristão, que pregava uma vida individual eterna, à oposição de religião exclusiva de humanidade ocidental. Juntas, ambas tornavam fútil e desnecessária qualquer busca de imortalidade terrena; e conseguiram tão bem transformar a vita activa e o bios politikos em servos da contemplação que nem mesmo a ascendência do secular na era moderna e a concomitante inversão da hierarquia tradicional entre ação e contemplação foram suficientes para fazer sair do oblívio a procura da imortalidade que, originalmente, foram a fonte e o centro da vita activa.” (A Condição Humana, Hannah Arendt, Editora Forense Universitária, 10ª edição, Rio de Janeiro – São Paulo, 2007, p. 30)

A grande filósofa reflete nesse fragmento sobre as duas formas absolutamente diferentes de viver e experienciar a vida que distinguem o mundo antigo do mundo moderno. A queda de Roma teria provocado uma ruptura. Antes dela o homem era compelido a agir visando conquistar a imortalidade na história através da ação. O colapso da civilização romana teria possibilitado a uma religião que valoriza a contemplação do mundo (como se ele fosse irreal) redefinir a condição humana em termos diferentes.

Hannah Arendt não teve a oportunidade de ver a “sociedade do espetáculo” se tornar uma realidade compartilhada apenas virtualmente por bilhões de seres humanos. O homem moderno contemplava o mundo como se não precisasse realmente participar dele, algo que provocou um esvaziamento da vida política. O homem pós-moderno participa ativamente de um mundo que só existe como representação nos computadores em rede, fenômeno que está redefinindo a própria Política de formas inusitadas e até dramáticas.

O homem pós-moderno contempla sobretudo a projeção de si mesmo numa representação virtual do mundo capaz de modificar a pólis (nem sempre para melhor). Portanto, podemos dizer que ele também ambiciona a imortalidade, não através da ação histórica como o homem antigo e sim mediante a propagação de seu digital self. O cristão contempla o mundo acreditando que sua alma imortal será recompensada no além.

A pós-modernidade parece ter uma consequência religiosa importante. O digital-self não se separa do corpo humano com a morte. Nem tampouco existia antes dele ser concebido. Segundo os cristãos, corpo e alma coexistem enquanto o homem está vivo. Mesmo sendo transportado e acessado pelo dono do smartphone, o digital-self dele só existe como um amontoado de dados dispersos em diversos servidores que também podem ser reunidos, compilados e analisados por algorítimos que pertencem aos magnatas do capitalismo de vigilância.

Os cristãos acreditam que o homem tem uma alma imortal criada por Deus. O digital self é construído pelo próprio homem enquanto ele está vivo e ativo na internet. Os rastros que o usuário deixa na rede mundial de computadores garantem uma nova espécie de imortalidade, bem como os lucros dos piratas de dados e traficantes de perfis de consumo. Mas esse ser imortal obviamente não tem a imortalidade da alma preconizada pelo cristianismo. A obsolescência dos computadores, a degradação dos dados e a quantidade estratosférica de informação produzida a cada segundo condenam cada digital-self a uma existência limitada e eventualmente irrelevante.

Quando uma rede social deixa de existir, cada usuário dela perde totalmente o contato com fragmentos importantes de seu digital self. 

Se os servidores de um banco são invadidos por hackers maliciosos e/ou criminosos, os digitais selfs dos clientes podem ser transformados em escravos dos invasores. Os dados, senhas e recursos financeiros deles ficarão à disposição de seus novos mestres, os seres humanos amargarão os prejuízos (e tentarão responsabilizar o banco).

A nova condição humana é assustadora. Cada um de nós é inevitavelmente compelido a criar um digital self, mas ninguém pode dizer realmente que será senhor de sua criação. Receptáculo da alma, o corpo morre se a ligação entre ambos for rompida (pelo menos é isso que dizem alguns religiosos). A ruptura entre o usuário e seu digital self pode ser provocado por fatores tecnológicos e humanos alheios à própria vontade dele.

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Algumas tradições religiosas acreditam que o corpo pode ser possuído por demônios ou espíritos. Nesse exato momento os digitais selfs de bilhões de usuários de internet estão sendo processados em tempo real para identificar padrões de consumo, produzir propaganda segmentada e induzir o consumo de produtos anunciados com lucro por Facebook, Amazon, Google, etc.

Os cristãos acreditam que o exorcismo é possível. Em razão de suas características, a rede mundial de computadores não pode ser exorcizada. Bolsonaro se comporta como se tivesse sido eleito por Deus. Todavia, as divindades que o elegeram foram criadas por especialistas em computação movidos pela ambição de obter o máximo de lucro com o mínimo de esforço utilizando a totalidade de informações disponibilizadas na internet pelos usuários de redes sociais e smartphones.

Em seu monumental “Ab urbe condita libri”, Tito Lívio diz que “agir e sofrer” eram virtudes tipicamente romanas. Hannah Arendt afirma que no mundo moderno a ação foi eclipsada pela contemplação.

O que possibilita e estrutura a pós-modernidade é a ilusão de conquistar, através da atividade exclusivamente virtual, uma nova espécie de eternidade paradoxalmente finita e precária. Cada um de nós é instigado (e também forçado) a criar um digital self que poderá ser utilizado por alguém para explorar nossas próprias fragilidades humanas.

Os algorítimos são incansáveis, metódicos, precisos e impiedosos. Eles são capazes de nos conhecer melhor do que nós mesmos nos conhecemos. Ao calcular probabilidades com base nas informações precisas que recebem e refinam, os arquitetos não humanos da nova condição humana podem modelar comportamentos, redefinir relações de produção e consumo e, é claro, deformar nossos sistemas políticos.

Nesse exato momento um algorítimo certamente está trabalhando para sabotar a eleição brasileira de 2022. O resultado final dos bilhões de cálculos que ele faz por segundo poderá ser uma guerra civil sangrenta, mas isso não lhe diz respeito. Como se fosse uma divindade, ele pode causar a morte de milhões de pessoas sem sentir culpa e é incapaz de sofrer como se fosse um ser humano. A vida ativa dele não é biológica, mas tem o poder de interferir no bios politikos de uma maneira que não poderia ter sido imaginada por Hannah Arendt. De qualquer maneira, precisamos nos debruçar na obra dela. Não como um repositório de conhecimento seguro e sim como uma fonte de inspiração.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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