Imagens da guerra, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Os jornalistas querem sincronizar o presente. Mas eles só podem fazer isso dessincronizando o futuro. Com o passar das décadas, passado e presente passam a coexistir

Imagens da guerra

por Fábio de Oliveira Ribeiro

– Porque você não fica deprimido ao ver caças e helicópteros russos atirando mísseis e bombas em alvos militares na Ucrânia? – algumas pessoas me perguntam.

A resposta a essa pergunta não é simples. Mas isso não significa que ela seja muito complexa.

Na vida de uma pessoa tudo está ligado a algo. Com isso quero dizer que as reações emocionais ao que ocorre no presente são condicionadas pelo passado. A memória funciona como uma caixa. Dentro dela estão as engrenagens que nos fazem experienciar o presente.

Eu nasci em 1964. E eu cresci vendo na TV as imagens de caças e helicópteros norte-americanos atirando mísseis e bombas em alvos supostamente militares no Vietnã. O que isso significa?

Significa que para mim militares russos e norte-americanos são iguais. Mas talvez exista algo mais tenebroso nas engrenagens da minha consciência que foi modelada na infância. Uma equivalência entre a desumanização dos vietnamitas que foram incinerados e triturados pelos EUA e os ucranianos que são agora incinerados e triturados pela Rússia.

A imprensa quer controlar o momento presente, sim. Os jornalistas se esforçam para que eu veja Zelensky como herói e os ucranianos como vítimas. Mas tudo que eu vejo são os ucranianos como aqueles vietnamitas cujas vidas não tinham qualquer valor. E Zelensky, bem… ele é apenas um vilão outrora chamado Ho Chi Minh.

O que a imprensa faz agora é irrelevante. O que foi feito no passado é mais importante.

A mente humana é cheia de truques. Mas as estratégias que a imprensa usa hoje acabam se tornando ineficazes por causa do efeito imprevisível do que foi feito no passado.

Os jornalistas querem sincronizar o presente. Mas eles só podem fazer isso dessincronizando o futuro. Com o passar das décadas, passado e presente passam a coexistir nas mentes que transitam pelo tempo revendo as mesmas imagens de novo e de novo até se tornarem incapazes de fazer qualquer distinção e julgamento. Tudo é igual porque tudo só pode ser igual. Mas algumas coisas são diferentes.

O homem do subterrâneo de Dostoiévski é um prisioneiro. Ele não consegue se sentir parte da sociedade em que vive. Eu, ao contrário, pertenço à sociedade que me criou. Mas o que me fez pertencer é precisamente aquilo que me tornou doente. Sim… essa pode ser uma explicação plausível e saudável para uma consciência programada pelas imagens da Guerra do Vietnã para ser doentia.

Eu não sinto absolutamente nada. A dor dos ucranianos não me deixa comovido. O sangue nos olhos dos pilotos russos não é capaz de me causar repugnância. Num passado distante, uma gangrena insana nasceu e cresceu na minha mente. As minhas reações presentes são condicionadas por lembranças infantis. Causa e consequência. E eu devo dizer que também não sentiria absolutamente nada se os mísseis e bombas estivessem sendo despejados nas cidades dos EUA… ou eventualmente na Rússia.

– Você é um monstro. – algumas pessoas talvez digam.

Sim, talvez eu seja o avesso do avesso do avesso do homem do subterrâneo de Dostoiévski. Ele, todavia, ainda podia refletir e julgar a si mesmo, o mundo e a si mesmo no mundo. A faculdade de julgamento me foi negada pela própria sociedade que colocou diante de mim na infância as imagens de pilotos norte-americanos incinerando e mutilando corpos vietnamitas.

E não devemos esquecer a contagem dos corpos. Quanto maior o número de corpos vietnamitas mortos, melhor era a imagem dos EUA. O orgulho no olhar do general que anunciava o sucesso porque as engrenagens da guerra estavam triturando mais e mais pessoas. Todo vietnamita morto era automaticamente contado como um inimigo eliminado. O sentimento de vitória extraído de uma pilha de cadáveres. Os russos também podem fazer isso agora, eu suponho. Deixem as pilhas de corpos ucranianos crescerem. Assim os generais russos ficarão tão contentes quanto William Childs Westmoreland.

– A vida no Vietnã é barata. – disse o sanguinário comandante norte-americano da carnificina. Eu lembro disso. Eu lembro disso.

A vida na Ucrânia também deve ser barata, eu suponho. Deixem americanos, franceses e alemães enviarem mais armas para lá. Assim as engrenagens da guerra continuarão produzindo cadáveres e imagens de destruição e morte. As crianças que as verem hoje serão parecidas comigo no futuro. O avesso do avesso do avesso da reflexão e do julgamento deve produzir mais do mesmo amanhã.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Fábio de Oliveira Ribeiro

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  1. “Uma cena do filme, descrita como uma das “sequências mais chocantes e controversas”, mostra o funeral de um soldado sul-vietnamita e sua família enlutada, enquanto uma mulher em lágrimas é impedida de jogar-se sobre um caixão já no túmulo. A cena do funeral é interposta com uma entrevista do general William Westmoreland – comandante das operações militares americanas na Guerra do Vietnam em seu auge, de 1964 a 1968, e Chefe de Gabinete do Exército dos Estados Unidos de 1968 a 1972 – dizendo a um espantado Davis (Peter Davis, diretor do filme) que “o oriental não dá tanto valor à vida quanto um ocidental. A vida é abundante. A vida é barata no Oriente.” Após uma tomada inicial, Westmoreland sugeriu que não tinha se expressado adequadamente. Após uma segunda tomada ter sido interrompida por falta de negativo, a entrevista foi refeita pela terceira vez, e esta foi a tomada incluída no filme. Davis posteriormente refletiu sobre a sequência, dizendo “horrorizado como estava quando o general Westmoreland disse que “o oriental não dá tanto valor à vida quanto um ocidental”, em lugar de argumentar com ele, eu quis apenas deixá-lo seguir seu fluxo de idéias…eu queria que o entrevistado fosse o foco, e não eu como documentarista.”

    Texto da Wikipedia, em inglês, sobre o filme “Hearts and Minds”. Fontes citadas:

    1 – Dittmar, Linda; and Michaud, Gene. From Hanoi to Hollywood: The Vietnam War in American Film, Rutgers University Press, 1990 via Google Books, p. 273. ISBN 0-8135-1587-4.

    2 – Jackson, Derrick Z. (July 22, 2005). “Derrick Z. Jackson: The Westmoreland mind-set”. International Herald Tribune. Retrieved January 26, 2008.

    3 – Desson Thomson (October 22, 2004). “‘Hearts And Minds’ Recaptured”. The Washington Post. Retrieved 2007-12-23.[dead link]

    4 – Katz, Sarah (January 2008). “An Interview With Peter Davis”. Center for Social Media. Archived from the original on 2008-03-02. Retrieved 2010-04-03.

    Imagine-se o que terá dito o general Westmoreland na primeira tomada, que ele julgou inadequada. Imagine-se.

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