Cesar Locatelli
César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.
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Entre lucro e verdade, Spotify escolhe o primeiro, por César Locatelli

60 anos de música de Neil Young ficaram de fora da plataforma que decidiu continuar com podcast negacionista

Créditos da foto: Neil Young (Darryl Dyck/The Canadian Press)

da Carta Maior

Entre lucro e verdade, Spotify escolhe o primeiro

por César Locatelli

Aos poucos destaca-se a combinação perniciosa, nos aplicativos de comunicação da internet, entre a busca de lucro com franco incentivo a uma inundação de discursos de ódio, desinformação e celebrações de violência.

Recentes informações internas, os chamados Facebook Papers, trazidas ao conhecimento público pela ex-funcionária do Facebook, Frances Haugen, dão conta que os algoritmos utilizados por essa empresa, para manter seus usuários mobilizados, acabam por incentivar publicações com esse tipo de conteúdo malévolo.

Ao buscar entender o que resultaria se um usuário genérico seguisse as orientações dos algoritmos do Facebook na Índia, uma pesquisadora interna da empresa conta o que apareceu em sua linha do tempo: “seguindo o feed de notícias desse usuário de teste, vi mais imagens de pessoas mortas nas últimas três semanas do que em toda a minha vida”.

“O feed de notícias do usuário de teste tornou-se uma enxurrada quase constante de conteúdo nacionalista polarizado, desinformação, violência e sanguinolência”, acrescentou a pesquisadora.

O confronto de Neil Young com o Spotify parece revelar outra face da mesma questão. Desgostoso por estar lado a lado, na plataforma Spotify, com o podcast de um negacionista antivacinas e divulgador de notícias falsas e teorias da conspiração, o músico canadense sentiu-se na obrigação de agir e convocar aqueles que sustentam a plataforma, os músicos, para fazerem o mesmo.

“O Spotify tornou-se, recentemente, uma força muito prejudicial por sua desinformação pública e mentiras sobre a COVID”.

Neil Young refere-se ao podcast Joe Rogan Experience (JRE), distribuído exclusivamente pelo Spotify, com estimados 11 milhões de ouvintes a cada episódio. “O Spotify tem a responsabilidade de mitigar a disseminação de desinformação em sua plataforma”, acrescentou Young.

O músico conta que foi alertado para essa divulgação de informações falsas por meio de uma carta aberta, assinada por 270 especialistas de saúde, preocupados com as teorias da conspiração infundadas e a transmissão de desinformação, especialmente em relação à Covid:

Diz a carta dos profissionais de saúde: “Ao permitir a propagação de afirmações falsas e socialmente prejudiciais, o Spotify dá, à mídia hospedada em seus domínios, a possibilidade de prejudicar a confiança do público na pesquisa científica e semear dúvidas na credibilidade da orientação baseada em dados oferecida por profissionais médicos. O podcast JRE, episódio #1757, não é a única transgressão a ocorrer na plataforma Spotify, mas um exemplo relevante da deficiência da plataforma em mitigar os danos que está causando”.

Young escreveu: “Eles podem ter Rogan ou Young. Não ambos”.

O site Daily Beast relatou que Rogan assinou, em maio de 2020, um contrato de exclusividade como o Spotify, para veicular seu programa, no valor de 100 milhões de dólares. Valor que parece evidenciar que a decisão do Spotify de permanecer com o podcast de Rogan passou a milhas de distância de qualquer preocupação ética.

Segue a íntegra da carta de Neil Young publicada em seu site.

* * *

Em nome da verdade

O Spotify tornou-se recentemente uma força muito prejudicial por conta da desinformação pública e das mentiras sobre a COVID hospedadas em sua plataforma.

Eu soube desse problema pela primeira vez lendo que mais de 200 médicos uniram forças, opondo-se às perigosas falsidades sobre a COVID que colocam vidas em risco e são encontradas na programação do Spotify.

A maioria dos que ouvem as informações não factuais, enganosas e falsas sobre a COVID no Spotify tem 24 anos. Uma idade em que são impressionáveis e podem, facilmente, oscilar para o lado errado da verdade.

Esses jovens acreditam que o Spotify nunca apresentaria informações grosseiramente não factuais. Eles infelizmente estão errados. Eu sabia que tinha que tentar trazer esse assunto à luz.

Todas as minhas músicas estão disponíveis no Spotify, sendo vendidas para esses jovens, pessoas que acreditam no que estão ouvindo porque está no Spotify, e pessoas como eu estão sustentando o Spotify, apresentando minha música lá.

Percebi que não poderia continuar apoiando a desinformação que ameaça a vida, promovida pelo Spotify para o público amante da música.

Antes de contar aos meus amigos da Warner Bros sobre meu desejo de deixar a plataforma Spotify, fui lembrado por minha própria assessoria jurídica que contratualmente eu não tinha o controle da minha música para fazer isso. Eu anunciei que estava saindo do Spotify de qualquer maneira, porque eu sabia que estava. Eu estava preparado para fazer tudo o que pudesse e mais um pouco para garantir que isso acontecesse.

Quero agradecer à minha grande e solidária gravadora Warner Brothers – Reprise Records, por estar comigo na minha decisão de retirar todas as minhas músicas do Spotify. Obrigado!

O Spotify representa 60% da veiculação da minha música por plataformas de streaming para ouvintes ao redor do mundo, quase todos os discos que lancei estão disponíveis – a música de toda minha vida – uma grande perda para minha gravadora absorver. No entanto, meus amigos da Warner Brothers Reprise me apoiaram, reconhecendo a ameaça que a desinformação sobre a COVID no Spotify representa para o mundo – principalmente para nossos jovens que pensam que tudo o que ouvem no Spotify é verdade. Infelizmente não é.

Obrigado Warner Brothers por, em nome da verdade, me apoiar e levar o golpe – perdendo 60% da minha renda mundial gerada nas plataformas de streaming.

O Spotify tornou-se o lar da desinformação, que coloca vidas em risco, sobre a COVID. Mentiras sendo vendidas por dinheiro.

Há uma vantagem para meus ouvintes, pessoas que podem estar ouvindo os 60 anos de música que fiz na minha vida até agora. É isso: muitas outras plataformas, Amazon, Apple e Qobuz, para citar algumas, apresentam minha música hoje em toda a glória de alta resolução – da maneira como ela deve ser ouvida, enquanto infelizmente o Spotify, continua vendendo a qualidade mais baixa na reprodução musical. Uma decepção para a arte. Mas agora isso é passado para mim. Em breve minha música viverá em um lugar melhor.

Eu realmente quero agradecer às muitas, muitas pessoas que me procuraram agradecendo por assumir essa posição – pessoas que são profissionais de saúde na linha de frente, pessoas que perderam entes queridos para a COVID ou que estão preocupadas com seus próprios filhos e famílias. Nunca senti tanto amor vindo de tantos.

Espero sinceramente que outros artistas e gravadoras saiam da plataforma Spotify, e parem de apoiar a desinformação mortal do Spotify, sobre a COVID.

Em nome da Verdade.

Neil Young

“Eles podem ter Rogan ou Young. Não os dois.”

Cesar Locatelli

César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.

4 Comentários

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  1. Para essas plataformas, não há escolha entre o lucro e a verdade.
    No Capitalismo, pai e mãe dessas plataformas, o lucro é a verdade.
    Infelizmente, nesse mundo, praticamente a quase totalidade dos usuários dessas pragas não se dá conta disso, e acham, ao navegar nelas, estar exercendo plenamente seu direito de escolha do que vê e ouve, sejam os critérios para tanto a ética, ou qualquer outra inclinação ou conveniência.
    Assim, qualquer vídeo idiota postado por alguém no kwai, ou tiktok (os chineses aprendem rápido, e se o Ocidente pode enriquecer com suas campanhas mundiais de idiotização do ser humano, eles também podem), é apenas a liberdade de fazer com que o mundo todo saiba que seu(s) autores são idiotas, e não apenas seus familiares e amigos mais próximos. E essas empresas seguem recebendo conteúdos gratuitos, produzidos às custas dos usuários, e enriquecem diariamente. Os “autores” do vídeo servem como vendedores comissionados, ganhando merrecas e merrecas, e trabalhando sem vínculo, sem previdência, sem nada. E, ao fim do dia, pobres do mesmo jeito. Ao terminar de ler um livro, você cresceu alguns centímetros como ser humano, aprendeu algo sobre o homem, o mundo. E ao terminar de ver uma bateria de vídeos engraçadinhos – que as pessoas enviam um atrás do outro, uma verdadeira avalanche deles, ou um podcast onde as entrevistas se limitam a revelar fofocas e coisas assim, o que cresceu em você?
    11 milhões de seres humanos assistindo cada transmissão desse tal Joe Rogan. É estarrecedor. Desculpem a pergunta retórica e talvez presunçosa, para aqueles que não aceitem a explicação acima, mas quantos desses 11 milhões já leram um livro, na vida? Essas pessoas passam horas assistindo essas programações, e saem delas sem ter aprendido nada, apenas vendo (e não percebendo) seus preconceitos e recalques sendo justificados, reforçados, e aumentados. Creio que esse é o cerne da atuação dessa gente tipo Joe Rogan, o grande insight que eles tiveram: eles descobriram que tudo de ruim que temos em nós, ao ser exposto por terceiros, dão audiência, seduzem as pessoas – sim, eu sou racista, eu sou negacionista, eu sou homofóbico, e não estou só! Ao assistir a tal JRE, estou ao lado de 11 milhões iguais a mim! Se algum Joe Rogan quisesse expor a verdadeira natureza do racismo, do negacionismo, da homofobia, ele teria que argumentar, obrigar as pessoas a pensar, raciocinar, e isso é muito chato, não dá para mim! Como é tão mais fácil e catártico apenas xingar, desprezar, encerrar-se em si mesmo, sabendo que faz parte de uma comunidade! 11 milhões!
    Neil Young está, certamente, perdendo boa parte de suas receitas atuais, com essa atitude. Para ele, ainda há escolha entre o lucro e a verdade.
    Para o Spotify, não. Essa questão não existe para o Spotify.
    E o ser humano médio, comum, hipnotizado pelo fascínio do que vê e ouve na tela do celular, sequer sabe que (ainda) há essa escolha.
    O que dá lucro a essas plataformas é muito divertido, sedutor, prazeroso. E isso parece ser o bastante.

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