Finde/GEEP - Democracia e Economia
O Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores de universidades e de outras instituições de pesquisa e ensino. O Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP) do IESP/UERJ é formado por cientistas políticos e economistas.
[email protected]

A encruzilhada em torno da chapa Lula-Alckmin: conjecturas e reflexões

Se o sinal de moderação petista for verdadeiro, pode-se esperar que os retrocessos observados nos últimos anos não sejam revertidos.

Ricardo Stuckert

Blog: Democracia e Economia

A encruzilhada em torno da chapa Lula-Alckmin: conjecturas e reflexões

por Luiz Fernando de Paula e Pedro Lange Netto Machado

A possibilidade de uma chapa Lula-Alckmin para as eleições presidenciais de 2022 é um dos temas que vem pautando o debate político brasileiro. Entre defensores e opositores, especialistas de áreas variadas buscam influenciar a opinião pública a respeito do assunto, bem como os próprios agentes políticos que podem fazer ou não acontecer a aliança entre o petista e o ex-tucano. O pano de fundo é não apenas o processo eleitoral do próximo mês de outubro, mas também as perspectivas de governabilidade em um eventual novo mandato de Lula a partir de 2023. Como se verá a seguir, as duas posições – contra e a favor – são respaldadas por argumentos plausíveis, o que ilustra a encruzilhada em que o país se encontra atualmente.

Um possível motivo para se opor à ideia de ter Alckmin como vice-presidente de Lula passa pela necessidade de impedir que Bolsonaro ou outro representante da extrema direita populista volte ao poder no futuro. Entre as explicações que a literatura acadêmica oferece para explicar o fenômeno do populismo, há a tese de que este se fortalece diante da convergência de governos de distintas ideologias em torno de preceitos ortodoxos na gestão da política econômica. Nesse sentido, quando eleitores se veem sem opções de mudança, tanto à direita quanto à esquerda do espectro partidário, o terreno estaria fértil para a vitória de políticos que se apresentam como anti-establishment e dispostos a mudar “tudo que está aí”.

Isso é particularmente dramático quando a ortodoxia liberal falha em promover o crescimento econômico e mitigar as mazelas sociais, como vem sendo o caso em boa parte do mundo ocidental no século XXI, onde movimentos e candidaturas populistas se fortaleceram.

No caso do Brasil, os governos PT implementaram políticas econômicas predominantemente ortodoxas ao longo de seus quatro mandatos presidenciais – combinação de superávits primários elevados, juros reais extremamente altos e câmbio flutuante (o assim chamado “tripé econômico”). Isso foi particularmente saliente em dois momentos: no primeiro governo Lula, quando a adesão ao receituário ortodoxo serviu para atenuar a crise de confiança desencadeada em 2002; e no segundo governo Dilma, quando a economia brasileira adentrou um ciclo recessivo do qual ainda não se recuperou. Entre esses dois momentos, houve inflexões importantes na política econômica do segundo governo Lula (com uma bem-sucedida política anticíclica no contexto da crise financeira de 2008) e do primeiro governo Dilma (com a controversa e criticada “Nova Matriz Econômica”).

Diante dessa experiência passada, assim como a “Carta ao Povo Brasileiro” de 2002, a aliança com Alckmin vem sendo interpretada por alguns analistas como um novo sinal de acomodação do Lula com a agenda ortodoxa-liberal (como ocorreu em seu primeiro mandato), indicando que não haverá rupturas significativas na gestão econômica do país. O perigo residiria, portanto, na permanência do sentimento de insatisfação popular com seus representantes do establishment por não atenderem à demanda por mudança. Como resultado, é plausível conjecturar a hipótese de a tragédia bolsonarista poder se repetir no futuro, ainda que com personagens diferentes.

Cabe ressaltar que a situação macroeconômica de agora é menos crítica do que em 2001/2002. Com efeito, assim atestam o volume de reservas cambiais do país, que aumentou  em quase 10 vezes em relação a 2002; o aumento na participação da dívida pública prefixada, que aumentou de apenas 2,2% em 2002 para 28,7% do total da dívida pública em 2021; a redução significativa da participação de não-residentes no mercado financeiro doméstico de 2002 a 2021; e, por fim, a expectativa de queda do IPCA acumulado de 10,1% em 2021 para 5,5% em 2022 (conforme Relatório Focus de 11/2/2022), contra uma inflação de 12,5% em 2002 (o que, por sua vez, abre espaço para redução futura na taxa de juros). Em suma, trata-se de uma constatação que pode colocar em xeque a necessidade de acomodação com a agenda ortodoxa-liberal, dado que sugere haver uma maior margem de manobra para implementação de políticas pró-desenvolvimento.

Mas a crítica à chapa Lula-Alckmin vai além do perigo populista e trata também da melhora de qualidade de nossa democracia. Se o sinal de moderação petista for verdadeiro, pode-se esperar que os retrocessos observados nos últimos anos – sobretudo no que tange ao incipiente estado de bem-estar social brasileiro, à precarização do mercado de trabalho e à piora nos indicadores sociais – não sejam revertidos.

Sob os auspícios da ortodoxia neoliberal, os objetivos consagrados na Constituição Cidadã foram interditados pelo imperativo de austeridade fiscal e reformas liberalizantes. Entusiasticamente defendida por setores de direita da sociedade, essa agenda vem se materializando em reformas institucionais como o teto de gastos e a reforma trabalhista – duas iniciativas que vem sendo criticadas por Lula, mas que foram defendidas por Alckmin. A contradição da possível chapa sugere, portanto, que podem se frustrar as expectativas de mudanças que um governo supostamente de esquerda deveria produzir em favor do bem-estar social e distribuição de renda, ainda que em detrimento das demandas dos setores de direita da sociedade. Em particular, é imperiosa a mudança na regra atual do teto de gastos, que impede a adoção de uma política fiscal contracíclica e tem levado a uma diminuição significativa dos gastos públicos discricionários, afetando em particular o investimento público. Além disso, a implementação de uma reforma tributária que combine maior simplificação tributária com progressividade de renda é crucial para diminuir a concentração de renda e riqueza no país.

Por outro lado, os que defendem a aliança com o ex-tucano adotam uma postura mais cautelosa a respeito do processo eleitoral e das perspectivas de governabilidade em um novo mandato petista. No caso do pleito presidencial, o favoritismo de Lula é incontestável, mas seria irresponsável acreditar que a vitória será tão fácil quanto as pesquisas eleitorais fazem parecer. No provável cenário de um segundo turno, a aliança com Alckmin poderia ajudar o petista a conquistar votos de uma parcela mais conservadora do eleitorado, que seria naturalmente resistente a votar no PT. Sob outra perspectiva, a chapa simbolizaria ainda a configuração de uma “frente ampla” de que tanto se falou não apenas para derrotar o bolsonarismo, mas para restaurar a dinâmica política do país, que adquiriu um clima tóxico e de belicosidade na segunda década do século XXI.

Mas o principal argumento a favor de sua conformação diz respeito às condições de governabilidade em eventual novo governo Lula. Nesse ponto, importa observar que a dinâmica do presidencialismo de coalizão mudou com o estabelecimento do orçamento impositivo, em 2015, que tirou do poder executivo um importante instrumento de barganha em sua relação com parlamentares: a execução de emendas,  que deixou de depender da discricionariedade do executivo e se tornou em parte obrigatória, incluindo as chamadas emendas do relator-geral, o que acaba por reduzir a lógica do gasto público a interesses puramente locais, sem qualquer coordenação com as políticas públicas elaboradas e executadas pelo governo federal[1].

Uma composição política que transcenda o campo da esquerda, como a aliança com Alckmin sinaliza, parece então fundamental para que o governo Lula fique menos vulnerável às pressões políticas do centrão, podendo negociar com este bloco em posição mais vantajosa, porque respaldado da esquerda à centro-direita.

Finalmente, para além das interações com o poder legislativo, deve-se observar que o cenário de globalização financeira impõe restrições à autonomia de qualquer governo nacional – em especial, quando se trata de um governo de esquerda em uma economia emergente, como a brasileira. Nesse contexto, em que medida uma política econômica que de fato confronte os interesses do mercado financeiro é viável de ser implementada? A experiência histórica e a literatura acadêmica sugerem que a margem de manobra para tanto é menor do que a popularidade de Lula pode fazer acreditar. Com efeito, em seus dois mandatos anteriores, o ex-presidente contou com uma conjuntura internacional extremamente favorável, que lhe permitiu conciliar uma política econômica predominantemente ortodoxa, em linha com as demandas do mercado, com uma agenda social até então inédita na história do país. Esse cenário, porém, dificilmente se repetirá, de modo que a aliança com Alckmin poderia amainar as desconfianças que o mercado financeiro pode ter a respeito de uma nova gestão petista.  

Em suma, o debate em torno da chapa Lula-Alckmin para as eleições de 2022 expõe a encruzilhada política e econômica em que o Brasil se encontra atualmente. Com argumentos consistentes dos que a defendem e a criticam, o diagnóstico de que os dois lados têm sua parcela de razão sugere um caminho espinhoso para um eventual novo governo Lula. Diante da constatação de que mudanças substanciais da agenda de política econômica são tão necessárias quanto difíceis de realizar, resta a esperança de que a necessidade de superação da tragédia política e socioeconômica que experimentamos hoje possa orientar o processo político vindouro.  Sem dúvidas, o contexto político-econômico demandará uma estratégia política e uma condução da política econômica por parte de um possível novo governo Lula com mais “arte” do que puramente “técnica”.

Luiz Fernando de Paula – Professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do GEEP/IESP-UERJ. E-mail: [email protected]

Pedro Lange Netto Machado – Doutorando em Ciência Política no IESP-UERJ e bolsista do CNPq e do DAAD. E-mail: [email protected]

Blog: Democracia e Economia  – Desenvolvimento, Finanças e Política

O Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores de universidades e de outras instituições de pesquisa e ensino, interessados em discutir questões acadêmicas relacionadas ao avanço do processo de financeirização e seus impactos sobre o desenvolvimento socioeconômico das economias modernas. Twitter: @Finde_UFF

Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP) do IESP/UERJ é formado por cientistas políticos e economistas. O grupo objetiva estimular o diálogo e interação entre Economia e Política, tanto na formulação teórica quanto na análise da realidade do Brasil e de outros países. Twitter: @Geep_iesp

O Núcleo de Estudos em Economia e Sociedade Brasileira (NEB) desenvolve estudos e pesquisas sobre economia brasileira, em seus diversos aspectos (histórico, político, macroeconômico, setorial, regional e internacional), sob a perspectiva da heterodoxia. O NEB compreende como heterodoxas as abordagens que rejeitam a hipótese segundo a qual o livre mercado proporciona a melhor forma possível de organização da economia e da sociedade.


[1] Pra um aprofundamento desta questão, ver o artigo de Carolina Resende, ”O Congresso e o Orçamento: o papel das emendas parlamentares”,  Nota de Política Econômica do GESP/IE-UFRJ, outubro de 2021.

Finde/GEEP - Democracia e Economia

O Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores de universidades e de outras instituições de pesquisa e ensino. O Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP) do IESP/UERJ é formado por cientistas políticos e economistas.

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador