O início da retomada de luta do povo Potiguara

Sugerido por humberto

Memórias de uma luta

Por Fátima Chianca

Em julho de 1981, durante a 33ª reunião da SBPC em Salvador, conheci o Tiuré. Surpresa por estar diante de um Potiguara, e vendo através deste contato um caminho de volta aos meus antepassados, ofereci-lhe imediatamente acolhida em nossa residência quando estivesse em passagem por João Pessoa. E não me enganei: posso dizer literalmente que foi principalmente através do aprendizado adquirido pelo convívio com Tiuré que me senti motivada a dedicar-me ao estudo da causa indígena, a ponto de hoje estar fazendo uma tese de doutorado em sociologia sobre o caso dos índios Potiguara da Paraíba.

Naquele momento Tiuré já estava passando por perseguições por mim desconhecidas. Poucos dias após estar conosco  fui procurada por um vizinho que me advertiu que Tiuré acabava de ser apreendido por um “camburão” da polícia. Havendo uma delegacia na nossa rua, corri imediatamente ao local. Lá encontrei o Tiuré sendo interrogado pelo Delegado. Observei surpresa que havia uma expressão de muito rancor dirigida a sua pessoa por parte do Delegado. Perguntei-lhe qual o crime que havia sido praticado pelo meu hóspede. Ele então falou que era um suspeito por estar sem documento, ser cabeludo e estar de calção, sem camisa. Adianto que morávamos na praia de Tambaú, onde se anda naturalmente de calção e sem camisa. Expliquei ao Delegado que este senhor era índio, logo se tratava de uma suspeita indevida e como era meu hóspede eu estava me responsabilizando pela sua estadia. Como a denuncia da prisão havia chegado ao Centro de Direitos Humanos da Diocese, o seu advogado, Dr. José Tavares de Andrade Filho, acompanhado de duas freiras do CIMI também chegaram à Delegacia. Diante da dimensão que os fatos estavam tomando, o Delegado resolveu imediatamente atender a minha solicitação, permitindo então que Tiuré fosse comigo. Evidentemente eu passei a entender que não era justificável o motivo daquela apreensão e procurei entender a sua causa real.

Naquele período estava tomando impulso o movimento dos Potiguara para a auto-demarcação do seu território, sendo o primeiro movimento do gênero no Brasil, e a contribuição de Tiuré foi decisiva por ter sido ele o apoio mais próximo ao líder do movimento, o Cacique Severino Fernandes. Além da experiência já acumulada nas lutas com os Parakatejês, de onde havia trazido documentação material de imagens fotográficas e filmagens que serviam como instrumento didático para a formação de uma consciência política, Tiuré era responsável pelos contatos externos, para captação de apoios inclusive financeiros. Certamente a ele se somavam os apoios institucionais provenientes de membros da Igreja progressista e da Universidade Federal. Desta forma fica claro o quanto se tornou uma pessoa muito visada, cujo fato que presenciei tornou-se diminuto diante da série de perseguições cada vez mais efetivas que passou a ser objeto. Fatos esses que culminaram com o incêndio da sua casa e um acidente no carro, reconhecidamente propositais e por fim sua prisão e tortura.

Presenciei também o retorno de Tiuré junto aos Potiguara em 2012.  Na verdade devido aos contatos de pesquisa para a tese agenciei seu intercâmbio com o Diretor do Laboratório de Antropologia Visual (ARANDU), da UFPB prof. João Martinho de Mendonça, permitindo que Tiuré trouxesse seu acervo de imagens de enorme valor documental para doar à Universidade Federal. Documentação capturada ao longo da década de 80, incluindo além do processo das lutas da auto-demarcação dos Potiguara, demais etnias do nordeste e norte do Brasil. Seu objetivo foi trazer para os Potiguara a acessibilidade a esse acervo, tendo em vista que o Campus IV que abriga a Antropologia, se encontra na cidade de Rio Tinto, implantada dentro da área indígena.

Acompanhei o desenvolvimento dos fatos diante da chegada de Tiuré à aldeia São Francisco. Além da grande surpresa e receptividade daqueles que haviam vivido o movimento das lutas dos anos 80, inclusive porque alguns pensavam que ele havia falecido, houve seu encontro com o ex-cacique Severino Fernandes: para ele a chegada de Tiuré renovou sua fé na “retomada”.

Vi aquele grande guerreiro, agora idoso, cego e solitário em sua choupana de taipa e chão batido, chorar e rir ao mesmo tempo, ao reconhecer a voz de Tiuré. A esperança que Severino Fernandes manteve, até o final de sua vida, de poder retomar aquele trabalho inacabado de demarcação de todo território Potiguara, iniciado nos anos 80, e ainda inconcluso, passava a ter perspectiva de continuidade. Àquela época, cansado de esperar as promessas da FUNAI, o povo Potiguara auto-demarcara os limites de seu território, em um ano de trabalho com a abertura de “picadas”. O exército, depois de muitos conflitos e prisões, resolveu fazer a demarcação do território, no entanto excluiu em torno de 14.000ha, onde havia a ocupação de importantes posseiros. Depois deste fato, em outras “retomadas” os Potiguara foram expandindo seu território, mas ainda restam áreas às margens do rio Camaratuba, que permanecem ocupadas por fazendeiros e usineiros, a exemplo da aldeia Taiépe,  cuja ocupação está documentada historicamente. Mas a expectativa não era apenas do Severino Fernandes, tal como se referiu Tiuré diante de um questionamento meu:

“Com os que sobreviveram as lembranças eram todas com relação à picada de 80. As emoções foram fortes quando alguns me diziam que tinha chegado em boa hora, pois iam retomar a picada para rever os 14 mil hectares perdidos. Afirmações feitas principalmente por Tonhô e Chico acompanhado do jovem cacique Cidinho. Que me ofereceram casa para morar e comida.

 Falavam como se esperassem minha adesão ao renascimento do movimento da picada. Diante disso não hesitei em ficar.”

Não fugir à luta me parece ser a grande característica do perfil de Tiuré:  ele reformulou seus planos de retorno imediato a Brasília, e abraçou novamente a causa do seu povo. O movimento retomou a abertura de “picadas” demarcando os limites, no período do final de abril de 2012 até o final do ano. O movimento foi interrompido,  (por razões que não cabem no momento sua analise), mas Severino Fernandes faleceu antes desse fato, levando consigo a alegria de continuar acreditando no lado guerreiro do povo Potiguara. Esse foi o merecido presente que Tiuré e seus companheiros lhe deram, mas teve seu preço: o Tiuré teve que enfrentar a justiça perante uma liminar concedida pela comarca de Rio Tinto proibindo a continuação da picada. Seu autor, o fazendeiro Madruga, dizendo-se dono legal da terra, e sentindo-se ameaçado no suposto direito o responsabilizava pelo reinício do movimento.

Maria de Fátima dos Santos Chianca

João Pessoa, 13.07.2013

Luis Nassif

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