Privatização da CEITEC joga para baixo do tapete possível corrupção em passaportes

Victor Farinelli
Victor Farinelli é jornalista residente no Chile, corinthiano e pai de um adolescente, já escreveu para meios como Opera Mundi, Carta Capital, Brasil de Fato e Revista Fórum, além do Jornal GGN
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Solução de empresa criada no governo Lula é mais barata e segura que a privada Fedrigoni, escolhida em 2018

Site da CEITEC/Reprodução

O projeto do governo de Jair Bolsonaro e seu ministro da Economia Paulo Guedes de privatizar ou simplesmente extinguir a empresa CEITEC (Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada) pode ajudar a ocultar o estranho caso da contratação de chips por parte da Casa da Moeda do Brasil para a emissão de passaportes.

Estatal com sede em Porto Alegre e criada em 2008 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a CEITEC nasceu com o objetivo de se tornar uma empresa estratégica no desenvolvimento tecnológico e industrial do Brasil.

Em um princípio, sua missão era atuar no segmento de semicondutores, criando soluções para identificação automática (RFID e smartcards) e para aplicações específicas (ASICs).

No entanto, em 2017, uma das soluções desenvolvidas pela empresa foi preterida: uma disputa para ser a fornecedora dos chips usados nos passaportes brasileiros. A escolhida pela Casa da Moeda do Brasil (que produz os passaportes) foi a empresa privada Fedrigoni Brasil Papéis, que utiliza um chip fabricado por uma empresa terceirizada.

Mais seguro e mais barato

Embora tenha passado desapercebida pelos grandes meios de imprensa, a decisão da Casa da Moeda deveria ter causado polêmica, já que, no conjunto, a solução apresentada pela CEITEC era mais barata e também mais segura.

Em termos de segurança, o projeto da estatal brasileira para os passaportes, que se chamava CTC21001, contava com um software que possuía a certificação Common Criteria, um atestado internacional que avalia todas as etapas de desenvolvimento de um produto.

Esta certificação é muito importante, já que se baseia em uma série de testes rigorosos realizados durante quase um ano – no caso do CTC21001, eles foram feitos entre os anos de 2016 e 2017 –, além do fato de que apenas sete outros produtos no planeta contam com ela, Isso comprova a qualidade da solução apresentada pela CEITEC, e também sua viabilidade para ser usada nos passaportes brasileiros e até para ser oferecida a outros países do mundo.

Já a solução entregue pela Fedrigoni, que foi escolhida pela Casa da Moeda, não possui essa certificação internacional de segurança. Ganhou por ser a mais barata na disputa? Segundo um especialista da CEITEC, também não.

Em diferentes ocasiões, a Casa da Moeda reagiu às suspeitas sobre os questionamentos às suas decisões afirmando que a entidade não adquire o chip isoladamente, mas sim a capa do passaporte já contendo o chip homologado, conforme as exigências e requisitos técnicos.

O argumento da Casa da Moeda é desmentido pela Associação de Colaboradores da CEITEC, que foi consultada por esta reportagem. “A CEITEC possui provas de que a solução apresentada foi testada e cumpriu com os requisitos mínimos da Casa da Moeda”, respondeu a Associação.

Os colaboradores da CEITEC também ressaltam que “a Casa da Moeda usa esse argumento para descaracterizar a solução da CEITEC, com a alegação de que que está comprando capas de passaporte e não chips de passaporte. A verdade é que a CEITEC desenvolveu uma solução que inclui capa, chip e software, e esse conjunto custaria mais barato do que o produto comprado pela Casa da Moeda”

Sucateamento com Temer

Vale destacar também que a solução apresentada pela CEITEC foi fruto de um investimento de 31 milhões de reais para o desenvolvimento de uma solução que incluísse chip e software usados na confecção das capas dos passaportes brasileiros, o que foi parte de um convênio de cooperação técnica entre a CEITEC e a Casa da Moeda realizado em 2012, ou seja, durante o governo da ex-presidenta Dilma Rousseff – documento abaixo.

Convênio-CMB-CEITEC

O enfraquecimento dessa cooperação começou após a chegada ao poder de Michel Temer, quando os projetos apresentados ou desenvolvidos pela CEITEC passaram a contar com menos apoio governamental.

Em paralelo a isso, a Fedrigoni passou a ser uma das empresas que mais conseguia novos acordos com o governo federal. A CGU (Controladoria Geral da União) detectou já em 2017 um aumento no volume de compras governamentais deste fornecedor, que passou a figurar entre os três maiores provedores da Casa da Moeda naquele então – página 5 do documento abaixo.

O informe também chama a atenção para o grande número de contratos da Casa da Moeda com a Fedrigoni em processos que não exigiram licitação, situação que está “insuficientemente justificada”, segundo o parecer da CGU – página 12 do documento abaixo.

Auditoria-CMB

Desestatização com Bolsonaro-Guedes

Esta situação se incrementaria ainda mais com a chegada ao poder de Jair Bolsonaro: o contrato mais recente da empresa com o governo federal é de maio de 2019, para “aquisição de papéis filigranados e resinados” para a Casa da Moeda, no valor de 89 milhões de reais – sem exigência de licitação.

Além disso, foi no atual governo que surgiram algumas coincidências a respeito dos contratos com a Fedrigoni e figuras relacionadas ao projeto de desestatização promovido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

A CEITEC foi um dos primeiros alvos do processo de desestatização iniciado por Paulo Guedes. Um dos primeiros cargos criados pelo ministro para essa missão foi o Secretário Especial de Desestatização, cargo que foi ocupado primeiramente por Salim Mattar, empresário ligado à Localiza, a maior empresa de aluguel de carros do Brasil – ele se afastou da empresa para assumir o posto, deixando-a sob os cuidados de seu irmão, Eugenio Mattar, e desde então a Localiza passou a figurar entre as empresas que mais recebem recursos em contratos da União, segundo levantamento da Revista Piauí a partir de relatórios da CGU.

A coincidência envolvendo Mattar e o caso específico da privatização da CEITEC está relacionada ao fato de que o agora ex-secretário (deixou o cargo em agosto de 2020) possui um vínculo familiar com Michel Jacques Giordani, um dos sócios da Fedrigoni no Brasil: o empresário é padrasto das sobrinhas de Mattar.

No dia seguinte após o CPPI (Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos) aprovar o projeto de desestatização da CEITEC, Mattar comemorou, com uma mensagem publicada em sua conta de Twitter que “a CEITEC é a primeira estatal a ser liquidada. Isso significa menos uma estatal que só onerava o cidadão pagador de impostos”.

No entanto, em setembro de 2021, uma decisão do TCU (Tribunal de Contas da União) interrompeu o processo de privatização da empresa, que se encontra em um limbo jurídico desde então – no próprio website da empresa, aparece o nome “CEITEC EM LIQUIDAÇÃO”.

A Associação de Colaboradores da CEITEC é uma das iniciativas que busca lutar contra a liquidação da estatal. Segundo a organização “A CEITEC é importante estrategicamente porque a microeletrônica é estratégica, está em toda a atividade econômica e de segurança civil e militar atualmente, e o Brasil não tem domínio dessa tecnologia. Nenhuma outra empresa no Brasil faz o que a CEITEC faz ou tem a infraestrutura que a CEITEC tem. No Brasil, a microeletrônica existe nas universidades, mas não existe desenvolvimento de tecnologia nacional fora de projetos acadêmicos”.

No Congresso, uma das parlamentares que mais questiona essa relação suspeita é a senadora Leila Barros (Cidadania-DF), autora do pedido feito ao TCU para se realizar uma auditoria na Casa da Moeda, para apurar o caso da compra de capas de passaporte.

“Por que a Casa da Moeda do Brasil aceita a capa da Fedrigoni, que utiliza chip importado com certificação apenas do hardware e sem a certificação do software? (…) Por que a Casa da Moeda do Brasil não abre uma licitação para compra de capas que exija hardware e software certificados?”, questionou a senadora em seu requerimento.

Victor Farinelli

Victor Farinelli é jornalista residente no Chile, corinthiano e pai de um adolescente, já escreveu para meios como Opera Mundi, Carta Capital, Brasil de Fato e Revista Fórum, além do Jornal GGN

5 Comentários

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  1. Teria que corrigir que não se trata de privatização da Ceitec e sim de liquidação (extinguir).

    Também seria interessante colocar que assim que o ex Secretario Salim Mattar encaminhou a liquidação da se retirou do governo, parecendo que cumpriu a missão dada pela família.

  2. Excelente investigação do Jornalista Victor . A Casa da Moeda deve explicações públicas. Sequer licitou, compra 100 milhões em papel ( c/ chip) de passaporte SEM LICITAÇÃO. A empresa Ceitec entregou a melhor e a ÚNICA solução nacional que existia em 2016. Muito estranho. E a empresa fornecedora, sem licitaçao, meramente representa uma empresa francesa que efetivalente produz a capa com o chip estrangeiro. Absurdo isso tudo.

  3. Parabéns jornalista Victor pela detalhada reportagem, apoiada em fatos e documentos, grande investigação. Infelizmente o uso político na tomada de decisões, tem levado nosso país a perder dinheiro suado em provável situações de favorecimento.

  4. Era muito óbvio desde o início a agenda do Salim Mattar, secretário do presidente que os ex-colaboradores da CEITEC apoiaram em peso. Depois de cumprir seu objetivo familiar, esvaziou uma empresa estratégica de alto capital intelectual. Os danos são irreversíveis e as mentiras espalhadas pelo Salim Mattar nunca foram publicamente confrontadas pela alta administração da CEITEC que nao queria perder a mamata, no Governo Temer-Bolsonaro.
    Administração Lesa-pátria.

  5. @Sergio Bampi: O Que significa produzir um chip? De acordo com o que o senhor entende sobre produzir um chip, quantos chips o CEITEC produziu até hoje?

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