A história do Festival de Águas Claras

Da Revista do Brasil

Paz, amor, bossa nova e rock’n’roll 

Guilherme Bryan

Inspirada no ambiente de Woodstock, uma nostálgica legião de jovens se aventurou nos festivais de Águas Claras. Alguns hippies, outros nem tanto. E ouviu de Raul a João Gilberto, numa comunhão movida a música e liberdade

Entre 15 e 18 de agosto de 1969, 500 mil jovens se reuniram numa fazenda do estado de Nova York, nos Estados Unidos. O Festival de Woodstock, uma década depois do surgimento do rock, simbolizava, mais que a adolescência de uma vertente musical contestadora por natureza, uma comunhão. Ainda que acompanhado de perto pelo olho gordo da indústria cultural – do disco, do cinema, da literatura, da moda, da arte e do comportamento –, aquele palco entrou para a história como uma grande celebração de “paz e amor”, ao juntar estilos de Joan Baez a Santana, Ravi Shankar a The Who, Credence a Janis Joplin, Neil Young a Jimi Hendrix. Woodstock não foi o primeiro, mas foi o maior, mais eclético e inspirador. Iniciativas semelhantes pelo mundo nos anos seguintes iriam, mesmo que não intencionalmente, remeter ao festival.

O Festival de Águas Claras é um dos mais lembrados. Sua primeira versão, em 1975, ocorreu na Fazenda Santa Virgínia, no município de Iacanga (SP). “Eu havia escrito uma peça de teatro e juntei um grupo musical para fazer a trilha sonora. Surgiu a ideia de encenar ao ar livre e começaram a aparecer algumas pessoas interessadas em tocar com a gente”, conta o organizador Antônio Checchin Júnior, o Leivinha. “Aí fizemos o Festival de Águas Claras, que nunca teve a intenção de ser parecido com Woodstock, mas haveria essa associação com qualquer evento que fosse feito daquele jeito.”

Paz, amor, bossa nova e rock’n’roll

Então com 22 anos, Leivinha utilizou a fazenda do pai como ponto de encontro de 30 mil jovens do Brasil e de outros países da América do Sul para ver grupos como O Terço, Som Nosso de Cada Dia, Mutantes, já sem Rita Lee, e Moto Perpétuo, do qual fez parte Guilherme Arantes. E por que a comparação era inevitável? “O público foi maravilhoso. Não tivemos uma briga nem nada que pudesse desprestigiar o festival”, lembra. “A história do nu do pessoal acontecia na hora do banho. Só um ou outro é que tiravam a roupa no meio do público, para aparecer. Apanhávamos laranja e milho, e o pessoal da fazenda fazia comida para distribuirmos.”

“Foi uma catarse coletiva e um exercício muito bonito de liberdade, numa época em que havia um anseio enorme de participação entre as pessoas e em que se provou que a causa de paz e amor bem que poderia ter dado certo”…

Raul Seixas

Ideias subversivas

O ambiente de ditadura dificultava qualquer evento que promovesse grandes reuniões. “Durante um mês e meio, eu ia praticamente todos os dias à Secretaria de Segurança tentar liberar o festival. Só consegui quando o secretário, na época o Erasmo Dias, me mandou para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) para assinar um termo de responsabilidade pelos atos de subversão que acontecessem”, lembra o organizador. “Depois me proibiram de fazê-lo novamente durante seis anos. Eles queriam nos prender de qualquer jeito, mas não tinham motivos, porque não era uma reunião política. Mesmo assim, levavam para o camburão quem estava andando pelado, mas a gente virava o camburão e todo mundo saía”, acrescenta Celsão.

João Gilberto (Domicio Pinheiro AE)

Um documento emitido pelo então ministro da Justiça, Armando Falcão, guardado por Leivinha até hoje, relata a visão do regime militar para a ocasião: “Durante a realização (do Festival de Iacanga), o uso de entorpecentes, bebidas alcoólicas e atos imorais foram abertamente praticados; aproveitando-se do ambiente próprio, propagadores de ideias subversivas vinculavam propagandas com as seguintes frases: ‘Viva a Mocidade Socialista’, ‘Viva Che Guevara’, ‘Viva a liberdade estudantil”.

Uma segunda edição do evento foi realizada só em setembro de 1981, com estrutura mais profissional, cobertura de TV e ingressos vendidos nas agências do Unibanco. Gilberto Gil, Luiz Gonzaga, Gonzaguinha, Alceu Valença, A Cor do Som, 14 Bis e Moraes Moreira estavam lá. “O show do Hermeto Pascoal varou a noite toda e o Egberto Gismonti tocou Palhaço, com grupo de palhaços que fazia a segurança dançando na frente do palco”, destaca Leivinha.

“O festival mantinha um espírito hippie tardio. O Brasil estava décadas atrás dos movimentos mais libertários e de contracultura europeus e americanos. Para se ter uma ideia, o romance On The Road, de Jack Kerouac, inspirador do ideário hippie, só chegou por aqui no início dos anos 80, com quase três décadas de atraso”.

O cinegrafista Adauto Nascimento prepara um documentário com material inédito registrado em 16 milímetros, 81 em Iacanga. “O festival reuniu grandes nomes da música brasileira e as pessoas iam para viver dias de harmonia e liberdade. A maioria se emociona ao falar dele. Todos querem ver essa história contada”, garante.

Um projeto de documentário também está sendo tocado por Thiago Mattar, com apoio de Leivinha. “Tem muita gente que nunca ouviu falar desses festivais, queremos mostrar que foi possível termos um festival de música nos moldes de Woodstock em plena ditadura militar”, diz o diretor, que espera finalizar o trabalho até 2012.

Lama milagrosa

Fiel ao estilo

Celsão foi uma das últimas pessoas a sair do festival. Até hoje põe a mochila nas costas e o pé na estrada

Em junho de 1983 ocorreu a terceira edição, também muito eclética, com Armandinho, Dodô e Osmar, Arthur Moreira Lima, Egberto Gismonti, Fagner, Premê (ainda Premeditando o Breque), Sandra Sá (ainda sem o “de”), Paulinho da Viola, Sá & Guarabyra, Erasmo Carlos e Wanderléa. “O Erasmo Carlos queria um Landau para chegar à fazenda. Mas ele e a Wanderléa subiram atrás de um trator e foram assim até o palco. Anos depois ele me disse: ‘Guardei aquela lama milagrosa numa caixa de fósforos’ ”, conta Leivinha.

A entrada de Raul Seixas, no segundo dia de show, foi uma grande frustração. Com ele chapado, seu show teve de ser em playback. Parte do público, irada, passou a gritar por “rock” o tempo todo e ofuscava outras apresentações. Quem pacificou o ambiente foi Walter Franco, entoando “tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo” como um mantra até ser seguido por toda a multidão. Para Leivinha, o apogeu dessa edição foi a participação de João Gilberto: “Ele subindo num palco às 6 da manhã, com o sol nascendo, e 70 mil pessoas molhadas de chuva, na lama, cantando junto ‘isso aqui é um pouquinho de Brasil’ foi de arrepiar”.

Matar a saudade

O cinegrafista Adauto prepara o documentário 81 em Iacanga, commaterial inédito

A hippie Rosa Cheixas, que adota o codinome Sétima Lua, tinha 21 anos e fazia artesanato em São Paulo quando tomou o trem em direção a Iacanga. “Meu namorado e eu chegamos lá 15 dias antes. Não havia ninguém ainda. Então pegamos uma lona preta e armamos uma tendinha”, lembra. “O festival foi muito legal, com pessoas de cabeça bacana, quecompartilhavam tudo. Era sexo, drogas e rock’n’roll, no melhor sentido. Gilberto Gil, Hermeto Pascoal e Moraes Moreira eram nossos heróis, expressavam o que pensávamos. O Raul era um cara sem comentários, hiperesperado. Mas só interagiu com a gente rindo por estarmos na lama, porque, cantar, ele não cantou (risos).” Rosa gostou tanto de Iacanga que resolveu se mudar para lá em 1984. Teve três filhos e hoje, com 47 anos, dá aulas como voluntária, trabalha com reciclagem de jornal e cuida da neta Sofia, de 3 anos.
O conjunto paulista Língua de Trapo também devia tocar em 1983, mas não conseguiu: “Choveu muito e formou um lamaçal que impedia chegar ao palco. Alguns artistas foram levados de helicóptero, mas estava anoitecendo e, por segurança, nos comunicaram em cima da hora que não haveria o nosso show. Já em 1984 fizemos meio show, porque começou a ventar tanto que duas colunas de som caíram no palco, e saímos correndo. Nosso guitarrista, Sérgio Gama, ficou feliz porque o Raul Seixas pediu a guitarra dele emprestada”, diz o vocalista Laerte Sarrumor. “No palco e nos bastidores, havia estrutura de um grande show para ser televisionado. Mas na plateia o clima era mesmo meio hippie, com pessoas acampadas e a sensação de liberdade. Só não sei se havia um embasamento filosófico ou se era pura curtição.”

Da quarta edição, em pleno Carnaval de 1984, poucos têm saudade, a começar pelo próprio organizador. “Fui meio obrigado a fazer por questão de patrocínio. Eu sabia que aquela não era a época certa para esse tipo de coisa. Depois, achei melhor parar com tudo”, lamenta. O hoje advogado Leivinha toca flauta, pinta e planeja construir uma pousada na Chapada dos Guimarães (MT) –  a fazenda Santa Virgínia foi vendida após a morte do seu pai. E ainda sonha em realizar na chapada um show com o músico grego Vangelis e uma orquestra sinfônica. “Não sei se aquilo se repetiria. Mas eu teria curiosidade em ir, caso acontecesse outro show”, diz Rosa Cheixas. Celso Fonseca também: “Eu estaria lá, como o tiozão de Iacanga. Tenho muitas saudade daqueles dias; mesmo sendo muito ingênuos, nossos sonhos voavam alto”.

Luis Nassif

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. eu estive nos festivais.

    Nossa c fiquei emocionada ao encontrar essa pagina,fui umas da muitas jovens hippies q participou de alguns festivais.

    saudades de um tempo q n volta mais,os jovens da atualidade jamais terão noção do q vivemos,da nossa liberdade,msm na fase  final da ditadura. Parabéns ameiiii….

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador