As invisíveis (2)
por Walnice Nogueira Galvão
Em todos os campos a história se repete. Na ciência, então… Ninguém lembra que até hoje só uma pessoa ganhou dois prêmios Nobel, um de Química e outro de Física, e essa pessoa era uma mulher, Marie Curie. Ora direis, Linus Pauling também ganhou dois… Sim, mas um de ciência e outro “da Paz”.
Em Bruxelas, Tatiana, 10 anos, que acabara de fazer um trabalho escolar sobre a cientista, escandalizou-se ao descobrir uma rua Pierre Curie e nenhuma rua Marie Curie. Escreveu então à prefeitura, reclamando, e teve a alegria de ver os dizeres da placa trocados para “Rue Pierre et Marie Curie”. Já é um avanço…
O filme Estrelas além do tempo mostra um grupo de mulheres negras cientistas da NASA que fizeram todos os cálculos de base do programa espacial americano, para o lançamento dos primeiros foguetes, e sumiram. Só se ouve falar nos homens, culminando em Neil Armstrong pisando na Lua em 1969. No mundo real, é bem verdade que Barack Obama ainda conseguiu condecorar uma das três, quando já atingira os 97 anos… mas antes tarde do que nunca. Uma precursora foi a cosmonauta russa Valentina Tereshkova, que fez o segundo vôo sideral, em 1963, circumnavegando a Terra, logo depois do pioneiro Gagárin
Tudo isso mostra que a bióloga Bertha Lutz não era desavisada quando incomodou Deus e todo mundo por uma questão que parecia de somenos. A reputada cientista, delegada do Brasil à conferência de criação da Organização das Nações Unidas em 1947, era uma das 8 mulheres no conjunto de 850 delegados homens. Isso é que é representatividade, dirão os céticos, ou seja, uma representatividade de aproximadamente 1 %… Ela importunou os delegados, reivindicando uma explicitação de que os direitos humanos eram “direitos dos homens e das mulheres”, por extenso. Porque, dizia ela, tudo aquilo que utiliza o adjetivo “humano” logo é usurpado pelos homens como privilégio deles, e as mulheres mais uma vez ficam de fora. Felizmente ela conseguiu impor seu ponto de vista, e lá estamos nós na Carta da ONU, desde então, graças a ela.
Nas artes o panorama não é mais animador. No Louvre há 35 mil obras de arte, mas dessas somente 50 são da autoria de mulheres, mesmo levando em conta as de Elizabeth Vigée-Lebrun, que era a pintora oficial de Maria Antonieta e da qual o museu preservou várias telas. É a mulher artista mais conhecida dentre todas.
As famosíssimas pintoras italianas Sofonisba Anguissola (1532-1626) e Artemísia Gentileschi (1593-1656), diretoras de ateliês e artistas exclusivas de cortes aristocráticas, foram recentemente valorizadas e resgatadas da invisibilização,. Telas das duas foram até atribuídas a outros pintores, homens é claro, e levaram séculos até serem reconhecidas, recebendo atualmente exposições, livros e filmes.
Nem a música escapou ao apagamento seletivo. A cantora líricaMarília Vargas, soprano que passou anos na Suíça especializando-se em bel canto barroco e renascentista, tem feito trabalhos de pesquisa e difusão de compositoras mulheres de música erudita, em CDs, concertos, programas de rádio como Mater musica na Rádio Cultura, e TV. Todos já ouviram falar da abadessa Hildegarde von Bingen, do século XII, sábia, escritora, poeta e compositora de mérito. Mas Marília incluiu também Chiquinha Gonzaga, a quem considera grande artista. E ainda vai além disso, vasculhando outras matrizes em busca de outras musicistas, inclusive brasileiras. E já achou, e gravou, preciosidades, como a composição de uma anônima veneziana da era barroca que interpela o amante, em vias de adormecer, porque quer mais, e o invectiva de modo muito engraçado: “O tardo! O pigro!”…
É bom lembrar que durante séculos os cientistas achavam que as formigas e as abelhas, nos reinos que constroem, tinham um Rei. Pois não lhes passava pela cabeça que uma figura única e de tamanho bem maior, alimentada e mimada por todas as outras, poderia ser outra coisa senão um macho. A surpresa é que formigueiros e colmeias nunca tiveram Reis, mas Rainhas, e passam muito bem obrigadas sem eles. Surpresa, surpresa!
Tudo isso mostra que a bióloga Bertha Lutz sabia o que fazia.
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP
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