João Ubaldo e Ariano Suassuna: desencontros cruzados

Enviado por J.Roberto Militão

Do blog de Mércio Gomes

Debulhando o milho e o feijão: As trajetórias paralelas e confluentes de João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna

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João Ubaldo Ribeiro era um mulato claro do litoral da Bahia, espevitado, mundano e dengoso; Ariano Suassuna um branco cobreado do interior da Paraíba, reservado, afável e respeitoso. Nessa pequena distinção inicial desenha-se a diferença entre suas trajetórias na vida e na literatura, e fornece o arco de nossas possibilidades como povo e como cultura.

João Ubaldo fez uma literatura puxada para os dilemas e dissabores da sociedade bahiana, por extensão, da vida urbana brasileira, com alta presença do negro, do mulato, da dureza acachapante do poder da elite e dos modos como se safavam os mandados e os desmandados. Uma vertente literária já amplamente trilhada por Jorge Amado. Indo mais longe, João Ubaldo escreveu Viva o Povo Brasileiro e nele reviu nossa história social pelo trajeto da nossa elite tradicional em conflagração com o povaréu mulato, desde sempre urbano, antenado para o mundo, que luta por um lugar ao sol. Sua visão do Brasil é sociológica, onde a verdade só desponta pela autoconsciência da vida coletiva.

Ariano puxou pela ralé de branco e índio, pontilhada por negros e mulatos destemidos, todos vivendo intensamente o meio rural, a fazenda de gado e bode, a periferia do canavial, a cultura cabocla se constituindo por mitos indígenas que viram lendas e por lendas ibéricas que se transformam em mitos e rituais. Sua versão do Brasil é espiritual e fenomenológica, onde a verdade se esparrama nas entrelinhas das palavras e dos gestos, só captável pelo sentimento poético que existe em cada um de nós.

Ambos eram da elite nordestina, filhos e netos de homens de respeito na sociedade, donos de terras, acostumados ao mando senhorial. Quatrocentos anos de tradição asseguravam suas posições sociais e suas certezas de vida. O bahiano com traquejo para lidar com a malemolência da cultura negra predominante no povo oprimido, que se salva da indignidade social por uma infiel submissão à crua realidade e pela descrença da palavra empenhada. O paraibano caminha pelas áridas caatingas sertanejas, solidário na luta pela sobrevivência dura, desapeado do mando do fazendeiro, vivenciando a resiliência e a esperteza do zé povinho.

Ambos tiveram pais e mães marcantes. O pai de João Ubaldo o fazia ler e decorar os sermões de Vieira e a aprimorar a caligrafia. Disciplina, ordem e capricho. Queria-o bacharel, advogado, funcionário público, já antevendo a queda do prestígio e do poder econômico da elite tradicional e o advento de uma burguesia mesclada com a classe média patrimonialista. Ventos de mudança econômica arejavam a Bahia sonolenta. Ariano sentiu a ausência do pai desde os 3 anos de idade, assassinado por adversários políticos. Mas o guardou como baliza moral, tentou ressucitá-lo no seu livro O Reino da Pedra e só aos 85 anos sentiu algo parecido com o perdão para os assassinos. Seja que mudança venha, o homem é antes de tudo o homem honrado. O sertanejo, o arrabalde pernambucano, a vida travestida pela arte popular não deixariam que o mundo de fora prevalecesse.

Dos pais e do quê lhes propiciou o meio social, ganharam a coragem para desafiar seus destinos pré-ordenados, e teceram sem titubeios suas próprias trajetórias. A coragem não lhes faltou na palavra e nas atitudes. Se fizeram homens de palavra, dada a quem quisesse ouvir ou ler, empenhada na moral de suas atitudes, libertária para o mundo. Embora ambos fossem bacharéis, fugiram da armadilha da lábia e da retórica insinuante, do sofisma fácil ou rebuscado, das desculpinhas fugidias, das firulas dialéticas e até mesmo da arrogância da certeza positivista.

Anísio Teixeira, o grande filósofo da educação brasileira, um bahiano de Caetité, distinguia, ecoando Os Sertões, do fluminense Euclides da Cunha, dois tipos de bahianos ou nordestinos. O do interior, que ele chamava de “bahiano do bode” e o do litoral, o “bahiano do caranguejo”. Euclides perorou que o sertanejo, por ser uma mistura de raças há mais de 300 anos, já estava se tornando uma nova raça em si. Isto é o que constituía sua têmpera inquebrantável. Já o brasileiro litorâneo (especificamente o mulato) tinha menos consistência de mistura e assim era um “neurastênico”. Isso era no tempo em que assolava a ideologia do darwinismo social que propugnava pela existência de raças superiores e raças inferiores, e, ainda pior, que o mestiço era mais inferior por não ser de uma raça pura, qualquer que seja.

O Brasil se curvava à ciência, e mesmo Euclides não escapou dessa injunção. Poucos, talvez só mesmo Manoel Bomfim, ainda em 1905, por sua crítica pioneira ao colonialismo, não se submeteu à ideologia racista. E por isso ficou isolado e renegado por seus contemporâneos. É só com o movimento modernista, a partir da década de 1920, e com Gilberto Freyre e sua Casa Grande e Senzala, de 1933, que teríamos a redenção da autoestima do brasileiro, pela assunção de sua história cultural, ainda que temperada pela crueldade e pela injustiça, por sua especificidade linguística, melíflua, desfeita de regras lusitanas e carregada de um novo vocabulário, pela crítica antropológica ao racismo e pela valorização moral e cultural da mestiçagem.

No plano da realidade social, a mestiçagem foi um fenômeno absolutamente “natural” no Brasil. Para a cultura nova que se formava, não havia pecado abaixo do equador. Freyre explicava que tal se dera porque os portugueses – celtas e visigodos já acostumados com mouras e negras entre seus habitantes — não tinham preconceito racial e transavam à vontade com índias e negras, ao contrário de anglo-saxões, ingleses, holandeses, franceses e, em certa medida, até espanhóis.

João Ubaldo e Suassuna, com diferença de 14 anos um do outro, amadureceram sob essa nova ética e nova visão do Brasil. Modestamente, não se sentiam inferiores ao mundo dominante. Vivenciaram o tempo em que o Brasil estava em ascensão política, cultural e econômica. Que a sociedade avançava, com características próprias, fiel às suas tradições, esperançosa de curar suas chagas, de alcançar sua própria virtude, e de chegar a um ponto de grandeza diante das demais nações. Reconheciam as barbaridades brasileiras, sobretudo a desigualdade social permanentemente reforçada entre elite e povão, o patrimonialismo operante em todas as frentes, cooptando com seu canto de sereia a classe média ascendente, e nossa forma indecifrável e por demais incontornável de racismo. Fizeram parte da corrente intelectual que achava que podia resolver esses problemas sociais por seus próprios recursos culturais. Viam, entretanto, que o Brasil se abria para um novo estilo de modernidade, desfraldado pelos Estados Unidos, ainda que nos arrufos da Guerra Fria. Para que lugar o Brasil poderia ir? Precisavam e queriam entender melhor como iria se desenrolar essa progressão histórica e que papel cada um deveria ter.

João Ubaldo saiu do Direito para virar cientista político, de estirpe marxista. Esforçou-se para ser um bom comunista, como modo de ser no mundo desigual. Desanuviado, ao invés da União Soviética, estudou nos Estados Unidos, falava e escrevia um inglês escorreito, viveu na Alemanha, passeou pela Europa.

Ariano saiu do Direito para virar dramaturgo, mantendo seu conservadorismo católico, buscando na arte e na vida popular, e certamente acreditando numa ética da elite nacional, para a salvação coletiva. Jamais saiu do Brasil, mal punha os pés fora do Nordeste, por sincero e tinhoso desinteresse. Em certos momentos da história brasileira, os dois se confrontaram em visões políticas divergentes. Por exemplo, o golpe militar de 1964 surpreendeu João Ubaldo como um jovem comunista participando do movimento popular, aberto ou clandestino, então desencadeado. Já Ariano atravessou esses anos como um conservador anti-comunista, de início favorável, depois de algum modo indiferente, à ditadura, com receio dos excessos do movimento popular ou de uma guinada política que ameaçasse a soberania do Brasil.

Porém, ambos, desde sempre, acreditavam que o povo era o senhor da nação, ainda que por vias transversas. Ambos acreditavam na reversão das agruras da nação – se ao menos fossem dados voz e protagonismo ao povo. Porém, qual voz e qual protagonismo? Eles não tinham ideia, só sabiam que seria de algum modo natural, como poderia ter dito o João Grilo, personagem do Auto da Compadecida. A literatura que faziam era um caminho e um engajamento. Um populismo de coração, cordial, à la Sérgio Buarque de Holanda, os unia – como une a tanta gente que não mais se sente confortada nem pela esquerda nem pela direita.

Por sua fé no povo, como cultura e como destino esperado, pelas ironias da história, as visões políticas de Ariano e João Ubaldo foram convergindo, no decorrer da democratização do país, na liberdade política e nos desvãos culturais, no nosso estilo de democracia infirme e destemperada, até que se cruzaram, depois se descruzaram e se cruzaram de novo, num vaivém contínuo. Pouco importa agora se um era de esquerda e vocalizou posições ditas de direita, e o outro, que era de direita, se tomou de afinidades esquerdistas. A distância política de um para o outro tornou-se irrelevante porque o que os une é o que importa, tanto como literatos quanto como atores políticos.

O Brasil perdeu a velha e boa ingenuidade da sua fé em si mesmo e em seu futuro. Na beleza de suas mulheres, na palavra do homem honrado, no amor por sua cultura, na ordem e no progresso, até no seu futebol – símbolo desnaturado de tudo que admiramos.

A contemporaneidade capitalista nos pegou de calças curtas. Nosso desenvolvimento econômico é engendrado por governos ineficazes, por políticos corruptos, por uma incapacidade administrativa sem pudor. Nosso capitalismo só sobrevive às custas de uma imensa mais valia e de um intransponível fosso entre as classes sociais. Nossas ruas são esburacadas, as estradas não prestam, o transporte é uma droga, a escola continua deficiente, a saúde pública um sofrimento. Muitos passam fome, muitíssimos são oprimidos, a grande maioria não faz parte da festa da classe média tradicional e da pequena elite encastelada. E mesmo assim, para o espanto dos que aqui aportam, há alegria e felicidade.

A pós-modernidade cultural, justificadora do neoliberalismo econômico, nos atingiu com tal força que poucos dela escapam. Tal como no tempo do darwinismo social, em que o Brasil não tinha fé em si mesmo por causa de nossa suposta inferioridade racial, hoje não temos fé em nós mesmos por causa de nossas deficiências culturais. Temos alguma ideia viável sobre como superar nossa desigualdade social? Mais capitalismo, mais patrimonialismo ou mais sindicalismo? E nosso indecifrável racismo, pode ser superado pela autoconsciência de nossa cultura, ou temos que buscar soluções pelo caso americano da ação afirmativa, já por eles mesmos considerada ultrapassada? Alguém sabe como dar aulas de ética para que os nossos engenheiros não se submetam às pressões de suas empresas para construir obras, esgotos, estradas, edifícios, viadutos, hidrelétricas ao maior lucro e menor eficiência? Por que havemos de necessitar de médicos cubanos para cuidar de nossos pobres sem seguro particular de saúde?

João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna carregavam o peso do Brasil em suas costas e elaboravam suas visões de avaliação e de superação. Escreviam porque achavam que tinham algo a dizer. Ambos se diziam realistas esperançosos, mas com uma fé inabalável em algo inefável, ambíguo na esperança e na desesperança, movido por uma alegria quase histérica, um ser e um não-ser – que é a cultura brasileira. O amor mais celerado pela cultura brasileira que vi em uma pessoa foi o de Darcy Ribeiro, que já nos deixou faz tempo. O que eles e tantos outros, mortos e vivos, têm em comum é a fé no destino do Brasil. Fé temperada, fé dúbia, fé esperançosa, fé infiel, fé doida, fé racional, fé por simplesmente ter fé.

Ariano Suassuna e João Ubaldo Ribeiro são o milho e o feijão de nosso repasto antropofágico. Nós os degustamos para sermos nós mesmos.

Redação

2 Comentários

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  1. Gostei muito desse texto. Não

    Gostei muito desse texto. Não gostava mais era das crônicas de cunho muito pessoal de Ubaldo, de sua obsessão por um certo tema. Gostava do escritor e das obras. Já Ariano era ímpar para mim. Gostava de concordar com ele, até em suas visões pessoais.

  2. Não gostei. Achei, inclusive

    Não gostei. Achei, inclusive uma grande sacagem entrecruzar Suassuma e João Ubaldo. Suassuma adota a ingenuidade, a simplincidade do nosso homem comum e o Ubaldo o cinismo como arma para sentir-se bem em meio a tantas injustiças. O Suassuma é um Graciliano e João Ubaldo mais um de nossos autoproclamados intelectuais mas portador apenas de um verniz de cultura como tantos outros autoproclamados intelectuais.

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