Culturas de Síncope, por Luiz Antonio Simas

Sugestão de Implacável

Blog Histórias Brasileiras

Culturas de Síncope
 
por Luiz Antonio Simas
 
A base rítmica do samba é africana e o seu fundamento – segredo do babado – é a síncope. Sem cair nos meandros da teoria musical, basta dizer que a síncope é uma alteração inesperada no ritmo, causada pelo prolongamento de uma nota emitida em tempo fraco sobre um tempo forte. Na prática a síncope rompe com a constância, quebra a sequência previsível e proporciona uma sensação de vazio que logo é preenchida de forma inesperada.
Digo isso porque ando matutando sobre a necessidade de se pensar uma cultura de síncope (ouso o conceito) contra a tendência de normatização, unificação e planificação dos modos de ser das mulheres e dos homens no mundo contemporâneo. Por mais que alguns botem a boca no trombone, o que se percebe é ainda a apologia ao ser monoétnico. Até mesmo setores progressistas parecem não conseguir superar a ideia da missão civilizadora de cunho iluminista, que deve consistir na generalização do acesso das camadas populares aos padrões de representatividade, consumo e educação sugeridos pelo cânone. Inclusão normativa e domesticada, em suma.
Surpreende-me como esse discurso, muitas vezes revestido de um sincero viés libertador e cheio de boas intenções, é empobrecedor das potencialidades humanas. Educados na lógica normativa, somos incapazes de atentar para as culturas de síncope, aquelas que subvertem ritmos, rompem constâncias, acham soluções imprevisíveis e criam maneiras imaginativas de se preencher o vazio, com corpos, vozes e cantos. O problema é que para reconhecer isso temos que sair do conforto dos sofás epistemológicos e nos lançar na encruzilhada da alteridade, menos como mecanismo de compreensão apenas (normalmente estéril) e mais como vivência compartilhada.
É com essa perspectiva de atenção para os saberes sincopados que retomo o conceito de “Nkubi” para falar de cultura/culturas (entendida como o conjunto de padrões de comportamento, visões de mundo, elaboração de símbolos, crenças, anseios, hábitos, tradições e demais formas de inventar a vida que distinguem determinados grupos sociais.)
Nkubi é uma expressão do quicongo (língua falada pelos bacongos do Congo-Angola) que define um odor forte e estranho na floresta, produzido por várias árvores em flor. O mistério é que cada uma exala um cheiro próprio, ao mesmo tempo em que do florescer em conjunto emana um aroma cruzado novo, agradável para uns e quase repulsivo para outros. Os cheiros brigam, se harmonizam, se anulam, prevalecem, cruzam, somem, saltam, agridem e inebriam. Há quem prenda a respiração, há quem celebre a vida. Cultura é para mim feito floresta em explosão de cheiros; tempo de Nkubi. 
Sigo tentando ver as coisas da guma das encantarias, de onde venho. Nelas busco desconforto, alegria e conceito. Fui educado pelos meus avós dentro de um complexo cultural que envolve práticas não normativas; que alguns chamariam de periféricas.  Faço disso legado porque é vivência; jamais simulacro.
Outros olhares, outras narrativas e outras vivências, fora do cânone, me interessam como experiência vital de ensino e aprendizado. Curiosamente, esse processo se aprofundou quando descobri que tenho glaucoma e constatei que perdi parte da visão periférica. Eu passei a ver mais quando comecei a ver menos. Os tambores sincopados certamente explicam – em suas gramáticas de toques sofisticados que falam sem palavras para que os corpos dancem  – a minha viração.

Eu ando me desiluminando das luzes para seguir, nos escuros, o clarão vital das fogueiras que não se apagam.

 

Redação

2 Comentários

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  1. abaixo o mono mental

    abaixo o mono mental pensamento único

    que simboliza a estagnação da direita raivosa…..

    viva a diversidade e a criativrdade que permeiam o

    passado e certamente iluminarão o presente e  o futuro…

  2. “Culturas de síncope” em sentido ainda mais forte.

    Em favor do “espírito geral” desse texto, eu acrescentaria uma rápida observação que fiz há alguns dias a uma matéria do Nassif (observação que o blog acabou transformando em tópico): https://jornalggn.com.br/noticia/mais-mestico-que-puro

    No entanto, a minha reserva à argumentação do Luiz Antonio Simas incide exatamente sobre sua sentença: “Por mais que alguns botem a boca no trombone, o que se percebe é ainda a apologia ao ser monoétnico”.

    O problema, a princípio aparentemente terminológico, acaba sendo um problema conceitual: ao pretender fazer uma crítica ao “monoétnico”, nosso autor acaba sugerindo implicitamente que qualquer crítica só pode ser feita a partir da “realidade” intransponível (“em última instância”) posta nesses termos, o do “étnico”.

    O multiculturalismo neoliberal estatuiu uma reificação do “étnico” como único refúgio legítimo para a “identidade”, de modo que, nos termos dessa gramática (do multiculturalismo neoliberal), também a “identidade” é uma reificação, um fetiche.

    Não que eu seja marxista, mas um dos bons ensinamentos metodológicos da crítica marxiana ao conceito de valor do utilitarismo é exatamente aquele que lembra que, quando nos agarramos aos fetiches, passamos a ignorar os processos de produção. Nesse caso, não se trata de produção econômica, claro, mas de produção de sentido.

    O que as observações rápidas daquele link acima sugerem ao falar de heterogeneidade é que o que o processo de produção de sentido nessas linguagens musicais “miscigenadas” abole é exatamente a tara fundamentalista (e reificadora) pela “identidade”, pela “origem”, pelo “étnico”.

    Recusar esse “étnico” passa a ser, então, dar lugar ao cultural, ao simbólico, à linguagem antes que à marca de origem.

    Já não se trata mais de uma crítica ao “monoétnico”, mas de incorporar as possibilidades da alteridade com uma outra disposição que não é simplesmente a de reivindicar “identidades”, mas sim de reivindicar participações, ou, como sugeri em outro artigo que publiquei (http://outraspalavras.net/mundo/america-latina/os-saberes-indigenas-muito-alem-do-romantismo/), reivindicar o não-alheamento.

    Já não basta mais botar a boca no trombone contra o “monoétnico”, é preciso também botar a boca no trombone contra o mundo do multiculturalismo neoliberal, esse de muitos “étnicos” encastelados nos seus particularismos  “afirmativos”.

    O mundo cultural não é um ajuntamento de emblemas de pertencimento, mas um esforço permanente de comunicação. Do contrário, será apenas solipsismo disfarçado de “politicamente correto”. E ter-se-á perdido a capacidade de comunicar (e talvez o melhor das nossas invenções sincopadas), para ganhar apenas um punhado de etiquetas… étnicas.

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