Revogar o Novo Ensino Médio é resgatar a Educação Pública, por Edna Aparecida da Silva

“Professora, como vamos fazer o Enem sem aulas de Física, Química, Biologia, História e Geografia?”, questionam os estudantes da rede pública

Alunos do Ensino Médio em sala de aula. Crédito: Gabriel Jabur/ Agência Brasília

Revogar o Novo Ensino Médio é resgatar a Educação Pública

por Edna Aparecida da Silva

Nas últimas semanas de dezembro, assistimos à tentativa dos partidos de oposição, com aval do presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira, de votar em regime de urgência, contrariando o governo, o projeto de lei 5.230/2023, com relatoria de Mendonça Filho (União – PE), para alterar o Novo Ensino Médio (NEM), contrariando o governo. 

O MEC quer que 2.400 das 3.000 horas letivas sejam destinadas às disciplinas da Formação Geral Básica (FGB), contra as 1.800 que estão em vigor, mas a oposição propõe 2.100. Embora a votação tenha sido prorrogada, não aconteceu em dezembro, esse episódio, no contexto de queda de braço entre o Congresso e o Executivo, mas revela como a Educação continua ameaçada, diante da possibilidade de que não se consiga alterar aspectos importantes do NEM em função do controle da Câmara pela oposição. 

Por que é preciso revogar a reforma? É fundamental destacar, com toda firmeza, que a flexibilização do currículo estabelecida pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), prevista pela lei nº 13.415 de 2017, mutilou o processo de formação científica dos estudantes, especialmente na rede pública. Entre os vários problemas que alcançam desde a infraestrutura aos problemas de gestão, a reforma atingiu a qualidade do Ensino, na medida em que o novo currículo da BNCC reduziu a carga horária de conhecimento científico, dos componentes curriculares obrigatórios (Língua portuguesa, Matemática, Língua inglesa, História, Geografia, Física, Química, Biologia, Sociologia, Filosofia, Educação física, Educação artística) colocando em seu lugar os Itinerários Formativos. 

Assim, foram adotados aprofundamentos curriculares que tinham como horizonte, não a contribuição para a formação científica dos estudantes e o seu direito a uma educação pública de qualidade, mas dinâmicas que pretendiam desenvolver habilidades e competências para o empreendedorismo. Em poucas palavras, adotou-se uma matriz curricular que suprimiu do horizonte do estudante o ingresso no ensino superior, supondo um preparo aligeirado para o ingresso no mercado de trabalho.

Com o governo Lula, renovou-se o debate sobre os impactos da reforma e a movimentação pela revogação do NEM ganhou as ruas, redes sociais e o debate na imprensa, e buscou apontar os problemas da reforma, especificamente a proposta dos Itinerários Formativos (IF), um dos seus pontos mais polêmicos. 

Estudantes, professores, organizações sindicais, deputados ligados à Educação e pesquisadores, num amplo arco de forças que, desde 2016, vocalizaram a insatisfação com o processo de implementação do NEM. Esse movimento provocou os defensores da reforma, como especialistas de Educação ligados aos grupos de interesses, fundações e institutos privados que produziram pesquisas e serviços para o governo, alunos de escolas particulares, e até o próprio ex-presidente Temer, que vieram a público apontar as virtudes do modelo.

Então, a expectativa era de que o novo governo revogasse as reformas do governo Temer, que, ao lado da reforma trabalhista e da aprovação do teto de gastos, feriram de modo profundo a classe trabalhadora e seu acesso aos serviços e às políticas públicas. 

Contudo, as declarações de Camilo Santana indicaram que essas demandas não encontraram eco no MEC. Segundo o ministro, o MEC não proporia uma revogação, mas apenas uma pausa de 60 dias no cronograma de implementação, por meio de portaria publicada em 4 de abril no Diário Oficial da União, para melhorar o projeto, seguindo as orientações da Comissão de Transição para a Educação. Assim, o MEC abriu consulta pública e decidiu pela continuidade do NEM, com ajustes, entre os quais a carga horária que está em disputa no Congresso. 

A posição do Ministro, como se vê no trecho da sua declaração publicada pela UOL, foi bem clara: “Avaliamos que houve erro na condução da execução [da reforma]. Não houve orientação, não houve formação de professores, nem adaptação para infraestrutura das escolas. Não se faz uma mudança no ensino de uma hora para outra. Faltou diálogo e eu como governador senti isso à época”.

Ao longo de 2023, a posição de Santana, como tem sido apontado e discutido por pesquisadores como Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e membro do  Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, mostra sua consonância com as vozes, e interesses, das fundações privados como Fundação Lemann, projeto capturado pelos interesses do setor privado.

A ênfase nos exames, testes e provas que são produzidos fora do espaço escolar, além de subordinar o processo de ensino-aprendizagem ao seu conteúdo e forma, conferem exagerada importância aos computadores, tablets e equipamentos para a “educação tecnológica”, já que, por exemplo, atividades de Matemática devem ser realizadas obrigatoriamente em plataformas como Khan Academy, e outras plataformas. Importante lembrar que David Coleman, o guru da reforma do Ensino nos Estados Unidos, o Common Core  que foi o modelo da BNCC, é um dos diretores da Khan Academy. 

No Brasil, institutos privados, empresas ligadas aos gestores, como no caso do Secretário de Educação de São Paulo, têm sido privilegiados nas compras governamentais de serviços, equipamentos, etc. A reforma, como tem sido praxe nas reformas liberais, vai gerando seus apoiadores e grupos de interesse, que viabilizam negócios ou criam demandas para justificar o desvio dos recursos do espaço da escola para o setor privado. 

O cenário é triste: as escolas têm pilhas de notebooks e computadores, mas não dispõem de wi-fi ou acesso estável à internet, nem bibliotecas, sem contar os problemas de infraestrutura. São esses os interesses que parecem ter  capturado a condução da política do MEC, a conferir se o governo será capaz de produzir uma política que represente, de fato, os setores populares, estudantes e trabalhadores da educação.

Apesar de tantos aspectos que poderíamos apontar para a crítica do NEM, um exige atenção muito especial: os aprofundamentos curriculares, Itinerários Formativos (IF). Os IF foram erroneamente chamados de “disciplinas” em várias matérias publicadas na imprensa no início de 2023. Um  artigo do Jornal O Globo, qualificou as disciplinas como inusitadas, revelando uma compreensão limitada da proposta dos IF e distância da realidade das escolas e de seu processo de implementação. 

Como e por que esses aprofundamentos curriculares prejudicam os alunos das escolas públicas? Não é porque os alunos não conseguiram escolher ou pela pouca oferta de aprofundamentos. É mais do que isso.

Na BNCC, os IF compõem a parte flexível do currículo e tomaram o lugar das disciplinas, num arranjo curricular organizado por áreas temáticas. Os alunos escolheram um percurso temático a partir do 2º ano do Ensino Médio, e no 3º ano a carga horária dos IF dobrou em relação ao segundo. No caso do 3º ano, os alunos passaram a ter, por dia, 3 horas aula de disciplinas (Matemática, Língua Portuguesa, Artes) e 4 horas aulas de componentes dos IF. 

No caso de São Paulo, os componentes dos IF foram massivamente atribuídos para professores da categoria O, que tiveram aulas atribuídas depois dos professores efetivos e estáveis, que não queriam “pegar itinerários”. Na escola, esses professores se confrontaram com uma campanha negativa, de críticas e desqualificação das atividades dos IF junto aos alunos pelos próprios professores, gestores, além do descaso das Diretorias de Ensino que sequer se ocuparam com a discussão e adequada orientação para implementação dos IF. Os professores não sabiam bem o que fazer, onde encontrar material para aulas, etc. 

Em suma, a inoperância e as dificuldades por parte dos gestores colocam em dúvida a capacidade do sistema para implementar essa reforma, ou qualquer outra contrarreforma que possamos propor como alternativa. Daí ser fundamental repensarmos outros aspectos da Educação além do currículo.

Dois aspectos são fundamentais na discussão do NEM. Primeiro, os IF não são disciplinas, retiram a carga horária dos componentes curriculares obrigatórios. Segundo, os IF envolvem uma questão de natureza política e que representa um dos desafios do governo Lula.  E por quê? 

É conhecida na história da Educação a luta pela manutenção da Filosofia e Sociologia no Ensino Médio, disciplinas importantes para formação crítica dos estudantes e que foram retiradas da Escola no período da ditadura civil-militar no Brasil, em defesa das quais educadores e estudantes se mobilizaram muito. Hoje, além das disciplinas de Ciências Humanas, as Ciências físico-químicas (Biologia, Química e Física) estão no alvo dos movimentos neoconservadores. 

A ênfase na Matemática e Tecnologia, campo da STEM (“science, technology, engineering and mathematics”), está associada à desqualificação das ciências humanas e naturais, mimetizando o desdém pela cultura que o historiador Richard Hofstadter tão bem explicou no seu texto “O Anti-Intelectualismo na vida Americana” publicado em 1963.  Importante lembrar que o conservadorismo da ultradireita, seu desprezo pela cultura, pelos direitos humanos, ideia de tolerância, respeito à diversidade tem raízes nessa tradição antiliberal, autoritária e retrógrada, que vimos por aqui no negacionismo da vacina, no esfaqueamento do quadro de Di Cavalcanti e na chamada “guerra cultural” que avançou sobre a Educação, Universidades e campo cultural no Brasil entre  2019-2022, capítulo lamentável da história brasileira.

Como professora, pude ouvir as manifestações de decepção e tristeza dos alunos, diante da percepção da desigualdade na concorrência com a escola privada, que seguiu com os conteúdos disciplinares. Os jovens sonham em fazer faculdade, ter alguma chance no ENEM e esperam que a escola possa lhes oferecer alguma perspectiva de futuro. 

Por ora, a percepção clara, correta e altamente politizada dos estudantes é que o Estado virou as costas para os jovens da Escola Pública, filhos e filhas da classe trabalhadora. Ouvi de alunos do 3º ano do Ensino Médio a pergunta: “Professora, como vamos fazer o Enem sem aulas de Física, Química, Biologia, História e Geografia?” 

O governo Lula e seu ministro da Educação precisam ouvir prioritariamente os jovens, entender suas expectativas e sonhos de futuro, e não institutos privados e grupos de interesses afoitos para vender serviços para o Estado, por meio de voucher ou da privatização da gestão das escolas, ou de grupos políticos que apostam na supressão do conhecimento, das Ciências Naturais e das Ciências Humanas, para avançar seus projetos políticos obscurantistas. A situação aprofunda a precarização dos trabalhadores na medida em que chegarão ao mercado de trabalho sem formação adequada e sem direitos. 

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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