Sobre pandemia, economia e outros sopros, por Embaixador Santiago Alcazar

Em todas as crises econômicas, que foram muitas em nossa história recente, os caminhos de solução apontavam invariavelmente para retração das políticas de saúde.

do CEE Fiocruz

Sobre pandemia, economia e outros sopros

por Embaixador Santiago Alcazar*

You never actually own a Patek Philippe.

You merely look after it for the next generation**

A crise que atualmente vivemos com a pandemia da covid-19 é nova em ao menos um aspecto. O conjunto das relações da sociedade, sejam elas de natureza econômica, política ou social, é forçado a se ajustar aos caminhos de solução indicados pelas autoridades em saúde.

Em todas as crises econômicas, que foram muitas em nossa história recente, os caminhos de solução apontavam invariavelmente para retração das políticas de saúde. Em todos os casos, as autoridades da área econômica ditavam medidas para a saída que resultavam invariavelmente em cortes orçamentários, afetando ou impedindo o desenvolvimento de ações, às vezes essenciais.

A economia encontra-se hoje paralisada, não por falhas internas, mas pela propagação de um vírus pandêmico que mata por complicações respiratórias. Infectologistas em todo o mundo recomendaram estratégias de isolamento, a única forma de interromper a cadeia de transmissão na ausência de vacina. Há consenso de que aquela estratégia é correta, ao menos para certo número de pessoas, nunca definido com precisão.

Talvez pela primeira veza ordem de precedência da vida sobre a economia é estabelecida de modo brutal. Não é um anseio de hippies ou de ativistas ambientais. É mais como o som de um grito, talvez o último, que diz que somos um sopro que precisa de cuidados

O problema é que o vírus, por ser pandêmico, espalhou-se por todo o planeta e isso preocupa economistas de linhagem neoliberal, defensores do mercado e de políticas fiscalistas. Não há mais consenso com os infectologistas, que defendem a mesma estratégia, seja para números pequenos ou para números grandes.

Aqueles economistas argumentam com boa lógica que isolamento ou confinamento implica paralisar a economia. Infectologistas não negam o raciocínio, mas apontam que se a cadeia de transmissão não for interrompida haverá mais infectados, mais hospitalizações emais mortes. Os primeiros não arredam pé e contra-argumentam, também com boa lógica, que haverá desemprego e mortes caso se insista com os confinamentos.

Já se disse que a lógica é a arte de proceder no erro com confiança. A boutade aplica-se a nossa circunstânciaatual e não parece necessário dar razões para tanto. É o aspecto novo da crise da covid-19 que está a merecer atenção. É a economia que deve adaptar-se às condições de saúde e não estas àquelas, ou em linguagem mais direta: a economia deve servir ao homem e não este àquela, como tem sido a prática em todas as crises econômicas.

Não se trata de uma inversão qualquer. Talvez pela primeira veza ordem de precedência da vida sobre a economia é estabelecida de modo brutal. Não é um anseio de hippies ou de ativistas ambientais. Não é um chamado à razão, erodida por veias de sem-razão e de sem-vergonha. É mais como o som de um grito, talvez o último, que diz que somos um sopro que precisa de cuidados.

John Kenneth Galbraith disse certa vez que a economia se ocupa do que ganhamos e do que podemos comprar. Em essência é isso mesmo, se fizermos abstração de toda a complexidade. Pode-se comprar de tudo, dizem. Sim, até a água que cai da chuva e corre nos rios. Em verdade, pode-se comprar tudo o que está na tabela de Mendeleev, em diferentes combinações e em diferentes proporções. Nós, você, eu e todos os habitantes do planeta, somos elementos da tabela de Mendeleev, cozinhados por duas ou três gerações de estrelas ao longo de 13,8 bilhões de anos.

Somos um sopro que precisa cuidados. Um sopro que, como numa roda, também cuida e dá vida ao outro, à Terra, a nossa casa comum. Por sermos necessitados, precisamos de tudo, inclusive de economistas para sintonizar a economia àquele sopro. frágil. O momento é de solidariedade, de olhar de frente para a cena que se desdobra, indiferente a qualquer adjetivação.

Na arte de equilibrar o que ganhamos e o que podemos comprar, não podemos agir como se não houvesse um amanhã, como se tudo o que importasse fosse a satisfação imediata de um desejo, insustentável talvez frente à capacidade de reposição da Terra. Não podemos continuar agindo como se fossemos donos e proprietários de tempo futuro. Somos apenas guardiões do sopro para a próxima geração.

*Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz (Cris/Fiocruz)

** Você nunca possui, de fato, um Patek Philippe. Você apenas cuida dele para a próxima geração.


[1] Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz

Redação

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