Bioeconomia: regulamentação da maconha e uma industrialização inclusiva no semiárido, por Ricardo da Silveira Carvalho

O consumo, a produção e a distribuição de maconha é um típico caso de fenômeno social inevitável, como defendi em artigo anterior

Foto: CIPE/ Semiárido

O que não tem remédio, remediado está? Bioeconomia: regulamentação da maconha e uma industrialização inclusiva no semiárido

Por Ricardo da Silveira Carvalho

Um erro inicial na forma de enquadrar o caráter de qualquer problema coletivo, seguramente, prejudicará o seu entendimento pelos envolvidos e, por consequência, comprometerá o debate e as decisões sobre as melhores abordagens para resolvê-lo ou remediá-lo.

Escrevo isso lembrando das aulas de Pesquisa Operacional e do alerta feito durante elas pelo brilhante Professor Júlio Arce: “meu primeiro conselhoé o de entender o problemaantes de tentar formulá-lo; o que até pode parecer óbvio, mas com não pouca frequência a gente se envolve em um labirinto de contas, equações, rotinas de computador etc, e a resposta que se está procurando pode ser obtida com uma simples regra de três”.

Estamos lidando com um fenômeno natural ou social? Ele é evitável ou não? Ao distinguirmos um fenômeno como um problema para a sociedade, no meu modesto juízo, essas são as primeiras questões que devemos responder para um enquadramento satisfatório da discussão inicial sobre suas possíveis soluções ou, se inevitável, sobre as ações necessárias para mitiga-lo.

Acredito, francamente, que o fenômeno da seca no semiárido brasileiro é um bom caso para verificarmos o quanto é útil e necessário esse entendimento inicial do problema.

Para efeito didático, aqui na partida, desconsidero a cada vez maior capacidade das ações humanas de funcionarem como fator geomorfológico e climático. Recorro, assim, a uma abstração que nos aparta da natureza e ignora o formidável desenvolvimento das forças produtivas ocorrido nos últimos 100 anos.

Desse modo, defino fenômenos naturais como aqueles que ocorrem sem qualquer interferência humana, isto é, acontecem exclusivamente devido a elementos climáticos, tectônicos etc. Por outro lado, mesmo abraçando essa fé no mito da não interferência humana, é forçoso notar que não é possível escapar do fato de que todos os dias esses fenômenos contribuem – e muito – para moldar o nosso cotidiano. 

Se essa contribuição é positiva ou negativa, desde o nosso ponto de vista, obviamente depende da tempestividade, força e abrangência desses fenômenos. Evidente é que, afastadas algumas outras questões de fé, todos eles são facilmente classificados como fenômenos inevitáveis, pois podemos apenas abrandar os efeitos de nossas ações sobre eles; ou, como já estamos fortemente fazendo, podemos agravá-los, transformando negativamente sua época de ocorrência, sua força e sua abrangência (tornando-os, além de inevitáveis, imprevisíveis).

Então, em primeiro lugar, localizamos a seca no semiárido como fenômeno natural (sim, Professor Júlio, dizer o óbvio tornou-se ainda mais essencial em tempos nos quais vicejam os tais “fatos alternativos” e a dissonância cognitiva). Logo, trata-se de um fenômeno inevitável.

Porém, durante muito tempo, parece que o imaginamos e o classificamos como evitável, pois adotamos uma estratégia de combate, como se fosse possível vencer a seca, erradicá-la (ou se entra numa guerra sem a pretensão de aniquilar o inimigo?). Sempre em busca de uma “bala de prata”, essa avaliação megalomaníaca da nossa capacidade – resultado de interesses outros encobertos por essa assimilação equivocada das características do fenômeno – significou e ainda significa o investimento de tubos de dinheiro público em, por exemplo, megaprojetos de irrigação. Todos eles foram e são alvo de contestações e ponderações por parte de técnicos e movimentos sociais, diga-se.

Mas, o fato concreto é que, uma vez implantados esses projetos, geralmente, eles terminam por beneficiar majoritariamente os empresários que migram para as restritas e pequenas regiões impactadas por eles – em detrimento da maioria da população que lá está e sempre esteve; a qual não aufere qualquer vantagem deles; ou, no máximo, é marginalmente favorecida; ou, pior, se torna vítima de algo que pode ser definido como um processo de gentrificação rural.

Hoje, depois de décadas de resistência e ação dos movimentos sociais e suas articulações, existem inúmeros e variados modelos de infraestruturas bem mais simples implantadas e operadas por organizações da sociedade civil (de produtores, de trabalhadores, de técnicos, igrejas, etc), os quais têm também, além de tornar comum o acesso à água, o objetivo de servir a agroecossistemas familiares. Os excepcionais resultados alcançados demonstram que, se difundidos, esses modelos de convivência produtiva com a seca podem proporcionar a colheita de melhorias significativas na qualidade de vida para todas as populações da imensidão do semiárido brasileiro (aproximadamente 28 milhões de pessoas em 12% do território nacional) – a um custo bem menor se comparadas àqueles megaprojetos.

Portanto, nesse caso – como em outro qualquer, reconhecer a inevitabilidade do fenômeno não significou cruzar os braços e assumir que remediado estava. Significou, sim, um melhor entendimento do problema e a promoção de mudanças nas estratégias e táticas para abordá-lo; as quais geraram tecnologias sociais que resultaram em aprimorados e mais adequados “remédios paliativos” e, com isso, no alcance de melhores, abrangentes e duradouros resultados.

Por seu turno, o consumo, a produção e a distribuição de maconha é um típico caso de fenômeno social inevitável, como defendi em artigo anterior (ver aqui). Durante as últimas seis ou sete décadas o encaramos como evitável e, portanto, como no caso da seca, declaramos guerra a ele – com os resultados catastróficos que todos conhecemos. Um combate estéril que hoje custa aos brasileiros, no mínimo, 50 bilhões de reais ao ano – como informa o estudo “Custo de bem-estar social dos homicídios relacionados ao proibicionismo das drogas no Brasil”, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no dia 22 de junho de 2023.

Estes dois exemplos de fenômenos inevitáveis (ambiental e social) confirmam a necessidade e a utilidade de um correto enquadramento dos problemas na busca pelas melhores saídas para eles: ações de convivência com a seca e regulação do negócio da maconha e seus derivados (aquelas regras de três do Professor Júlio), em contraponto ao combate à seca e a guerra às drogas (aqueles labirintos de contas, equações, rotinas de computador etc).

Além disso, optei por tratar das políticas sobre a seca e sobre a maconha precisamente porque noto que podemos tentar rearranja-las de forma sinérgica para o desenvolvimento econômico e social do país, especialmente do semiárido. É a favor desse rearranjo que passo a argumentar daqui em diante.

O primeiro indício de que essas duas políticas podem se articular pode ser visto na figura que encabeça este texto. Trata-se do mapa de aptidão agrícola para a Cannabis – elaborado por Sérgio Barbosa Ferreira Rocha, do Programa de Pós-graduação em Fitotecnia da Universidade Federal de Viçosa (desde já me desculpo pela adaptação amadora realizada por mim para facilitar a visualização da região de interesse). Nele, deve chamar a atenção do (a) leitor (a) o fato de que o semiárido brasileiro tem grande parte de seu território com aptidão de média a alta para o cultivo da Cannabis – mais para a alta, aparentemente.

Trata-se de uma planta com alto potencial agronômico, que apresenta elevada rusticidade e grande potencial produtivo, cujos produtos alcançam alto valor no mercado por serem demandados por múltiplos setores industriais (farmacêutico, têxtil, celulose, alimentício, entre outros) – além do uso recreativo, obviamente. Existem estudos sobre o impacto econômico da legalização da Cannabis no Brasil que levaram em conta essas diferentes demandas. Em alguns cenários, as estimativas indicam que as vendas iniciais devem girar em torno de R$ 26 bilhões ao ano, tendo o potencial de arrecadar algo próximo a 8 bilhões de reais em impostos.

No mundo, como divulgado na imprensa, dados da consultoria especializada BDSA revelaram que o mercado global de cannabis legal atingiu 21,3 bilhões de dólares em 2020, representando um crescimento de 48% em relação ao ano anterior. A consultoria estima um aumento de cerca de 17% ao ano até 2026, levando o faturamento a 55,9 bilhões de dólares. Pela análise do BTG, essa cifra sobe a quase 100 bilhões de dólares.

Não basta, entretanto, nos embriagarmos diante dessas cifras e focar apenas o aproveitamento do potencial agronômico nessa imensa área, há que se verticalizar ao máximo a atividade, visando alcançar a retenção máxima de valor na região. Penso que, para tanto, na formulação de uma política de incentivo, é fundamental uma análise que considere todas as cadeias sob a perspectiva do valor (cadeias de valor no lugar de cadeias de produção).

É que, parte importante dessas cadeias faz parte daquilo que se convencionou chamar de economia do conhecimento (tecnologias avançadas de pós-colheita, processamento e embalagem, por exemplo). Ocorre que, as elites que a controlam, a economia do conhecimento, o fazem no sentido de dividir essas cadeias, cada uma em duas partes: uma lucrativa e criativa, que mantêm para si; e outra corriqueira, trivial, a qual terceirizam, subcontratam por baixos valores.

Definitivamente, nesse futuro aqui imaginado, as populações rurais do semiárido (perto de 35% daqueles 28 milhões) não poderão ser convertidas em fornecedoras de plantas para que um pequeno grupo de grandes empresas as processe, extraia os óleos e retenha a maior parte do valor. Elas, essas populações, devem ser tecnicamente assistidas, capacitadas e financiadas para assumirem o máximo valor das cadeias.

É fundamental a essa altura lembrar que, organizadas em associações ou cooperativas, inúmeras comunidades já estão agora, enquanto você lê esse texto, buscando consolidar projetos de produção e extrativismo sustentável. Apoiadas pela cooperação internacional, ONGs nacionais, por programas governamentais (grande parte deles paralisada ou fragilizada pelo último governo) ou mesmo com recursos próprios, não faltam exemplos de projetos demonstrando a viabilidade de integrar agroecossistemas e o manejo conservacionista da biodiversidade como atividades de geração de renda. As Centrais de Cooperativas e Associações do Cerrado e da Caatinga congregam inúmeras dessas iniciativas com bastante sucesso – muitas delas fruto daqueles modelos de convivência produtiva com a seca lembradas anteriormente. Sob o prisma organizacional das comunidades, não se parte do zero, portanto. Muito pelo contrário.

Nesse sentido, lembro que a cadeia dos óleos da Cannabis se articula também com um outro grande potencial da região, original e preponderantemente coberta pelo Cerrado e pela Caatinga: os óleos essenciais das espécies desses Biomas. Essa articulação advém do fato de que a mesma estrutura bioindustrial instalada para extrair os óleos da Cannabis se presta, perfeitamente, à extração deles. Se, ao contrário da Cannabis, a maioria dessas plantas não conta com um mercado mundial em fase de consolidação – por isso ela é importante para alavancar os negócios daquelas associações ou cooperativas; é imprescindível apontar que aqui, com relação a essas plantas, não se parte do zero também em termos de conhecimento.

Quero acreditar que ninguém duvida da existência de um admirável conhecimento popular sobre as plantas de interesse nesses biomas. Difícil duvidar também da existência de um imenso e disperso catálogo de conhecimento científico sobre elas: nomes científicos, usos, rendimento em óleo, local de coleta, distribuição geográfica, características ecológicas, botânicas e agronômicas, composição química etc. Apenas para se ter uma ideia do tamanho desse catálogo, no ano 2000 já existiam no país 37 grupos e 11 redes de pesquisa em bioprospecção. Em 2010 já eram 731 e 346, respectivamente. Esse crescimento não parou desde então e não faltam estudos que confirmam o colossal potencial de bioprospecção de espécies vegetais ricas em compostos bioativos no Brasil.

Portanto, esses acúmulos em organização e tecnologia social, bem como em conhecimento popular e científico, se juntam aos mercados existentes e potenciais para certificar e recomendar que as políticas para a seca e para a maconha sejam pensadas de forma complementar na mitigação dos efeitos negativos desses inevitáveis fenômenos.

E, sobretudo, na maximização de seus efeitos na melhoria das condições de vida de geraizeiros, comunidades de fundo e fecho de pasto, agricultores familiares, quilombolas, assentados da reforma agrária, acampados e, porque não, os resgatados do trabalho análogo a escravidão (segundo a OIT, perto de 80% dos resgatados nasceu no Nordeste, provavelmente no semiárido).  Afinal, o fenômeno da exclusão é social, evitável e indesejável – os humanos não podemos encará-lo com naturalidade; sob pena de deixarmos de ser … humanos.

Ao mesmo tempo, oportuno anotar, esse movimento articulado estará jogando a favor do combate a outros dois fenômenos indesejáveis e evitáveis: as mudanças climáticas por causas humanas e a desindustrialização.

Todavia, certamente tem razão o (a) leitor (a) quando já deve estar levantando, precisamente aqui, as dificuldades que serão enfrentadas nas negociações políticas necessárias para a efetivação de toda essa ideia. Pois, tanto o negacionismo relativo às mudanças climáticas, quanto as posições dogmáticas no que diz respeito a esses fenômenos todos, podem levar a extrema direita a tumultuar o processo político, sem dúvida.

Contudo, vejo que a cada dia esse agrupamento perde espaço no ambiente político institucional. Uma tendência que, no meu julgamento, tende a transbordar para a população, na medida em que sua maioria se mostra cansada daquela atmosfera política conflituosa dos últimos anos – a qual esse grupo luta estridentemente por manter. E mais, para além desse cansaço, não para de crescer a percepção do quão ridículo é um grupo político que consegue oferecer ao debate, sobre qualquer questão importante da vida nacional, tão-somente opiniões construídas sempre nos mesmos termos: comunismo, narcoditaduras, Venezuela, PT, censura, ideologia de gênero, cristofobia etc etc. Ou não foi nesses termos que esse grupo justificou sua posição contrária a … reforma tributária?? Felizmente, essa semana que chega ao fim trouxe inúmeros sinais políticos de que a capacidade desse grupo tumultuar os debates urgentes tende a refluir ainda mais.

Espero que tenha chegado a hora de sairmos definitivamente dessas infrutíferas guerras – contra a seca e contra as drogas, para adotarmos a difusão, em larga escala e a um custo consideravelmente menor, daquelas estratégias de convivência produtiva que podem, ao final, promover uma industrialização inclusiva e competitiva no semiárido brasileiro.

É urgente construir política e operacionalmente as transformações institucionais que viabilizem esse processo, ou seja, mudanças que resultem em mais recursos, assessoria técnica mais qualificada, capacitação e educação de qualidade, pesquisa de novos produtos, desenvolvimento de mercados etc. Reunir uma bancada do semiárido para esse debate pode ser um primeiro passo nessa construção.

Quais seriam os pontos estratégicos e táticos indispensáveis na alimentação inicial desse debate? Quais seriam os planos, programas e projetos necessários para o desenvolvimento disso tudo?

Em respeito à paciência do (a) leitor (a), num próximo texto conversamos sobre isso.

Ricardo da Silveira Carvalho – Professor Associado da UFMT Administração, Economia e Extensão Rural. CUS – Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais

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