E a maconha voltou ao debate, por Ricardo da Silveira Carvalho

Um debate adulto, responsável, sério deve partir da constatação de que pensar uma sociedade sem drogas é impossível.

E a maconha voltou ao debate

por Ricardo da Silveira Carvalho

Em 2006, a lei 11.343 entrou em vigor para regular a questão das drogas no país. Desde então, vimos o encarceramento por tráfico aumentar algo em torno de 500%. Um pouco mais, um pouco menos, dependendo do estudo consultado, com média de aumento anual próxima de 30%. O tráfico tornou-se, assim,  a principal causa de encarceramento no Brasil.  

É razoável supor que grande parte desse aumento se deva ao tráfico de maconha, que é de longe a droga ilícita mais consumida. Entretanto, não vimos nesse mesmo período, como esse número assustador pode sugerir, uma “epidemia” de uso dessa droga no país. Tampouco vimos a apreensão dela crescer – 193,2 toneladas em 2007 e 147,2 toneladas em 2022. Nesse período ocorreram dois picos, com 353,9 toneladas apreendidas em 2017 e 564,4 toneladas em 2020; mas apresentou um crescimento anual médio de 12,73%, conforme dados do DICOR da Polícia Federal.

Em média, parece que estamos prendendo mais gente por tonelada de maconha. Desse modo, parece também que esse aumento espetacular de 500% se deve ao encarceramento em massa de pequenos traficantes e usuários.

Esse entendimento fica ainda mais assustador se esses dados são classificados por renda e por cor da pele. É corriqueiro que a mesma quantidade de maconha apreendida enseje diferentes enquadramentos do crime, a depender da renda e da cor da pessoa detida. Uma pessoa detida com 50 gramas de maconha, por exemplo, se for preta e pobre quase sempre é enquadrada como traficante. Na mesma situação, uma pessoa branca e rica normalmente é enquadrada como usuária. Esse encarceramento em massa tem cor e classe econômica, portanto.

No início de março de 2023 – em uma entrevista a Leandro Prazeres, da BBC News Brasil, o Ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Professor Sílvio Almeida, foi questionado sobre um pedido do Presidente Lula para que seja elaborado um plano que vise a diminuir o encarceramento. O ministro confirmou esse pedido e foi em seguida questionado, como era de se esperar, sobre a descriminalização das drogas, quando disse: “(…) o que o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania faz, de fato, é pensar nos efeitos disso e pensar em como pode ser feita uma política nacional que envolva um debate sério a respeito dos efeitos perversos do encarceramento”.

Importante pontuar e festejar o fato desse debate ser pautado sem estarmos mergulhados numa crise carcerária. É uma novidade no Brasil. E uma novidade bem-vinda, pois o calor de rebeliões, como já se viu em debates anteriores, forma um clima favorável a demagogias de toda sorte, tornando difícil pensar e fazer um debate sério sobre o tema – como racional, sensata e abertamente recomenda o Ministro.

Pouco tempo depois dessa entrevista – talvez por causa dela mesmo, foi convidado a participar de uma reunião da Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, em 12 de abril. Ali, como esperado, o ministro viu o encarceramento vinculado à descriminalização das drogas ser novamente abordado. Com expressão grave e voz agressiva, um deputado elaborava sua questão ao ministro e disse, entre outras, a seguinte coisa: “(…) nós não queremos drogas na nossa sociedade, a sociedade brasileira não quer drogas na sua vida (…) o povo de bem não quer intorpecentes em sua casa, não quer que os seus filhos façam uso de drogas”.

Se vê, nessa fala, que o debate sério sobre o tema, proposto pelo Ministro naquela entrevista, terá muita dificuldade de acontecer nesse ambiente infantilizado – cujos interlocutores, como crianças, imaginam que o seu querer terá total poder para moldar a realidade. Ainda mais absurdo e delirante, afirma que “o brasileiro de bem quer sim que as drogas sejam criminalizadas, que elas não façam parte do dia-a-dia de nossas famílias” – como se as drogas ainda não fossem criminalizadas e não fizessem parte do nosso dia-a-dia; como se o quadro atual não tivesse sido engendrado exatamente pela criminalização, pela “guerra às drogas”.

Um debate adulto, responsável, sério deve partir da constatação de que pensar uma sociedade sem drogas é impossível. O evidente e retumbante fracasso de décadas da tal “guerra às drogas” é um indicativo muito forte disso, além dos inúmeros estudos sobre o uso ancestral de substâncias psicoativas desde tempos imemoriais. Isto é, não exisitiu, não existe e nunca existirá essa sociedade totalmente livre do uso de drogas – é imaginária, infantil essa abordagem. Basta lembrar daquelas drogas que hoje já são reguladas, como o álcool, o tabaco, os Prozac’s, os Diazepan’s … e verificar o tamanho dos seus mercados no mundo.

O fato econômico fundamental aqui é: existindo demanda, inevitavelmente haverá oferta. De qualquer coisa. E a demanda por maconha, como me parece óbvio, existe independente da nossa vontade. Ou da vontade do deputado.

Portanto, a primeira pergunta fundamental nessa querela deve ser: essa inevitável demanda por maconha será atendida legal ou ilegalmente, como hoje? Isto é, questiona-se se os bilhoes de dólares que esse mercado movimenta continuarão necessitando de lavagem ou não, se pagarão impostos ou não, se gerarão bons empregos ou não, etc.

Para respondê-la, em primeiro lugar é necessário enfatizar que o objetivo dessa discussão não é estabelecer normas para “liberar” a produção e a circulação. Pretende, sim, normatizar essas atividades, uma vez que já estão, na prática, “liberadas”. É que, se é certo que existe uma legislação que proíbe e, portanto, criminaliza a produção, a circulação e o consumo, cuja ineficácia prática é incontroversa; é indubitável também que por isso existe, no mundo real e concreto, todo um sistema de produção e comercialização da maconha que funciona sem qualquer embaraço – um sistema, de certa forma, “liberado” do controle Estatal e social. Ou seja, em curtas palavras: o que existe hoje é um sistema subterrâneo de produção e circulação, na mão de bandidos e movimentando bilhões.

Desde esse ponto de vista, parece inapelável que o atendimento da demanda por qualquer droga deve sempre ser alcançado dentro de um marco legal que paute a regulação, a inspeção, a fiscalização e a tributação das atividades envolvidas, definindo e verificando a adequação dos locais e equipamentos utilizados. Como ocorre, aliás, com as drogas lícitas, como o álcool, o tabaco etc. Com a maconha não deve ser diferente, sem qualquer sombra de dúvidas e sob qualquer ponto de vista, seja ele voltado à economia e ao desenvolvimento ou mesmo voltado à saúde e à segurança públicas.

Saúde (?), pode questionar o (a) nobre leitor (a).

Sim, respondo eu, pois é sabido que boa parte dos malefícios à saúde, causados pelas drogas ilícitas, tem causa nas impurezas e na mistura de produtos altamente tóxicos e prejudiciais à saúde durante o seu processo de produção e/ou comercialização. Ora, sendo assim, não seria mais prudente descriminalizar ou, no limite, legalizar a maconha, tirando-a do rol de substâncias proibidas, submetendo-a ao controle do Estado e da sociedade no que diz respeito à sua qualidade e às condições de uso, tal como é feito com as drogas lícitas? Me parece o mais sensato a fazer. Ou não?

Mesmo que o (a) nobre leitor (a) concorde com esse argumento, pode ainda questionar os efeitos dessa regulamentação sobre o problema da segurança pública.

Sim, segurança pública. Como vimos, desde 2006, com a Lei 11.343, milhares de jovens foram jogados no sistema penitenciário – com frequência primários e de bons antecedentes. Esse fluxo de jovens aos presídios se tornou o grande mecanismo de recrutamento no “RH” das principais facções criminosas. Assim, esses jovens – que não representam perigo algum quando entram – se tornam perigosos quando saem após “esse treinamento por imersão”.

E mais, se para as sociedades são inócuos os resultados obtidos com a política da proibição pelo mundo afora (ao custo de bilhões de dólares ao ano para os governos), podemos garantir que para os traficantes, para os agentes corruptos da lei e para as lavanderias de dinheiro, os resultados todos obtidos são estupendos (lucro de bilhões de dólares ao ano para os bandidos). A única indústria legalizada que lucra com essa política é a de armas,  fornecendo, ao mesmo tempo, para as máfias e para as polícias.

Portanto, interromper esse sistema de “recrutamento e treinamento”do crime, bem como sua fonte de financiamento, pode contribuir sensivelmente na desarticulação das facções criminosas no país.

Mas, enquanto o Congresso Nacional não se dispõe a discutir seriamente o problema – contaminado que está pelo analfabetismo ideológico e pela idiotia erudita (nos termos do Professor João Cezar de Castro Rocha) – o Supremo Tribunal Federal (STF) pode dar os primeiros passos para começarmos essa desarticulação.

No STF, os ministros estão retomando a análise da constitucionalidade do artigo 28 da lei 11.343, que resolve serem crimes os atos de adquirir, guardar ou portar drogas para consumo próprio. Esse debate teve início em 2009, com a condenação de um mecânico de 55 anos à prisão por porte de maconha para consumo próprio em Diadema, no Estado de São Paulo. A defensoria do Estado, no entanto, diz que o artigo 28 viola o princípio constitucional da intimidade e da vida privada.

O caso chegou ao STF em 2011 e, no início do julgamento em 2016, o tribunal decidiu que a sua sentença teria repercussão geral, ou seja, reconhecia que se tratava de uma questão relevante sob os aspectos econômico, político, social e jurídico e ultrapassava os interesses subjetivos da causa a ser julgada ali. Quando o julgamento parou, devido a um pedido de vistas do falecido ministro Teori Zavascki, três dos atuais onze ministros do Supremo tinham votado e todos eles votaram a favor da descriminalização do uso e do porte da maconha. Um deles, o ministro Barroso, deu um novo passo: sobre a fonte da maconha. Até que o Congresso decida, para ele, o STF deveria estabelecer uma quantidade por usuário para que não fosse enquadrado como traficante: “25 gramas e até seis plantas fêmeas de maconha por pessoa”, propôs o ministro.

Aqui, como já deve estar claro a essa altura, não se aborda a produção, a circulação e o uso do Canabidiol (CBD) e outros ativos presentes na planta Cannabis. Esses, felizmente, mesmo nos anos obscurantistas recentes, se mantiveram de alguma forma animando a disputa política, um pouco devido à brava luta de grupos de pacientes organizados e muito porque são foco de interesse de grupos econômicos poderosos. Refiro-me aqui à maconha mesmo, no entendimento popular, cuja discussão se perdeu em meio a mamadeiras de piroca, banheiros unissex, colégios militares, escolas sem partido, etc.

E, estando de volta a discussão, é hora de mais uma vez tentar qualifica-la, para que se avance, no Congresso, em relação ao que está sendo discutido no STF. Que se caminhe em direção a uma legislação que vise, pelo menos, a (a) tomar dos criminosos as atividades que envolvem a maconha e entregá-las à sociedade, sob a regulação, a inspeção, a fiscalização e a tributação do Estado; (b) garantir que estas atividades e aquelas voltadas à produção dos derivados sejam executadas apenas por pessoas físicas ou jurídicas licenciadas pelo Estado; (c) garantir que permaneçam proibidos o consumo e a compra da maconha por menores de 18 anos, bem como a condução sob o efeito dela de: automóveis, motocicletas, barcos e aeronaves; (d) garantir que toda a maconha consumida no país seja testada e rotulada; (e) garantir que o maior número de agricultores familiares seja beneficiado; (f) garantir que todo produto dela derivado, classificado como medicamento, seja produzido de acordo com os parâmetros sanitários e tecnológicos estabelecidos pela ANVISA e sejam comercializados exclusivamente em farmácias, mediante receita médica;  e (g) melhorar as condições prisionais do país.

Ou vamos esperar a próxima crise no sistema penitenciário para debartemos estrutural e seriamente os aspectos econômicos, sociais, políticos e jurídicos desse “inevitável mercado”?

Num tempo em que está pautada a discussão da Bioeconomia e da Neoindustrialização do país, me parece um debate inadiável. Mas isso é tema para uma próxima oportunidade.

Ricardo da Silveira CarvalhoProfessor Associado da UFMT Administração, Economia e Extensão Rural. CUS – Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais

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Redação

1 Comentário

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  1. Sociedade sem drogas é possível sim. Basta não querer usar. O que é impossível é vida saudável e lúcida com drogas. Aí não dá mesmo!

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