Agronegócio, pandemia e fome: um triângulo indissociável

A produção realizada sob as bases do agronegócio vem devastando os diferentes biomas do Planeta Terra"O setor agropecuário de exportação, sob embargo chinês, mantém armazenadas 100 mil toneladas de carne bovina que teriam como destino o mercado asiático".

Agência Brasil

do Sul 21

Agronegócio, pandemia e fome: um triângulo indissociável

por Gerson Antonio Barbosa Borges, Estevan Leopoldo de Freitas Coca e Allan Rodrigo de Campos Silva (*)

O agronegócio, como parte do atual Regime Alimentar Corporativo, tem criado problemas sociais, econômicos e ecológicos. A produção de commodities prioritariamente para exportação, grilagem de terras, isenções fiscais, destruição ambiental e a prática de diferentes tipos de violência contra os povos camponeses e originários formam algumas dentre as principais pegadas deste sistema orientado pela lógica da acumulação capitalista.

McMichael (2016) argumenta que o Regime Alimentar Corporativo inverteu a ordem da relação Estado x mercado. Outrora os mercados serviam aos Estados, hoje é o inverso. Ilustrando o caso brasileiro, os representantes do agronegócio estão e são parte do Estado em diferentes governos e escalas administrativas, participando diretamente das decisões estratégicas da governança em prol de seu interesse. Isso se dá por meio de uma concertação política em que o bloco intersetorial que compõe o agronegócio age de forma coordenada, multilateral, sistemática e institucionalizada para convencer a opinião pública e o Estado sobre sua imprescindibilidade (POMPEIA, 2021). Desse modo, com as botas, a caneta e o laptop nesses territórios, o agro tem se viabilizado e reproduzido. 

A produção realizada sob as bases do agronegócio, além de transformar os sistemas produtivos, os circuitos de distribuição e a qualidade dos alimentos, vem devastando os diferentes biomas do Planeta Terra. A destruição da natureza para avançar na extração de minerais, cultivo de cereais e criação de animais, a partir de complexos intensivos ou extensivos, está eliminando os habitats naturais dos seres vivos que hospedam os vírus, concomitantemente, aproximando ambos das criações intensivas de aves e porcos, por exemplo. 

A combinação entre eliminação de barreiras naturais e aproximação dos hospedeiros a animais sem diversidade genética e imunológica e debilitados pela grande ingestão de antibióticos e hormônios incrementa a reprodução e a mutação de vírus e bactérias (DAVIS, 2005; WALLACE, 2020). Como o desmatamento tem sido uma das principais características da territorialização do agronegócio, podemos afirmar, assim, que ele é o responsável por nos tornar mais próximos do contato com esses patógenos.

No caso do vírus Sars-CoV-2, a principal hipótese aponta para a destruição das florestas do sudeste asiático em consonância com a modernização agropecuária como a causa sistêmica para a emergência da pandemia da Covid-19 (WALLACE, 2020). Circulando entre as cadeias globais das commodities, principalmente da carne suína e de aves, os vírus evoluem e se espacializam nas pequenas, médias e grandes cidades, aumentando a probabilidade da infecção humana tal como a epidemia de influenza H5N1, em 2005, e a pandemia de influenza H1N1, em 2008. Com isso, afirmamos que o agronegócio é um exemplo de que o capitalismo é doente e gera doenças.

No início de setembro de 2021 foram notificados dois casos de Encefalopatia Espongiforme – a Doença da Vaca Louca – em bovinos no Mato Grosso e em Minas Gerais. Investigações iniciais, supervisionadas pela Organização Mundial da Saúde Animal, concluíram que os casos seriam atípicos e que podem ocorrer em animais de idade mais avançada. Uma vez que o mercado de carnes é regido por preços em bolsa de valores, não seria estranho ao negócio que produtores estejam especulando com o tempo de vida dos animais, postergando o tempo de abate para conseguir animais mais pesados e melhores preços. Outra hipótese aponta para o uso das carnes de animais contaminados na alimentação dos bovinos em engorda. Apesar de ser uma doença priônica – ou seja, causada por partículas proteicas infecciosas produzidas pelo próprio organismo – o contágio pela Vaca Louca pode acontecer em caso de ingestão da carne do animal doente. Porquê e em que frequência bovinos mais velhos e doentes estão sendo abatidos em frigoríficos para consumo humano é a pergunta que não quer calar. 

Não bastasse isso, além de ser um dos responsáveis pela emergência de crises de grande extensão, como a da COVID-19, o agronegócio tem sido um amplificador de crises correlatas, como é o caso da fome. Tomando o caso brasileiro mais uma vez como exemplo, o setor agropecuário de exportação, sob embargo chinês, mantém armazenadas 100 mil toneladas de carne bovina que teriam como destino o mercado asiático. Enquanto isso, de acordo com a última pesquisa da Oxfam (2021), do total de 211,7 milhões de brasileiros(as), 116,8 milhões, pelo menos, estão convivendo com algum grau de insegurança alimentar; destes, 43,4 milhões não têm alimentos em quantidade suficiente para satisfazer suas necessidades básicas, e 19 milhões de brasileiros(as) enfrentam a fome. Ao transformar a alimentação em mercadoria, o agronegócio administra cinicamente um mercado em superprodução e a própria fome em nome da lucratividade.

Com o elevado índice de desemprego e a desestruturação das políticas públicas, a exemplo do Bolsa Família e do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), aos brasileiros empobrecidos, que ainda conseguem adquirir algum tipo de alimento, sobra a busca por restos de carcaças de animais abatidos e resíduos de arroz e outros cereais, pois o agronegócio produz para obter taxas elevadas de lucro, e não para ofertar alimentos aos que deles necessitam.

Podemos concluir, neste breve texto, que o “agro é tech”, o “agro é pop”, como dizem seus representantes no Brasil. Porém, sob uma outra perspectiva: ele é “tech, “pop”, enquanto um dos principais protagonistas no avanço da fome e das pandemias.

Referências

DAVIS, Mike. O monstro bate à nossa porta. Ed. Record, Rio de Janeiro, 2006.

MCMICHAEL, Phillip. Regimes alimentares e questões agrárias. São Paulo; Porto Alegre: Editora UNESP; Editora da UFRGS, 2016.

POMPEIA, Caio. Formação política do agronegócio. São Paulo: Elefante, 2021.

REDE PENSSAN. Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: Rede PENSSAN, 2021.

WALLACE, Rob. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência / tradução Allan Rodrigo de Campos Silva. São Paulo: Elefante, 2020.

Gerson Antonio Barbosa Borges é Militante do MPA, Especialista em Economia e Desenvolvimento Agrário pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Mestrado em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Atualmente é doutorando em Geografia pela UNESP.

Estevan Leopoldo de Freitas Coca é Doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com período sanduíche na University of British Columbia (UBC). Atualmente, atua como professor Adjunto da Universidade Federal de Alfenas (Unifal) – curso de Geografia.

Allan Rodrigo de Campos Silva é Geógrafo e tradutor, Doutor em Geografia Humana pela USP. Membro do Fórum Popular da Natureza e do Coletivo Editorial Igrá Kniga

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