“Emprego e salário” e “trabalho renda”: duas consignas complementares da esquerda, por Renato Dagnino

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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“Emprego e salário” e “trabalho renda”: duas consignas complementares da esquerda

por Renato Dagnino

1. Introdução  

Este texto visa a subsidiar a discussão sobre as políticas públicas de um futuro governo de esquerda. Sua motivação é a necessidade de compatibilizar e gerar sinergias de natureza social, econômica e cognitiva entre as ações atinentes às políticas relacionadas ao curto e longo prazos. Seu foco é a constatação de que nosso potencial de geração de renda e riqueza não poderá ser aproveitado adequadamente pelas empresas, pelo chamado setor formal. É sabido que a função social de políticas orientadas a gerar emprego e salário que têm sido entendidas como imprescindíveis para promover crescimento econômico no curto prazo encontra crescentemente um obstáculo tecnológico ou relacionado à baixa qualificação formal da força de trabalho ou ainda, mais precisamente, cognitivo. Por isso, elas terão que ser coadjuvadas pelas de geração de trabalho renda imprescindíveis para implementar no longo prazo o projeto de desenvolvimento que queremos.

Seu pano de fundo é a crescente e difundida consciência mundial dos limites ambientais do modo de produzir e consumir atual. Isso que a esquerda chama há mais de um século modo de produção capitalista. E que veio questionando desde então devido à sua insustentabilidade econômica, social e política.

Essa esquerda que no Brasil irá retomar a oportunidade de conduzir as políticas públicas terá que, no curto prazo, recuperar as conquistas – crescimento econômico com geração de postos de trabalho decente – que a direita vem arrancando do povo. Reparar o estrago causado com o desemprego, a terceirização e a perda de direitos que está sendo causado demandará ações orientadas aos trabalhadores formalizados que estão sendo penalizados e seguirão sendo têm sido sua principal base social de apoio. O que implicará retomar a trajetória de aumento do emprego formal e do salário que caracterizou a experiência de governo da esquerda. Ou o que me refiro com a metáfora de voltar a içar a bandeira do emprego e salário que a direita arriou para defender a taxa de lucro ameaçada pela esquerda.

Mas, ao mesmo tempo, a esquerda terá que implementar ações orientadas à consecução de seu projeto de longo prazo. Consciente de que não foi possível, apesar da conjuntura – externa e interna – favorável, estimular as empresas a gerar empregos, ainda que de baixo salário, num ritmo compatível com o crescimento populacional, ela terá que voltar a içar a bandeira do “trabalho e renda”.

Terá que retomar o que começou a fazer no início do seu primeiro período de governo visando a fomentar a criação de redes de empreendimentos solidários capazes de aproveitar o potencial de geração de renda e riqueza da maior parte dos 160 milhões de brasileiros em idade de trabalhar. Daqueles que muito dificilmente poderão vir a se somar aos 30 milhões que hoje têm carteira assinada.

Isso implicará uma revisão da proposta de transformação social da esquerda no sentido que explora este texto e uma ampliação do espectro de busca de alianças incluindo esses novos atores sociais. Algo que, a julgar pelo chamamento que no momento em que escrevo (15 de maio de 2017) se faz para uma “greve geral” (e não uma “mobilização geral” contra o golpe) numa sociedade em que os trabalhadores ligados ao setor formal de nossa economia e que poderiam infligir dano aos seus patrões mediante uma greve são muito poucos, demandará muita reflexão e discussão.

Encerro esta longa introdução, destacando que aquele potencial de geração de renda e riqueza desprezado pelo empresariado, que poderia explorá-lo aproveitando uma das maiores taxas de lucro do planeta, só poderá ser mobilizado caso a esquerda seja capaz de remontar, aperfeiçoar e conferir sinergia aos quatro arranjos institucionais ensaiados em meados dos anos 2000, que abordo na terceira seção.

2. Economia solidária e tecnologia social: os conceitos e sua implementação

Para explicar as diferenças entre as duas consignas e argumentar sobre a proposta que me interessa defender, vou precisar desses dois conceitos.

Para chegar ao conceito que é aqui central – economia solidária – inicio de um modo que denota meu viés cognitivo dos Estudos Sociais da C&T e a minha aproximação ao tema apresentando o conceito de tecnologia social (TS). E o faço respondendo às três perguntas que seguidamente me dirigem acerca do conceito e de sua implementação.

Para isso, começo lembrando que, como qualquer conceito que faz referência ao “social”, o de TS é objeto de uma disputa de significado com fundo ideológico. E que, dependendo do conceito adotado serão diferentes as ações concebidas para sua implementação, a avaliação sobre os resultados obtidos, e o que precisa ser feito para aprimorá-los ou para alcançar o que não foi logrado.

Sobre o conceito de TS, se constata que há duas posições que têm por base distintas concepções sobre tecnologia. De um lado, estão os que a entendem como resultado da aplicação da ciência – intrinsecamente boa e verdadeira – com o objetivo de produzir de modo cada vez mais eficiente mais e melhores bens e serviços para a sociedade. A TS se originaria então de uma intenção dos pesquisadores e ativistas sociais de estender esse resultado aos mais pobres mediante a aplicação da ciência em seu benefício.  O que seria logrado à medida que eles pudessem usar e se apropriar do conhecimento científico e combiná-lo com aquele, empírico, proveniente do ancestral “saber popular” e de sua experiência de vida.

Gerar soluções pontuais para satisfazer necessidades identificadas junto aos mais pobres originando tecnologias sociais (no plural), e possibilitar que elas sejam difundidas e reaplicadas, seriam então os objetivos de uma política pública para seu desenvolvimento.

Como é relativamente baixa a intensidade de conhecimento tecnocientífico associada a essas necessidades materiais insatisfeitas, não seriam necessárias mudanças significativas na política cognitiva (aquela que engloba a de educação e a de ciência, tecnologia e inovação). O efeito de demonstração de bancos de TS sobre casos bem-sucedidos, aumentaria a demanda por tecnologias sociais e seria suficiente para a introdução de mudanças incrementais – não radicais – nessa política pública.

Dado que a satisfação daquelas necessidades materiais pode ocorrer mediante atividades de produção e circulação de mercadorias com baixa lucratividade, o que atua como uma espécie de cerca de proteção do interesse empresarial, tampouco seria necessário alterar significativamente a política produtiva (industrial, agrícola, etc.) ou a de compras públicas; a qual é, em todo mundo, uma poderosa alavanca do desempenho econômico e tecnológico das empresas.

De outro lado, existe o grupo ao qual eu me filio, que, radicalizando a primeira posição, abraça uma segunda. Para ele, a questão do desenvolvimento de TS não é apenas o uso ou a apropriação do conhecimento científico existente. Isso porque a introdução de inovações tecnológicas no processo de trabalho se deve à autoridade para controlar e aumentar a produtividade do trabalhador que detém o empresário. E ao fato dele possuir, garantida pelo Estado, a propriedade dos meios de produção e a prerrogativa de contratar o trabalhador por um valor inferior ao produto que este gera, para assegurar seu lucro.

Essa situação leva a que a quase totalidade da pesquisa feita no mundo seja realizada pelas empresas ou em seu benefício e faz com que a dinâmica tecnocientífica esteja submetida a três tendências que crescentemente inibem o aproveitamento da tecnologia convencional para o desenvolvimento de TS.

No plano da sociedade em geral, tem-se a obsolescência planejada, a deterioração programada, o consumismo exacerbado e a degradação ambiental. No da produção, a segmentação, a hierarquização, o controle do processo de trabalho e a heterogestão. E, no da relação com os que vendem a sua força de trabalho e que são, em geral, os mais pobres, a desqualificação e a alienação.

Para este grupo, essas tendências, seriam decorrentes do fato do conhecimento tecnocientífico não ser neutro e universal. Mas, como qualquer outro, condicionado pelos valores e interesses dos atores sociais com maior poder econômico e político; no caso, os proprietários dos meios de produção. Por isso, elas exigiriam, para serem contrabalançadas, uma política orientada ao sistemático de “reprojetamento” tecnocientífico. A “adequação sociotécnica” da tecnologia convencional, a ser realizada em conjunto por pesquisadores e os pobres, organizados em empreendimentos solidários (baseados na propriedade coletiva dos meios de produção e na autogestão), é o que impulsionaria uma nova postura sobre a tecnologia e um movimento autossustentado e crescente pela TS.

Uma política pública para TS (no singular) não esgotaria no fomento à acumulação de experiências pontuais de geração de tecnologias sociais (no plural). Para este grupo, ela demandaria uma mudança significativa na forma de pesquisar, produzir, ensinar, difundir e utilizar o conhecimento tecnocientífico. E demandaria a adoção, no plano analítico-conceitual, de uma perspectiva crítica da neutralidade da tecnociência; no plano atitudinal, de uma postura pró-TS baseada nos valores da solidariedade, da propriedade coletiva dos meios de produção e da autogestão; e no plano prático-normativo, de uma transversalização das políticas públicas atinentes à produção e ao consumo e às dimensões cognitiva, ambiental, cultural e socioeconômica, capaz de fortalecer a “dobradinha” economia solidária – tecnologia social.   

Este segundo grupo sintetiza as dificuldades da “implementação” do conceito em nosso país destacando sua causa primeira: a prioridade concedida à consigna “emprego e salário” na formulação e implementação da política pública (que depende da boa vontade e da “confiança” do empresariado) em detrimento da de “trabalho renda” (que demanda o apoio àquela “dobradinha”). Consigna que, no início do primeiro governo Lula, aparecia com alguma força na sua agenda.

Prossigo citando os quatro arranjos institucionais derivados dessa agenda que começaram a ser objeto de política pública, mas que tiveram sua implementação diferida ou descontinuada. O que implica que “o que precisa ser feito” é retomar a sua implantação de modo a fortalecer a “dobradinha” que irá conferir sustentabilidade à TS.

3. Os quatro arranjos concebidos para viabilizar a “dobradinha” economia solidária – tecnologia social

O primeiro arranjo, que deveria ocupar o centro de um sistema integrado, era a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) do MTE. Sua função era mobilizar e assessorar a organização dos empreendimentos solidários ativando, em conjunto com as Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs) que já estavam sendo criadas nas universidades. Por considerarem que numa jobless and jobloss growth economy o empresariado não seria capaz de aproveitar nossa força de trabalho, ou por estarem imbuídos de um ideal socialista, os que dele participavam tratavam de mobilizar o movimento social, os sindicatos, os estudantes, etc. a ajudar os atores da economia solidária – agricultores familiares e catadores – a enfrentar os obstáculos a sua organização.

O segundo arranjo era responsável por proporcionar o suporte cognitivo necessário à operação dos empreendimentos solidários. Era formado pela Rede de Tecnologia Social (RTS) que já havia iniciado suas atividades apoiada pelo Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Petrobras, etc., pela recém-criada Secretaria de Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social (SECIS), e pela área social da Finep, ambas do Ministério de Ciência e Tecnologia e Inovação (MCTI). Cabia à RTS o papel de mobilização; à SECIS o de conceber e operar uma estrutura adicional àquela que fomenta a pesquisa e a formação de pessoal orientadas, em última instância, a satisfazer a demanda cognitiva da empresa; e à FINEP apoiar o funcionamento das ITCPs. Os envolvidos com este arranjo estavam conscientes que a tecnologia disponível, produzida pelas e para as empresas não era coerente com as características dos empreendimentos solidários e que a sua Adequação Sociotécnica na direção da TS dependia da orientação da SENAES.

O terceiro era responsável por proporcionar o suporte econômico-financeiro aos empreendimentos solidários e consistia na abertura, nos bancos públicos, de linhas de financiamento adequadas às suas características. Baseados em critérios que levassem em conta seu impacto positivo em outras políticas públicas (em especial as sociais e compensatórias) e que a eles proporcionassem um subsídio semelhante ao concedido às empresas, eles teriam sua operação alavancada pelos dois arranjos anteriores.

O quarto arranjo estava focado nas compras públicas. Estimadas em 18% do PIB, elas se orientam à aquisição, junto às empresas, dos bens e serviços – saúde, energia, construção civil, educação, etc. – que o Estado proporciona aos cidadãos em troca do imposto que pagam e que são imprescindíveis para a implementação das políticas públicas. Seu objetivo era destinar uma parcela do poder de compra do Estado para adquirir dos empreendimentos solidários a produção não destinada ao consumo das famílias. A qual poderia crescer à medida que os demais arranjos lhes proporcionassem recursos organizacionais, financeiros e cognitivos que os tornariam, além de eficazes e efetivos para o Estado e a sociedade, eficientes e competitivos em relação à empresa.

4. Avaliando o impacto do quarto arranjo

Para realizar esta avaliação começo me referindo ao pouco imposto arrecadado – 36% do PIB – e aos bens e serviços (educação, saúde, água, comunicação, transporte, energia…) que o Estado nos proporciona em troca.  Muitos deles chegam até nós mediante compras públicas feitas junto a empresas. Elas andam em torno de 18% do PIB (as estimativas se situam entre 14 a 20% do PIB) e se distribuem por esfera de governo, entre União (60%), Estados (20%) e Munícipios (20%); e por tipo de despesa, entre custeio (70%) e capital (30%).

Outro elemento necessário para proceder a esta avaliação é o fato de que as compras públicas são em todo o mundo um espaço privilegiado para o superfaturamento do que vendem as empresas privadas. Chama-se ou aparece como corrupção o que ganham dirigentes políticos e funcionários públicos (agentes públicos) por encobrir o superfaturamento. É razoável pensar que quanto mais alto o volume da compra pública e o lucro normal praticado no setor de atividade correspondente, maior será o valor “aceitável” (inclusive em termos relativos) do superfaturamento.

A condição de existência da corrupção é, portanto, um acerto entre donos de empresas privadas e agentes públicos com os quais, por pertencerem ao mesmo estrato mais rico da sociedade, eles possuem afinidades, relações de confiança (camaradagem, parentesco, etc.) ou, simples e genericamente, “laços culturais”.

Embora a corrupção seja estrutural e inerente ao capitalismo, é nos países periféricos, onde o Estado assumiu um elevado protagonismo econômico e onde é marcante a vigência do patrimonialismo e a concentração de poder econômico e político, que ela tende a ocorrer com maior frequência do que nos países de capitalismo avançado (apesar disso, muitos deles são mais afetados que nós pela corrupção). Nossas empresas estatais e de economia mista compram mais de 7% do PIB (e a Petrobras, sozinha, mais de 5%) de grandes empresas privadas que fornecem os insumos necessários para produzir os bens e serviços (relacionados principalmente à infraestrutura) que recebemos em troca de nosso imposto. O que não quer dizer que ela não seja também frequente no resto das compras públicas, como atestam casos envolvendo empresas menores como o da merenda escolar, das ambulâncias, etc.

A estimativa que faz a FIESP (fonte acima de qualquer suspeita) da corrupção, isto é, o que recebem ilegalmente os agentes públicos corrompidos, é de 2% do PIB. Mas, há que perceber que esse valor seria algo assim como a gorjeta que deixamos para o garçom que serve nossa refeição; os 10% do que gastamos. Na estimativa realizada não está computado o que esses 2% engendram em termos de recursos públicos que vão fraudulentamente parar no cofre das empresas privadas corruptoras: “o preço de nossa refeição”.

Uma característica da corrupção em nosso país é que o dinheiro dela proveniente nem sempre beneficia diretamente o agente público envolvido. É frequente no âmbito das atípicas coalizões de governo cujos dirigentes políticos não provêm do extrato mais rico da sociedade (ou da classe proprietária) o dinheiro seja usado para custear suas campanhas eleitorais. O que explica, sem justificar, a dificuldade que temos tido para coibir a corrupção.

Prossigo chamando a atenção para três aspectos que remetem ao que tem que fazer a esquerda no médio prazo para que tenhamos um país melhor e que são necessárias para avaliar o impacto das compras públicas sobre a “dobradinha”.

O primeiro, que apenas aponto, tem a ver com o elevado lucro que aquelas grandes organizações privadas e estatais (inclusive as do setor financeiro) se apropriam e que permite o superfaturamento. Sua origem é o trabalho de pessoas que a jusante e a montante operam as cadeias produtivas e de consumo que elas controlam e que poderiam, sob outra forma de organização do processo de trabalho, gerar mais renda para si e mais benefícios para a sociedade.

O segundo aspecto se relaciona com uma possível solução para o primeiro. Caso as diferentes esferas de governo orientassem a parcela do seu gasto (público) passível de ser atendida por empreendimentos solidários (onde aqueles laços “culturais” são menos frequentes), como já ocorre com a compra, da agricultura familiar, dos alimentos para a merenda escolar, não poderíamos diminuir a corrupção? Caso isso fosse feito, não poderia ser menor o preço pago pelos governos? Não seria mais vantajosa a relação custo-benefício social envolvida? Não seria mais viável coibir a sonegação perpetrada pelas empresas, avaliada em 14% do PIB (sete vezes mais do a corrupção)?

Sobre o terceiro aspecto, dado o impacto potencial que possui, vou-me alongar um pouco mais. Vou introduzi-lo com a pergunta sobre quanto daqueles 18% do PIB que representam as compras públicas poderia ser adquirido de cadeias de economia solidária? Quanto elas poderiam crescer à medida que se capacitem, inclusive cognitivamente, para produzir bens e serviços demandados (inclusive) pelo Estado? Quanto elas poderiam se tornar, sem perder suas características solidárias (propriedade coletiva, autogestão, relações de cooperação não assalariada), além de socialmente eficazes e efetivas, mais economicamente eficientes (ou competitivas), em relação à empresa privada?

A dinamização dos empreendimentos solidários, fundamentados na propriedade coletiva dos meios de produção, na autogestão e no emprego de TS, não é apenas uma forma de gerar oportunidades de trabalho e renda para os milhões de brasileiros não incorporados ao mercado formal. Mas, ainda assim, para ter uma ideia do tamanho desse contingente de pessoas, vale lembrar que dos 160 milhões em idade de trabalhar que integram os 207 que somos, menos de 30 milhões têm carteira assinada.

A economia solidária é uma forma, não condicionada a uma cada vez mais improvável recuperação da economia formal, de aproveitar nosso potencial subutilizado de geração de riqueza. Menos inda pela via que tem sido defendida pelo neodesenvolvimentismo, do aumento dos subsídios à indústria manufatureira, que hoje emprega menos de 2 milhões de pessoas com carteira assinada. E me refiro à ocupação com carteira assinada não porque entenda o emprego formal como uma possibilidade, mas porque ele é ainda o que permite algum tipo de proteção social ao trabalhador. A qual teria que ser estendida aos integrantes da economia solidária.

A economia solidária é uma maneira de possibilitar àqueles brasileiros a produção e o consumo de bens e serviços adequados à satisfação de suas necessidades. E de proporcionar aos que recebem, em troca do imposto que pagam, bens e serviços que correspondam a uma parcela do que o Estado hoje compra das empresas para implementar suas políticas públicas. Ou seja, bens e serviços passíveis de serem produzidos por cadeias de empreendimentos solidários (com TS) e adquiridos mediante o poder de compras do Estado.

É possível avaliar o potencial de promoção de crescimento com distribuição que possui o fomento à economia solidária e a sua condição de viabilização, a TS, mediante a realocação das compras públicas, recorrendo ao impacto do gasto com o Programa Bolsa Família. Se 30 milhões de brasileiros conseguiram sair da miséria mediante a alocação de 0,5% do PIB ao Programa Bolsa Família, o que se poderia obter se 1/6 das compras públicas (3% daqueles 18% do PIB) fosse orientado para a economia solidária? A conta é simples (3 x 30/0,5 = 180) e nos daria um resultado espetacular. O número de pessoas que passariam a obter renda a partir de seu trabalho em empreendimentos solidários – 180 milhões – seria ainda maior do que os 160 milhões em idade de trabalhar!

E isso que não se está levando em conta o avanço que teríamos na direção de uma forma de organização da produção e do consumo que, por estar baseada na propriedade coletiva e na autogestão, seria mais humana e ambientalmente sustentável.

5. Preparando a retomada: a organização dos coletivos contra-hegemônicos

Esta seção final aborda uma questão de imediata, de curtíssimo prazo. Trata-se do papel que pode desempenhar a economia solidária na articulação da multiplicidade de coletivos que hoje se posicionam em defesa dos seus direitos ameaçados pelas forças conservadoras que governam o país. Os coletivos que possuem um enorme potencial de ameaça e expansão, como o feminista, o dos sem terra e dos sem teto, os que parecem “ressurgir das cinzas”, como o dos secundaristas, os ligados a atores sociais relativamente bem organizados, mas tendencialmente cada vez menos importantes, como os sindicatos, têm em comum o fato de padecerem de duas lacunas organizativas que a economia solidária pode preencher.

A primeira lacuna tem a ver com o fato de serem o resultado de um processo de nucleação em torno da obtenção de algo que o capitalismo e as forças conservadoras não lhes deu ou está negando. Eles se caracterizam por uma postura que, devido a isso, me atrevo a chamar de reativa.

Em muitos casos, esses coletivos tendem a defender uma volta ao nacional-desenvolvimentismo ou de algo como o capitalismo de bem-estar. Coisas muito distintas do que o que propõe a economia solidária, cuja postura é francamente propositiva. Em especial se se considera que sua condição de existência e fortalecimento é a concepção da sua “plataforma cognitiva de lançamento”, que terá que estar baseada no radical reprojetamento da tecnociência capitalista.

A segunda lacuna organizativa desses coletivos contra-hegemônicos é justamente o fato de não demonstrarem possuir em comum algo mais sólido e aglutinante do que sua oposição (reativa) ao capital. Além de não enunciarem claramente um conteúdo propositivo que vá “mais além do capital” e que, oferecendo uma perspectiva de superação e de atendimento a suas demandas, possibilite a sua coesão identitária, inexiste uma noção no plano da vida material que funcione como um eixo organizativo. Muito menos que garanta à população o direito de produzir e ter acesso, seja diretamente, seja mediante a interveniência do Estado, aos bens e serviços que necessita para sobreviver.

A economia solidária, poderá vir a ser esse elemento nucleador, aglutinador e organizativo daqueles coletivos. Por orientar-se à produção e circulação de bens e serviços, ela é o germe de uma alternativa material e real à forma capitalista de organizar a sociedade. O que é imprescindível para dar vida e mostrar a viabilidade dos nossos anseios por um mundo melhor. É significativa a importância da implementação da proposta da economia solidária para acelerar os processos de conscientização, participação e empoderamento desses coletivos, e a partir deles da população em geral.

À medida que esses coletivos visualizem o fato portador de futuro que ela representa, ficará claro sua vantagem em relação às formas de protesto – passeatas e mobilizações, emprego das redes sociais, e mesmo greves, todas de efeito é pontual – que a conjuntura permite. A implantação da economia solidária implicará uma ação reiterada e sistêmica sobre aqueles processos de mobilização. Além dos obstáculos técnico-econômicos, de funcionamento participativo e autogestionário, legais, de fomento, etc., ela terá que enfrentar as ameaças da classe proprietária ferida no seu órgão mais sensível, o bolso.

Finalmente, mas não menos importante para o propósito deste texto, a economia solidária nos obrigará a conectar de modo criativo – uma vez que isto nunca se consegui fazer antes – os ambientes da gestão governamental e da gestão social em prol de um mundo melhor.

Renato Peixoto Dagnino atua como Professor Titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da UNICAMP e Professor Convidado em várias universidades latino-americanas.

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