Karl Polanyi e a regulação do capitalismo, por Ruy Braga

Do blog da Boitempo

Incontornável Polanyi

Por Ruy Braga.

Escrevendo três meses antes do pedido de concordata do banco Lehman Brothers, marco do início da atual crise econômica mundial, o professor de economia da Universidade da Califórnia em Davies, Gregory Clark, publicou uma resenha crítica à obra-prima de Polanyi questionando-se sobre as razões da longevidade de seu interesse. Afinal:

“A história não foi gentil com os prognósticos de Karl Polanyi. O capitalismo de livre mercado é um sistema estável e resistente na maior parte do mundo – particularmente, nos países de língua inglesa. […]. O padrão-ouro desapareceu, mas em seu lugar surgiu um sistema de taxas de câmbio flutuantes regulado por mecanismos de mercado. […]. Instrumentos mais eficientes de administração monetária reduziram enormemente a severidade dos ciclos de negócios. Medido pelo sucesso dos mercados, a civilização do século 19 parece estar desfrutando de um renascimento. O verdadeiro enigma do livro de Polanyi é, então, por que razão seu fascínio é tão duradouro tendo em vista a desconexão entre suas predições e as realidades modernas. […]. Assim, a popularidade de Polanyi representa o triunfo da vontade e do romantismo sobre a ciência em disciplinas como a sociologia”.1

Ainda que o contexto presente tenha arruinado o otimismo de Clark sobre a estabilidade dos mercados, argumentaremos que, no tocante à sociologia crítica o livro de Karl Polanyi, A grande transformação, talvez seja a obra que mais perto tenha chegado de traduzir para a linguagem da teoria social o grande consenso popular formado no pós-Segunda Guerra em torno da necessidade imperiosa de regular o capitalismo a fim de proteger a humanidade dos efeitos deletérios da mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro. Publicado em 1944, mesmo ano do aparecimento do livro de Friedrich von Hayek, O caminho da servidão, o projeto intelectual por trás de A grande transformação foi, em grande medida, forjado nos anos 1920 enquanto Polanyi vivia em uma Viena “socialista” que marcou de forma indelével suas convicções socialistas democráticas.

Aliás, as trajetórias, os destinos e as fortunas críticas de Polanyi e Hayek não deixam de sintetizar boa parte das desventuras do capitalismo no pós-Segunda Guerra. Chegados juntos à Inglaterra como imigrantes no início dos anos 1930, ambos viveram na mesma Viena socialista que fascinou Polanyi e horrorizou Hayek e seu mentor intelectual Ludwig von Mises.2 Nos anos 1920, Hayek e von Mises ficaram traumatizados pela experiência da prefeitura socialista de Viena que por meio de suas políticas públicas de moradia popular e proteção social favorecia as classes trabalhadoras. Ambos consideraram o socialismo em todas as suas múltiplas variedades, utópicas, reformistas ou revolucionárias, como uma usurpação das liberdades individuais. E decidiram olhar para trás, isto é, para a utopia do mercado auto-regulado, a fim de recuperar essa ideologia completamente desacreditada pela grande crise de 1929.

Hayek e Polanyi são antípodas perfeitos. Principal representante da quarta geração da escola austríaca de economia, Hayek emigrou da Viena vermelha do pós-guerra para a Inglaterra onde lecionou na London School of Economics(LSE) e influenciou a criação do Instituto de Assuntos Econômicos (IEA) que, posteriormente, ajudaria a formatar as políticas neoliberais implementadas por Margareth Thatcher. Finalmente, Hayek estabeleceu-se nos Estados Unidos, onde se transformou na figura ideologicamente mais proeminente associada ao Departamento de Economia da Universidade de Chicago. De desajustado na Viena socialista dos anos 1920 a ganhador do prêmio Nobel de economia em 1974: Hayek foi redimido pela grande onda de mercantilização inaugurada nos anos 1970.

Polanyi viveu entre Budapeste e Viena, cidades onde, antes de 1914, revolucionários russos eram bem-acolhidos por sua própria família. Manifestando inclinações socialistas desde jovem, Polanyi rapidamente evoluiu da liderança ativa do movimento estudantil húngaro a fundador do Círculo Galileu (ao lado de György Lukács) e admirador da coragem e audácia dos revolucionários marxistas. Em 1914, Polanyi ajudou a fundar o Partido Radical Húngaro, atuando como seu secretário-geral. Durante a I Guerra Mundial, ele lutou no front russo e terminado o conflito apoiou o célere governo socialdemocrata húngaro.

Nos anos 1920, vivendo em Viena, ele envolveu-se em debates sobre a contabilidade socialista, chegando a delinear um modelo democrático, funcionalista e associativo de processo de deliberação socialista tanto no âmbito econômico, quanto na esfera política. Entre 1924 e 1933, atuando como editor de uma prestigiosa revista econômica austríaca, Polanyi criticou a Escola Austríaca de Economia por sua visão abstrata e desenraizada dos processos econômicos.3Desde então, os conflitos entre a economia de mercado, assim como a importância da deliberação democrática na economia moderna transformaram-se temas frequentes em seus trabalhos.

Em 1933, após a ascensão de Hitler ao poder, Polanyi foi demitido da revista onde trabalhava e mudou-se para Londres onde passou a lecionar numa associação educacional de trabalhadores por um salário mínimo. Suas pesquisas e anotações de aula serviram de base para a redação do livro A grande transformação. Em 1940, Polanyi e sua esposa, a revolucionária comunista húngara Ilona Duczyńska, mudaram-se para Vermont nos Estados Unidos onde ele passou a lecionar em uma faculdade local. Após a II Guerra Mundial e devido ao sucesso obtido pela publicação d’A grande transformação Polanyi foi convidado a lecionar na Universidade de Columbia. No entanto, o passado comunista de sua esposa os impediu de obter o visto estadunidense. Assim, o casal mudou-se para o Canadá, onde Polanyi continuou sua pesquisa sobre a formação do sistema econômico moderno a partir de uma abordagem histórica comparativa, lecionando eventualmente, em Columbia, até por volta de sua morte em 1964.4

O legado teórico de Karl Polanyi espalhou-se por várias especialidades das ciências sociais, tais como a sociologia histórica, a economia política e a antropologia social. A abordagem “substantivista” do enraizamento das relações econômicas na sociedade, assim como a crítica à ideia do mercado auto-regulado, ambas centrais nos trabalhos de Polanyi, encontram-se, por exemplo, tanto na base das elaborações da Teoria Francesa da Regulação quanto na sociologia crítica da economia de Pierre Bourdieu. Se é verdade que seu legado intelectual influenciou muitos campos das ciências humanas e sua influência acadêmica é reconhecidamente mais abrangente do que a de seu antípoda, Friedrich Hayek, por exemplo, foi a capacidade de sintetizar o “espírito da época” fordista em seu afamado livro que fez de Polanyi um autor incontornável da sociologia.

* * *

No Seminário Cidades Rebeldes, Ruy Braga fez uso do arcabouço teórico desenvolvido por Karl Polanyi em sua intervenção no debate sobre a luta de classes no Brasil contemporâneo. Confira:

NOTAS

1 Gregory Clark. “Reconsiderations: ‘The Great Transformation’ by Karl Polanyi”. New York Sun, 4 de junho de 2008.
Para mais detalhes, ver Kari Polanyi Levitt. From the Great Transformation to the Great Financialization: On Karl Polanyi and Other Essays. Nova Iorque, Zed Books, 2013.
Para uma visão matizada a respeito da compreensão de Polanyi acerca do duplo processo de desenraizamento e re-enraziamento da economia, ver Gareth Dale.Karl Polanyi: The Limits of the Market. Malden: Polity Press, 2010. Sobre as raízes teóricas e políticas da visão do socialismo democrático de Polanyi, ver Kari Polanyi Levitt. From the Great Transformation to the Great Financialization: On Karl Polanyi and Other Essays. Nova Iorque, Zed Books, 2013.
4 Para mais detalhes biográficos de Karl Polanyi, ver Kari Polanyi Levitt. The Life and Work of Karl Polanyi. Montreal, Black Rose Books, 1996.

***

Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro,A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

Redação

10 Comentários

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  1. “moinho satânnico”.

    Uma das principais contribuições para a Sociologia é a identificação dos processos reais de transformação da força de tabalho em “mercadoria” (ao lado do mercado de terra e de dinheiro), a grande inovação institucional das sociedades capitalistas, analisando as sucessivas poor laws, acts of settlements, a speenhamland law., etc.

    Offe e outros chamam isso de proletarização “ativa” que é promovida pelo estado capitalista (coisa que muitos tolos acham que é “assim mesmo” ou que é “natural”)

  2. O socialismo é inviável por

    O socialismo é inviável por causa do “De cada um conforme a sua capacidade para cada um conforme a sua necessidade” que  transforma todos em necessitados ao longo do tempo.

    Hayek adiciona que era impossivel o estado planejar a economia pela impossibilidade do conhecimento de todas as transações comercias.

    Um erro comum é pensar em mercados desregulamentados, o positivista não compreende ou não aceita o fenômeno natural das ordens expontâneas.

    Não existe mercado que não seja regulado pelos seus próprios atores caso contrário não seria um mercado, a própria existência do mercado e as relações internas ,ou seja consumidor, produtor, utilidade, demanda, forma uma auto regulação. A regulação é sempre feita desta forma seja diretamente ou indiretamente pelo estado.

  3. liberdades individuais

     

    “Nos anos 1920, Hayek e von Mises ficaram traumatizados pela experiência da prefeitura socialista de Viena que por meio de suas políticas públicas de moradia popular e proteção social favorecia as classes trabalhadoras. Ambos consideraram o socialismo em todas as suas múltiplas variedades, utópicas, reformistas ou revolucionárias, como uma usurpação das liberdades individuais.”

    Esses liberais são um piada ( mesmo os que ganham o premio Nobel). Desde quando socialismo (democratico ) é incompativel com as liberdades individuais? Que socialismo estão falando?

    Que liberdade individual existe quando crianças e mulheres são explorados com jornadas extensase salarios de fome?.

    Isso ainda acontece em paises como Bangledesh, India, Brasil e inumeros paises da Africa etc.

    Lé so ler qualquer bom livro de historia  ou ciencia politica referente as condições de vida da classe trabalhadora.

    Simples assim.

    1. Onde existiu socialismo

      Onde existiu socialismo democrático?

      Se o socialismo se basea na violência para se impor e para se manter como pode ser democrático?

       

      1. Ô Neide, e o Capitalismo se

        Ô Neide, e o Capitalismo se baseia em que para se impor e se manter? No perfume sedutor das classes dominantes?? 

    2. A Revolta de Atlas – Massinha I

      por Ayn Rand

      rockefeller2.jpgEm 1991 a biblioteca do congresso americano recebeu a missão de descobrir qual havia sido o livro que mais influenciara a vida das pessoas. A “Bíblia” ficou com o primeiro lugar, “Quem é John Galt?” ficou com o segundo lugar. O livro da escritora russa Ayn Rand foi lançado na década de 1950 e até hoje já vendeu milhões de exemplares ganhando dos críticos o título de “Guerra e Paz” do capitalismo.

      Abaixo alguns trechos selecionados.

      ——-

      Há doze anos vocês se perguntam: “Quem é John Galt?” Quem está falando é John Galt.

      Eu sou o homem que ama a vida. Eu sou o homem que não sacrifica seu amor nem seus valores. (…) Os únicos conceitos de moralidade que vocês conhecem são o místico e o social. Vocês aprenderam que a moralidade é um código de comportamento imposto pelo capricho de um poder sobrenatural ou pelo capricho da sociedade, para servir os desígnios de Deus ou o bem-estar do próximo, para agradar a uma autoridade do outro mundo ou da casa ao lado – mas não para servir a sua própria vida e o seu próprio prazer. Vocês aprenderam que o seu próprio prazer se encontra na imoralidade, os seus próprios interesses residem no mal, e que todo código moral tem que ser voltado não para vocês, mas contra vocês, não para promover a vida, mas para abatê-la.

      Durante séculos, a luta da moralidade foi travada entre aqueles que afirmavam que a sua vida pertence a Deus e aqueles que afirmavam que ela pertence ao próximo – entre aqueles que pregavam que o bem é sacrificar-se em nome de fantasmas no céu e aqueles que pregavam que o bem é sacrificar-se em nome dos incompetentes na terra. E ninguém veio para dizer-lhes que a sua vida pertence a vocês, e que o bem consiste em vivê-la.

      Ambas as partes em conflito (místicos e coletivistas) estavam de acordo quanto a uma coisa: a moral exige que se abandone o interesse próprio e a mente, a moral e a vida prática são conflitantes, a moralidade não faz parte do domínio da razão, e sim da fé e da força. Ambas as partes concordavam que não é possível haver uma moralidade racional, que não há certo e errado na razão – que na razão não há razão para se agir conforme a moral.

      Ainda que brigassem por vários motivos, todos os moralistas se uniam na luta contra a mente do homem. Era a mente do homem que todos os sistemas e dogmas deles visavam a saquear e a destruir. Agora vocês têm que optar: ou morrer ou aprender que ser contra a mente é ser contra a vida.

      A mente do homem é o instrumento básico de sua sobrevivência. A vida lhe é concedida, mas não a sobrevivência. Seu corpo lhe é concedido, mas não o seu sustento. Sua mente lhe é concedida, mas não o seu conteúdo. Para permanecer vivo, ele tem de agir, e para que possa agir, ele tem que conhecer a natureza e o propósito de sua ação. Ele não pode obter seu alimento sem conhecer qual é seu alimento e como tem de agir para obtê-lo. Não pode cavar um buraco, nem construir um ciclotron, sem conhecer seu objetivo e os meios de atingi-lo. Para permanecer vivo, ele tem de pensar.

      (…)

      A felicidade é o estado de sucesso na vida; a dor é um agente da morte. A felicidade é aquele estado da consciência que decorre da realização dos valores que se têm. Uma moralidade que ousa dizer-lhes que vocês devem procurar a felicidade na renúncia à sua felicidade – valorizar o fracasso de seus valores – é uma insolente negação da moralidade. Uma doutrina que lhes dá como ideal o papel de animal a ser sacrificado em holocausto no altar dos outros lhes dá a morte como padrão. Por obra e graça da realidade e da natureza da vida, o homem – todo homem – é um fim em si, existe por si, e a realização de sua própria felicidade é seu mais elevado objetivo moral.

      Mas nem a vida nem a felicidade podem ser alcançadas pela busca de caprichos irracionais. Assim como o homem é livre para tentar sobreviver de qualquer maneira aleatória – mas há de morrer se não viver de acordo com as exigências da natureza – assim também ele é livre para buscar sua felicidade em qualquer fraude irracional; nesse caso, porém, a tortura da frutração é tudo que ele encontrará, a menos que ele busque a felicidade própria do homem. O objetivo da moralidade é ensinar não a sofrer e morrer, e sim a gozar a vida e viver.

      (…)

      Não, vocês não são obrigados a viver como homens; esse é um ato de escolha moral. Mas vocês não podem viver como nenhuma outra coisa – e a alternativa é esse estado de morto-vivo que vocês agora vêem dentro de si próprios e a seu redor, esse estado de coisa incapaz de existir, que não é mais humano e é algo menos que um animal, que só conhece a dor e se arrasta na agonia da autodestruição irracional.

      Não, vocês não são obrigados a pensar; esse é um ato de escolha moral. Mas alguém teve de pensar para mantê-los vivos; se vocês optam pela inconsequência, vocês fraudam a existência e repassam esse déficit para algum homem moralmente correto, na esperança de que ele sacrifique seu próprio bem para que vocês possam sobreviver a seu próprio mal.

      Não, vocês não são obrigados a ser homens; mas hoje em dia aqueles que o são não estão mais aí. Eu retirei do mundo de vocês seus meios de sobrevivência – suas vítimas.

      (…)

      Do mesmo modo como sustento minha vida não por meio do roubo nem de esmolas, e sim pelo meu próprio esforço, assim também não tento basear minha felicidade na desgraça dos outros nem nos favores que os outros me concedam, porém a ela faço juz por minhas próprias realizações. Do mesmo modo como não considero o prazer dos outros o objetivo da minha vida, assim também não considero o meu prazer o objetivo das vidas dos outros. Do mesmo modo como não há contradições nos meus valores nem conflitos nos meus desejos – assim também não há vítimas nem conflitos de interesse entre homens racionais, homens que não desejam o imerecido nem se encaram uns aos outros com uma volúpia de canibal, homens que nem fazem sacrifícios nem os aceitam.

      (…)

      Vocês me perguntam que obrigação moral eu tenho para com os meus semelhantes? Nenhuma – senão aquela que devo a mim mesmo, aos objetivos materiais e a toda a existência: a racionalidade. Trato os homens como requerem minha natureza e as exigências deles: por meio da razão. Não busco nem desejo nada deles senão os relacionamentos nos quais eles escolham entrar por livre e espontânea vontade. Só sei lidar com suas mentes – e assim mesmo quando isso é do meu interesse – quando eles vêem que meu interesse coincide com o deles. Quando isto não acontece, não entro em relação alguma; quem discordar de mim que siga o seu caminho, que eu não me desvio do meu. Só venço por meio da lógica, e só a lógica me rendo. Não abro mão de minha razão, nem lido com homens que abrem mão da sua. Nada tenho a ganhar com idiotas e covardes; não tento ganhar nada dos vícios humanos: a estupidez, a desonestidade, o medo. O único valor que os homens podem me oferecer é o produto de sua mente. Quando discordo de um homem racional, deixo que a realidade seja nosso árbitro final; se eu estiver certo, ele aprenderá; se eu estiver errado, aprenderei; um de nós ganhará, porém nós dois lucraremos.

      (…)

      É apenas como retaliação que a força pode ser usada – e somente contra a pessoa que foi a primeira a usá-la. Não, não compartilho da maldade dela nem me rebaixo ao seu conceito de moralidade: apenas lhe concedo sua escolha, a destruição, a única destruição que ela tinha o diretito de escolher: a dela mesma. Ela usa a força para se apossar de um valor; eu a uso apenas para destruir a destruição. O assaltante tenta enriquecer matando-me; eu não me torno mais rico quando mato o assaltante. Não busco valores por meio do mal, nem submeto meus valores ao mal.

      (…)

      Vocês que cultuam o zero – vocês jamais descobriram que realizar a vida não é equivalente a evitar a morte. O prazer não é ‘a ausência da dor’, a inteligência não é ‘a ausência da estupidez’, a luz não é ‘a ausência da escuridão’, uma entidade não é ‘a ausência de uma nulidade’. Construir não é coisa que se realize simplesmente pelo fato de não demolir; não adianta passar séculos parado, sem demolir: nem sequer uma viga se erguerá – e agora vocês não podem mais dizer a mim, o produtor: ‘Produza e nos alimente, que em troca nós não destruiremos sua produção’, pois eu responderei, em nome de todas as vítimas que vocês fizeram: Morram com o seu próprio vazio. A existência não é uma negação de negações. O mal, e não o valor (bem), é que é uma ausência e uma negação; o mal é impotente, e só dispõe do poder que lhe permitimos arrancar de nós. Morram, porque aprendemos que um zero não pode hipotecar a vida.

      Vocês querem esquivar-se da dor. Nós queremos atingir a felicidade. Vocês existem para evitar o castigo. Nós existimos para fazer jus às recompensas. As ameaças não nos farão trabalhar; o medo não é nosso incentivo. Não queremos evitar a morte e sim viver.

      (…)

      O bem, dizem os místicos do espírito, é Deus, um ser cuja única definição é estar além do poder de concepção do homem – definição essa que invalida a consciência do homem e anula seus conceitos de existência. O bem, dizem os místicos dos músculos, é a Sociedade – algo que eles definem como um organismo que não possui forma física, um super-ser que não se concretiza em nenhum indivíduo específico e sim em todos em geral, mas nunca em vocês. A mente do homem, dizem os místicos do espírito, deve subordinar-se à vontade de Deus. O padrão de valor do homem, dizem os místicos do espírito, é o bel-prazer de Deus, cujos padrões estão além do poder de compreensão do homem e têm de ser aceitos pela fé. O padrão de valor do homem, dizem os místicos dos músculos, é o bel-prazer da Sociedade, cujos padrões estão além do direito de julgar do homem e têm que ser obedecidos como um absoluto. O objetivo da vida do homem, dizem ambos, é se tornar um zumbi abjeto que serve um objetivo que ele desconhece, por motivos que ele não pode questionar. Sua recompensa, dizem os místicos do espírito, lhe será dada após a morte. Sua recompensa, dizem os místicos dos músculos, será dada aqui mesmo na terra – a seus bisnetos.

      O egoísmo – dizem ambos – é o mal do homem. O bem do homem – dizem ambos – é abrir mão de seus desejos individuais, negar-se a si próprio, renunciar a si próprio, render-se; o bem do homem é negar a vida que ele vive. O sacrifício – exclamam ambos – é a essência da moralidade, a mais elevada virtude ao alcance do homem.

      Todo aquele que está agora ao alcance da minha voz, todo aquele que seja vítima e não assassino, que está me ouvindo falar ao pé do leito de morte da sua mente, a um passo daquele abismo negro no qual vocês agora estão se afogando, e se ainda resta em vocês o poder de lutar para não perderem os últimos vestígios daquilo que vocês tinham como seu – usem-no agora. A palavara que o destruiu é sacrifício. Use o que resta da sua força para entenderem o significado dessa palavra. Vocês ainda estão vivos. Vocês ainda têm uma chance.

      (…)

      Se vocês querem salvar os últimos vestígios de sua dignidade, não chamem as suas melhores ações de ‘sacrifícios’: esta palavra os rotula de imorais. Se uma mãe compra comida para seu filho que tem fome em vez de um chapé para si própria, isso não é sacrifício: ela dá mais valor ao filho do que ao chapéu; porém isso é um sacrifício para o tipo de mãe que dá mais valor ao chapéu, que preferia ver o próprio filho morrer de fome, e só lhe dá comida por obrigação. Se um homem morrer lutando por sua própria liberdade, isso não é sacrifício: ele não está disposto a viver como escravo; porém isso é um sacrifício para o tipo de homem que está disposto a viver como escravo. Se um homem se recusa a vender suas convicções, isso não é um sacrifício, a menos que ele seja o tipo de homem que não tem convicções.

      (…)

      Por que é imoral produzir um valor e ficar com ele, mas não o é dá-lo aos outros? E se é imoral para vocês ficar com esse valor, por que não é imoral para os outros aceitá-lo? Se vocês são altruístas e virtuosos quando o dão, eles não serão egoístas e maus quando o aceitam? Então a virtude consiste em servir o vício? Então o objetivo moral dos bons é imolar-se em benefício dos maus?

      A resposta de que vocês se esquivam, a resposta monstruosa é: Não, os que recebem não são maus, desde que eles não mereçam o valor que vocês lhes deram. Não é imoral para eles aceitar a dádiva, desde que eles sejam incapazes de produzi-la, incapazes de merecê-la, incapazes de lhes dar algo em troca. Não é imoral para eles encontrar prazer nela, desde que eles não a obtenham por direito.

      (…)

      Assim como não pode haver riqueza sem causa, assim também não pode haver amor sem causa, nem nenhuma emoção sem causa. Uma emoção é uma reação a um aspecto da realidade, uma estimativa ditada pelos seus padrões: Amar é *valorizar*. O homem que diz que é possível valorizar sem valores, amar aqueles que vocês consideram desprovidos de valor, é o homem que afirma que é possível enriquecer consumindo sem produzir, e que papel-moeda é tão valioso quanto ouro.

      (…)

      O amor é a manifestação dos valores que se têm, a maior recompensa a que se pode fazer jus através das qualidades morais que se atingiram no caráter e na própria pessoa, o preço emocional pago por um homem pelo prazer que lhe proprocionam as virtudes de outro. A sua moralidade exige que vocês divorciem o seu amor dos seus valores e o entreguem a qualquer vagabundo, não como uma resposta a seu valor, e sim como um resposta à sua necessidade; não como recompensa, mas como esmola; não como remuneração de virtudes, mas como um cheque em branco concedido aos vícios. A sua moralidade lhes diz que o objetivo do amor é liberá-los das amarras da moralidade, que o amor é superior ao discernimento moral, que o verdadeiro amor transcende, perdoa e sobrevive a toda espéice de erro em seu objeto, e quanto maior o amor, maior a depravação permitida ao amado. Amar um homem por suas virtudes é mesquinho e humano, diz esta moralidade; amá-lo por seus defeitos é divino. Amar aqueles que são merecedores de valor não passa de interesse; amar os que não merecem amor é sacrifício.

      (…)

      Qual a natureza daquele mundo superior ao qual vocês sacrificam esse mundo que realmente existe? Os místicos do espírito amaldiçoam a matéria, os místicos da Sociedade amaldiçoam o lucro. Aqueles querem que os homens lucrem renunciando ao mundo; estes, que os homens herdem o mundo renunciando ao lucro. Os mundos sem matéria e sem lucros por eles propostos são terras em que nos rios correr café com leite, brota vinho das pedras quando eles assim ordenam, caem pastéis do céu quando abrem a boca. No mundo material em que vivemos, em que as pessoas correm atrás do lucro, é necessário um investimento enorme de virtude – de inteligência, integridade, energia e capacidade – para construir uma ferrovia de um quilômetro de extensão; no mundo sem matería e sem lucro que os místicos propõem, viaja-se de um planeta a outro graças à formulação de um desejo. Se uma pessoa honesta lhes pergunta ‘Como?’ – eles respondem, com indignação e escárnio, que ‘como’ é um conceito de realistas vulgares; o conceito dos espíritos superiores é ‘de algum modo’. Neste nosso mundo circunscrito pela matéria e o lucro, as recompensa requerem o pensamento; num mundo libertado de tais restrições, basta desejar.

      (…)

      Toda vez que vocês se revoltam contra a causalidade, o que os motiva é o desejo fraudulento não de escapar dela, mas, o que é pior, de invertê-la. Vocês querem amor imerecido, como se amor, que é efeito, lher pudesse atribuir valor pessoal, que é a causa; querem admiração imerecida, como se a admiração, o efeito, pudesse lhes conferir virtude, a causa; querem riquezas imerecidas, como se a riqueza, o efeito, pudesse lhes conferir capacidade, a causa; imploram por piedade, PIEDADE não justiça, como se um perdão imerecido pudesse ter o efeito de apagar a causa do seu pedido de misericórdia. E para permitirem estas suas falsificações mesquinhas, vocês defendem as doutrinas de seus mestres, enquanto eles andam por aí proclamando que os gastos, que são o efeito, é que criam as riqueza, que é a causa; que as máquinas, o efeito, criam a inteligência, a causa; que os seus desejos sexuais, o efeito, criam os seus valores filosóficos, a causa.

      (…)

      A vida entre vocês é um gigantesco fingimento, uma farsa que um representa para o outro, cada um se achando o único diferente, o único culpado, cada um atribuindo a autoridade moral ao incognoscível que só os outros conhecem, cada um falseando a realidade que acha que os outros querem que ele falseie, nenhum com a coragem de quebrar o círculo vicioso.

      (…)

      Para vocês, a moralidade é um espantalho constituído de dever, tédio, castigo e dor, um cruzamento da primeira professora que vocês tiveram no primário com o coletor de impostos de agora, um espantalho colocado num campo estéril, sacudindo uma vara para espantar os seus prazeres – e prazer, para vocês é um cérebro empapado de álcool, uma prostituta animalesca, o estupor de um imbecil que aposta dinheiro numa corrida de animais, pois o prazer não pode ser algo moralmente correto.

      (…)

      Aceitem o fato de que vocês não são oniscientes, mas saibam que bancar o zumbi não vai torná-los oniscientes; aceitem o fato de que a sua mente é falível, mas admitam que livrar-se da mente não vai torná-los infalíveis; aceitem o fato de que um erro que vocês cometeram por iniciativa própria é mais seguro do que dez verdades aceitas por fé, porque a sua iniciativa lhes dá os meios de corrigi-lo, enquanto a mera aceitação destrói a sua capacidade de distinguir a verdade do erro. Substituam o seu sonho de autômatos oniscientes, aceitem o fato de que todo conhecimento que o homem adquire é fruto de sua própria vontade e de seu próprio esforço, e que isto é que o distingue no universo, esta é a sua natureza, sua moralidade, sua glória.

      (…)

      Aquilo que vocês não sabem não pode representar uma acusação moral contra vocês; mas aquilo que vocês se recusam a saber é marca da infâmia que cresce na sua alma. Tenham toda a tolerância possível com os erros de conhecimento; não perdoem nem aceitem nenhum deslize moral.

      (…)

      Um passo básico na aprendizagem do amor-próprio é encarar como sinal de canibalismo toda *exigência* de ajuda. O homem que exige ajuda de vocês está afirmando que a sua vida é propriedade dele – e por mais repugnante que isso seja, há algo ainda mais repugnante: concordar e aceitar. Perguntam vocês: é bom ajudar outro homem? Não, se ele afirma que se trata de um direito dele ou de um dever moral seu; sim, se isto é o que vocês desejam, com base no prazer egoísta que lhes proporciona o *valor* da pessoa e da *luta* do outro. O sofrimento, enquanto tal, não é valor. Só a luta do homem contra o sofrimento o é.

      (…)

      Direitos são um conceito moral – e a moral é uma questão de escolha. Os homens têm a liberdade de não optar pela sobrevivência do homem como padrão de sua moralidade e de suas leis, mas não a de esquivar-se do fato de que a alternativa é uma sociedade de canibais, que existe por algum tempo devorando o que ela tem de melhor e depois cai como um corpo canceroso, quando os saudávies já foram comidos pelos doentes, quando os racionais já foram consumidos pelos irracionais. Este sempre foi o destino histórico das sociedades, mas vocês se esquivaram do conhecimento da causa.

      (…)

      Vocês resolveram achar que era injusto que nós, que retiramos vocês das choupanas e lhes demos apartamentos modernos, rádios, cinemas e automóveis, tivéssemos palácios e iates – resolveram que vocês tinham direito a receber seu salário, mas nós não tínhamos direito de receber nossos lucros; que vocês não queriam que lidássemos com as suas mentes e sim com as suas armas, mas nossa resposta foi: ‘pois que se danem!’ E foi o que de fato aconteceu. Vocês se danaram.

  4. Mesmo diante das centenas de

    Mesmo diante das centenas de fracassos dos economistas é impressionante a cara de pau dos seus lideres.

    Karl Polanyi e a regulação do capitalismo,  ou nada é a mesma coisa. Não existe um estabelecimento sequer de regulação do capital que seja definitivo em função do seu relacionamento com o mercado.

    Ninguém está autorizado a regulamentar ou descrever com sinceridade a revelação que pode melhorar uma centralização que não seja para o mercado especular a usurpação da exterioridade das nações.

    Na verdade, o sistema da economia é a partir da mentira sobre a verdade  da raiz do seu nível de compreensão: a moeda.

    Exceto se usarmos o poder da razão de referência de um todo verdadeiro, para intermediar a grandeza das relações de produção. Daí o dólar dos EUA perde o domínio de inferência das nações, e bancos deixam de ser o sujeito passivo de unidade do objeto (títulos públicos) das moedas nacionais.

    Desmonta-se o engôdo internacional – capitalismo = capitar valor – da riqueza alheia.

    O que se torna possível de se regular não é o capitalismo, mas o engendramento da produção pelo valor do trabalho; porque só o trabalho pode criar valor (razão de referência) em níveis para a moeda e, em seu nome, acrescentar crescimento econômico puro ao Estado, porque só o trabalho é exterior ao “valor da riqueza a ser apreendido” para fazer a economia girar.

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