Keynes, um Anticomunista
por Fernando Nogueira da Costa
John Maynard Keynes – a maior referência da história do pensamento econômico no século XX – e sua esposa, Lydia Lopokova, visitaram a Rússia em setembro de 1925, logo após seu casamento. Ele foi representante oficial da Universidade de Cambridge nas celebrações do bicentenário da Academia Russa de Ciências. Após a visita, ele escreveu três artigos posteriormente publicados como “Uma breve visão da Rússia”. Uma versão abreviada apareceu em Essays in Persuasion.
“É extraordinariamente difícil ser imparcial em relação à Rússia”. Após essa confissão, se propõe a responder sua questão demonstrativa de parti pris: o que é a fé comunista?
Sua posição ou atitude era uma opção preconcebida. Foi exposta como uma prevenção contra o “vírus comunista” se espalhar pelo mundo, 8 anos após a revolução soviética.
Na sua opinião, assumida antecipadamente, o leninismo era uma combinação de duas coisas: religião e negócios. “Ficamos chocados porque a religião é nova e desdenhosos porque o negócio, estando subordinado à religião (e não o contrário), é altamente ineficiente”.
Tal como outras novas religiões, diz, “o leninismo deriva o seu poder não da multidão, mas de uma pequena minoria de convertidos entusiastas, cujo zelo e intolerância fazem com que cada um seja igual em força a uma centena de indiferentes”.
Tal como outras novas religiões, acusa, “persegue sem justiça ou piedade aqueles capazes de lhe resistir ativamente”. Mas, ressalva, dizer o leninismo ser “a fé de uma minoria perseguidora e propagadora de fanáticos liderados por hipócritas é dizer, nada mais, nada menos, ele ser uma religião e não apenas um partido, e Lenin ser um Maomé, não um Bismarck”. Otto von Bismarck, o chanceler de ferro, foi o estadista mais importante da Alemanha do século XIX.
Propõe-se, no limiar do stalinismo, três perguntas a serem respondidas. “A nova religião é parcialmente verdadeira ou simpática às ‘almas dos homens modernos’? Será do lado material tão ineficiente a ponto de a tornar incapaz de sobreviver? Com o passar do tempo, com diluição suficiente e adição de impureza, alcançará a multidão?”
Quanto à primeira questão, quem está completamente satisfeito com o capitalismo cristão ou egoísta, não hesitaria em responder-lhe: ou já tem uma religião ou não precisa de nenhuma nova. Mas muitos sentem-se obrigados a sentir uma forte curiosidade emocional por qualquer religião realmente nova.
Quanto ao Keynes, responde: ‘para mim, criado em um ambiente livre e não ofuscado pelos horrores da religião, sem nada a temer, a Rússia Vermelha guarda coisas demais detestáveis. (…) Não estou preparado para um credo o qual não se importa com o quanto destrói a liberdade e a segurança da vida cotidiana, e utiliza deliberadamente as armas de perseguição, destruição e conflito internacional”.
Ele apresenta seu preconceito esnobe (e equivocado) contra O Capital de autoria de Karl Marx. “Como posso aceitar uma doutrina capaz de apresentar como bíblia, acima e além de qualquer crítica, um livro de Economia obsoleto, não apenas cientificamente errôneo, mas sem interesse ou aplicação para o mundo moderno?”
Espantoso um homem pronto para se apresentar como culto dizer tamanha asneira a respeito da obra prima de Marx, na qual faz uma extensa análise da sociedade capitalista. É um livro de Economia Política, mas não só. É uma obra descritiva, analítica, crítica, científica, filosófica, talvez a mais profunda análise sistêmica já produzida!
Keynes não se acanha em expor seu esnobismo típico da elite. “Como posso adotar um credo, preferindo a lama ao peixe, capaz de exaltar o proletariado grosseiro acima da burguesia e da intelectualidade, com quaisquer defeitos são a qualidade de vida e certamente carregam as sementes de todo o progresso humano? Mesmo se precisarmos de uma religião, como poderemos encontrá-la no lixo turvo das livrarias vermelhas?”
Não é só isso, pois ele não resiste ao autoelogio. “É difícil para um filho educado, decente e inteligente da Europa Ocidental encontrar aqui [na Rússia] os seus ideais, exceto caso tenha sofrido algum estranho e horrível processo de conversão e tenha mudado todos os seus valores”. Para Keynes, “o comunista acredita só em duas coisas: a introdução de uma nova ordem na terra e o método da revolução apenas significar isso”.
Com maior elegância intelectual e fidelidade aos fatos poderia apontar a necessidade dessa nova ordem ser julgada pelos horrores da revolução violenta e pelas privações do período de transição. Criticaria a revolução ser um exemplo do equívoco de quaisquer meios se justificarem pelo fim.
Mais respeitável seria Keynes ter antecipado o breve futuro. O stalinismo foi um regime totalitário ocorrido na União Soviética, de 1927 a 1953, durante o governo do ditador Josef Stalin. O governo stalinista promoveu a coletivização de terras e industrializou a Rússia até transformá-la na segunda potência industrial do mundo – sem bens de consumo suficientes para toda a população!
É certeira sua crítica sob o ponto de vista de um ateu. “O comunismo segue outras religiões famosas. Exalta o homem comum e faz dele tudo. Aqui não há nada de novo.”
Mas é lastimável esse guru de tantos colegas pós-keynesianos demonstrar um antissemitismo. “O leninismo é… não sobrenatural, e a sua essência emocional e ética centra-se na atitude do indivíduo e da comunidade em relação ao amor ao dinheiro. Não quero dizer o comunismo russo alterar, ou mesmo procure alterar, a natureza humana, capaz de tornar os judeus menos avarentos ou os russos menos extravagantes em comparação a antes.”
Como economista, é mais certeiro seu questionamento da tentativa de o comunismo russo construir uma estrutura de sociedade na qual os motivos pecuniários como influenciadores da ação tenham alterada sua importância relativa. “Ganhar dinheiro, como tal, na maior escala possível, não é menos respeitável socialmente, talvez mais, em lugar de uma vida dedicada ao serviço do Estado ou à religião, à educação, ao aprendizado ou à arte”.
Acertaria ao antecipar o equívoco de, na Rússia do futuro, dificultar-se um jovem respeitável seguir uma carreira profissional só para ganhar dinheiro. Ora, caso não ocorresse a abertura dessa possibilidade, não estimularia a carreira de um comissário corrupto ou levaria à aquisição de competências em falsificação e peculato?
Apontou corretamente o esperado: “mesmo os aspectos mais admiráveis do amor ao dinheiro na nossa sociedade atual, como a parcimônia e a poupança, e a obtenção de segurança financeira e independência para si e para a sua família, embora não sejam considerados moralmente errados, tornar-se-ão tão difíceis e impraticáveis a ponto de não valer a pena. Todos devem trabalhar para a comunidade – reza o novo credo – e, se cumprirem o seu dever, a comunidade irá apoiá-los”.
Na realidade, salientou, este sistema não levou um nivelamento total dos rendimentos. Uma pessoa inteligente e bem-sucedida na Rússia Soviética tem uma renda maior e uma vida melhor em comparação a outras pessoas.
Antecipou o surgimento da Nomenklatura (palavra russa derivada do latim) como se designava a burocracia ou casta dirigente da União Soviética. Ela incluía altos funcionários do Partido Comunista da URSS e trabalhadores com cargos técnicos, artistas e outras pessoas capazes de gozar da simpatia de seus dirigentes.
Para os demais habitantes, ninguém podia permitir-se, com baixos rendimentos e com os elevados preços russos, além dos rígidos impostos progressivos, poupar algo de modo a valer a pena poupar. Já era difícil viver dia após dia…
Pior, não havia qualquer possibilidade de grandes ganhos pessoais, exceto assumindo o mesmo tipo de riscos associados ao suborno e ao peculato em outros lugares. Infelizmente, o suborno e o peculato não desapareceram na Rússia soviética.
A política soviética não consistia em proibir as profissões de comprar e vender com lucro, mas sim em torná-las precárias e vergonhosas. “O comerciante privado era uma espécie de fora-da-lei permitido, sem privilégios ou proteção, como o judeu na Idade Média – uma saída para aqueles com instintos avassaladores nesta direção, mas não um trabalho natural ou agradável para o homem normal”.
O efeito destas mudanças sociais seria, pensa Keynes, provocar uma mudança real na atitude predominante em relação ao dinheiro. Aponta: provavelmente provocará uma mudança muito maior quando crescer uma nova geração sem conhecer nada dele.
Uma sociedade na qual ganhar e acumular dinheiro não pode entrar nos cálculos da vida de um homem racional é uma tremenda inovação. Isto pode revelar-se ou utópico ou destrutivo do verdadeiro bem-estar social, embora, talvez, não tão utópico, se fosse perseguido com um espírito religioso intenso, com toda a população russa comungando o credo leninista, ou seja, o comunismo anacrônico com o estágio de atraso histórico vivenciado na Rússia do início do século XX.
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].
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Bakhuni anteviu os problemas, muito antes de keynes.