Na pós-democracia, direitos também são vistos como mercadorias, por Rubens Casara

Jornal GGN – Em artigo publicado no Justificando, o juiz Rubens Casara fala sobre a questão da crise do Estado Democrático de Direito, pensando esta crise não mais como um desvio, e sim como uma das principais propriedades do modelo atual de Estado, uma opção política que abre espaço para ações jusfiicadas pela falsa urgência.

Casara levanta a tese de que não uma crise de paradigmas, apostando na hipótese de que o Estado Democrático não consegue mais explicar o funcionamento atual do próprio Estado. Neste Estado Pós-Democrático, há uma retomada das ideias propostas pelo neoliberalismo somado com o controle das populações indesejadas, e também a manutenção ou ampliação das condições de acumulação do capital.

No Brasil, argumenta Casara,  vive-se uma nova variação de Estado liberal-autoritário, não há qualquer compromisso com os direitos fundamentais, com o resultado de eleições, a participação popular na tomada de decisões, e com os limites do exercício de poder. 

Dentro desta lógica, o  Poder Judiciário não é mais o garantidor dos direitos para se tornar o regular das expectativas dos consumidores, com a produção massificado de decisões judiciais, exercendo o controle social da população e facilitando a acumulação e a proteção do mercado. 

Leia o artigo completo abaixo:

Do Justificando

Na pós-democracia, os direitos e garantias fundamentais também são vistos como mercadorias

Rubens Casara

Para muitas pessoas, vive-se um momento de crise paradigmática do Estado Democrático de Direito no qual o “novo” não nasceu e o “velho” não mais se sustenta. Pode-se, porém, pensar a “crise”, não mais como desvio, mas como a principal característica estruturante do atual modelo de Estado. O significante “crise”, então, não mais retrataria um momento de indefinição, provisório, emergencial ou extraordinário, mas uma opção política que permite manobras e ações justificadas pela falsa urgência ou pelo falso caráter extraordinário do momento.

Essa visão da crise como um embuste, uma armadilha argumentativa, com potencial de manipulação da opinião pública (e, por vezes, essa manipulação é feita pelos próprios atores políticos, juízes inclusive), produz efeitos graves no campo do direito e, em particular, no processo penal, espaço tanto de tentativas de racionalização do poder penal (do poder de impor sofrimento a quem o Estado declara autor de um fato definido como crime) quanto de lutas políticas (que, em apertada síntese, ampliam ou reduzem o poder penal). Diante desse quadro, impõe-se desvelar o que se esconde por de trás dessa afirmada “crise paradigmática” do Estado Democrático de Direito, desse ordinário travestido de “crise” que leva ao “Estado de Exceção permanente” daqueles inseridos na tradição dos oprimidos que já preocupava Walter Benjamin.

A hipótese deste texto é a de que não há verdadeira crise paradigmática. O Estado Democrático de Direito, que se caracterizava pela existência de limites rígidos ao exercício do poder (e o principal desses limites era constituído pelos direitos e garantias fundamentais) não mais dá conta de explicar o funcionamento atual do Estado. Hoje, poder-se-ia falar em um Estado Pós-Democrático, um Estado que, do ponto de vista econômico, retoma com força as propostas do neoliberalismo enquanto que, do ponto de vista político, apresenta-se como um mero instrumento de manutenção da ordem, controle das populações indesejadas e manutenção ou ampliação das condições de acumulação do capital e geração de lucros.

Na “pós-democracia” o que resta da “democracia” é um significante que serve de álibi às ações necessárias à repressão das pessoas indesejadas, ao aumento dos lucros e à acumulação.

Por “pós-democracia”, a falta de um nome melhor que no futuro servirá para designar o atual modelo de Estado, entende-se um momento em que o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase voltam a se identificar, sem pudor (e, nesse particular, pode-se falar em uma espécie de regressão pré-moderna). Na pós-democracia o significante “democracia” não desaparece, mas perde seu conteúdo, ou seja, não há mais um modelo de Estado no qual existe participação popular para a tomada das decisões políticas somada ao esforço dos agentes estatais para a concretização dos direitos e garantias fundamentais.  Ao contrário, na “pós-democracia” o que resta da “democracia” é um significante que serve de álibi às ações necessárias à repressão das pessoas indesejadas, ao aumento dos lucros e à acumulação.

Pós-democracia, para dar nome à hipótese de que o Estado Democrático de Direito foi superado por um Estado sem limites ao exercício do poder, não guarda relação com a formulação atribuída a Rancière de que pós-democracia seria a percepção da democracia como um ambiente, como um cenário concreto submetido à ética, um espaço no qual a vida democrática está limitada pela lei. Aqui recorre-se ao uso da expressão “pós-democracia” a partir da apropriação de uma afirmação de Pierre Dardot e Christian Laval: “o neoliberalismo está levando à era pós-democrática”. 

De fato, o “pós-democrático” é o Estado compatível com o neoliberalismo, a transformação de tudo (inclusive das mentalidades) em mercadoria, na verdade um ultraliberalismo econômico que necessita de um Estado Penal cada vez mais forte, de uma estrutura estatal voltada à consecução dos fins desejados pelos detentores do poder econômico. Fins que levam à exclusão social de grande parcela da sociedade, o aumento da violência (não só da violência física, que aumenta de forma avassaladora em tempos de ultraliberalismo econômico, como também da violência estrutural, produzida pelo próprio funcionamento “normal” do Estado pós-democrático), a inviabilidade do campo, a destruição da natureza e o caos urbano, mas que necessitam do Estado para serem defendidos e legitimados.

A pós-democracia une os dois otimismos imbecilizantes que serviram à domesticação das populações do campo capitalista, capitaneado pelos Estados Unidos da América, e do campo do chamado “socialismo real”, protagonizado pela antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O otimismo da “ideologia do êxito”, em especial na sua versão que prega a meritocracia (que poderia ser resumida na ideia-chave “fique tranquilo, se você fizer por merecer, alcançara o êxito e teus sonhos) e o otimismo da “ideologia do Estado total” (que se encontra na ideia-chave “fique tranquilo que o Estado, justamente por ser um Estado Total, sabe o que é melhor para você e, mesmo que para isso seja necessários restringir os teus direitos e teus sonhos, buscará o teu bem”). Esse otimismo “qualificado”, manifestação do pior que há nas ideologias que sustentaram a guerra-fria, é o que justifica que o mesmo Estado se apresente omisso no jogo predatório econômico (ultraliberalismo) e agigante-se no controle social, em especial na repressão, sempre seletiva e politicamente direcionada (Estado Penal).

O Brasil, por exemplo, em que o “liberalismo” conviveu com a “escravidão” por vários anos, hoje apresenta uma nova variação de Estado liberal-autoritário: um Estado Pós-Democrático, isso porque sem qualquer compromisso com a concretização de direitos fundamentais, com o resultado de eleições, com os limites ao exercício do poder ou com a participação popular na tomada de decisões.

A pós-democracia, então, caracteriza-se pela transformação de toda prática humana em mercadoria, pela mutação simbólica através da qual todos os valores perdem importância e passam a ser tratados como mercadorias, portanto disponíveis para uso e gozo seletivo.

Na pós-democracia não existem obstáculos ao exercício do poder: os direitos e garantias fundamentais também são vistos como mercadorias que alguns consumidores decidem como usar ou descartar. A própria representação política, base da concepção formal de democracia, não precisa ser respeitada, isso em razão do desaparecimento dos limites éticos e legais para o afastamento dos governantes e parlamentares eleitos através do voto popular.

Se na vida econômica há o reforço de tendências desigualitárias e desequilíbrios, no campo das liberdades públicas, as inviolabilidades tornam-se também cada vez mais seletivas: apenas o domicílio de alguns é inviolável, como demonstram os mandados de busca e apreensão “coletivos”, os quais, em contrariedade à lei, não individualizam os imóveis ou as pessoas que acabam por se tornar objetos da ação estatal e são expedidos para serem cumpridos em favelas, ou em ocupações de trabalhadores rurais sem terra; apenas a liberdade de alguns é inviolável, como revelam prisões desnecessárias ou conduções coercitivas em desconformidades com os requisitos legais; apenas a intimidade de alguns é inviolável, como se percebe dos vazamentos seletivos de interceptações telefônicas; apenas da integridade física de alguns é inviolável, como mostram as agressões aos manifestantes que defendem posições contrárias aos dos detentores do poder econômico; apenas a liberdade de expressão de alguns é inviolável, como sabem aqueles que são perseguidos por motivação ideológica e processados pelo que dizem; etc.

O Poder Judiciário na pós-democracia deixa de ser o garantidor dos direitos fundamentais (função que deveria exercer mesmo que para isso fosse necessário decidir contra maiorias de ocasião), para assumir a função política de regulador das expectativas dos consumidores. Por um lado, a pós-democracia induz à produção massificada de decisões judiciais, a partir do uso de modelos padronizados, chavões argumentativos e discursos de fundamentação prévia, tudo como forma de aumentar a produtividade, agradar parcela dos consumidores, exercer o controle social da população, facilitar a acumulação e proteger o mercado. De outro, o Poder Judiciário passa a gerir/dirigir julgamentos que passam a seguir a lógica própria aos espetáculos, que agradam aos espectadores (também consumidores) do sistema de justiça.

Tanto na hipótese da produção massificada (em que não há espaço para controles finos acerca da justeza das decisões) quanto na dos processos-espetáculos (em que o importante é agradar os espectadores), os direitos fundamentais – os quais, antes, serviam como gramática positivada dos direitos humanos e estratégia de realização da dignidade da pessoa humana – tornam-se descartáveis, tais como qualquer outra mercadoria. Em espetáculos para audiências autoritárias (e a sociedade brasileira está inserida em uma tradição autoritária), os direitos fundamentais passam a ser demonizados, em grande parte, com o auxílio dos meios de comunicação de massa que constroem a imagem da “boa justiça” associada à repressão e uso da força em detrimento do conhecimento e das práticas restaurativas, enquanto que os discursos e práticas autoritárias tornam-se mercadorias atrativas.

Com o desaparecimento do valor “justiça”, a palavra retorna para nomear algo que não passa de um produto, de uma mercadoria sem forma ou conteúdo estável, sem conexão com projeto constitucional de vida digna para todos. Uma mercadoria oferecida por mercadores especializados, que moldam a “justiça” ao gosto da opinião pública (a opinião do auditório em que se encontram os consumidores, com suas necessidades reais e artificiais), mesmo que para isso seja necessário suprimir direitos ou reforçar preconceitos e perversões.    

Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ, Coordenador de Processo Penal da EMERJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.
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