Letícia Sallorenzo
Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.
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O culpado não sumiu, foi discursivamente mocozado, por Letícia Sallorenzo

Vou tentar explicar o que é ergatividade, e já aviso: nas próximas páginas, vamos lidar com a argamassa da sintaxe

O culpado não sumiu, foi discursivamente mocozado

por Letícia Sallorenzo

Está circulando pelo Facebook um texto escrito para o Jornal da Usp, intitulado “O culpado sumiu – reflexões sobre orações ergativas”. https://jornal.usp.br/artigos/o-culpado-sumiu-reflexoes-sobre-oracoes-ergativas/ Eu estudei ergatividade na pós-graduação em linguística, e posso garantir que ela não some com nada. Fui ver do que se tratava o texto. Após a leitura cuidadosa e minuciosa do conteúdo uspiano, venho aqui cometer este textão, pra botar muitos pingos nos is. Eu já gastei quatro linhas de texto, e ainda não te avisei: passe um cafezinho. De preferência espresso, bem forte. Você vai precisar pra acompanhar o que eu vou escrever. Vamos lá!

Ergatividade não mora no português

Pra começo de conversa, vou tentar explicar o que é ergatividade, e já aviso: nas próximas duas páginas, vamos lidar com a argamassa da sintaxe. Vamos bater laje, misturar cimento, pra entender a estrutura linguística. Pretendo resumir e traduzir para linguagem leiga o conteúdo de um semestre inteiro do curso de Tipologia Linguística, que graças a Deus me foi ministrado pelo professor Dioney Moreira Gomes, meu orientador de mestrado (e talvez a única pessoa que eu conheço capaz de dar uma aula de ergatividade em português e fazer todo mundo entender o trem). Se você quiser um texto pra fazer uma leitura mais aprofundada do tema, só buscar o capítulo 7 de Describing morphosyntax, de Thomas Payne. Ele é professor da Universidade do Oregon, junto com Talmy Givón e Spike Gildea (o Gildea é figurinha fácil na UnB, um querido, e fala português fluentemente!). O livro do Payne é bem completo: traz exemplos da língua dos esquimós, o Yu’pik. Eu disse que o livro do Payne era completo, mas não disse que seria fácil.

Vamos trabalhar com duas orações básicas como exemplo:

1) Maria morreu

2) Maria matou Roberto (desculpe, preciso de um exemplo bem radical).

Vamos trocar os nomes por pronomes:

1a) ELA morreu

2a) ELA O matou.

A oração 1 é intransitiva. O sujeito cumpre o papel semântico de ESTATIVO, quando expressa uma mudança de estado.

Já a oração 2 é transitiva direta. E o sujeito dessa oração é o AGENTE da frase. Roberto, nessa frase, é o PACIENTE: ele teve seu estado final alterado pelo agente da frase. Começou a frase vivo e acabou a frase morto.

Já deu pra perceber que tem muita diferença entre as duas frases, né? Pois eu vou adicionar outro ingrediente, que quem estudou latim ou línguas de caso (como o alemão e o grego) vai entender melhor. O elemento da oração que cumpre o papel de sujeito está no caso nominativo; o elemento da oração que cumpre a função de objeto direto está no caso acusativo.

Pois bem. Payne vai identificar o sujeito da oração 1 como S, e o da oração 2 como A (de agente). Porque essa diferença? (Porque eu tô explicando ergatividade! O troço é complexo, acompanha o raciocínio!) Porque ele vai demonstrar que há sistemas linguísticos (como o português, o inglês, o francês etcetcetc) que mantêm o mesmo sistema pronominal para sujeitos S e sujeitos A. São os sistemas nominativo-acusativos.

E é aqui que o troço começa a ficar cabeludo.

Como eu já dei spoiler lá em cima, o Yup’ik esquimó não funciona assim. E lá vou eu simplificar ao extremo a explicação: no Yup’ik, os pronomes têm um comportamento Ergativo-absolutivo. O sujeito A é bem parecido com o sujeito A do nominativo-acusativo, mas o sujeito S fica diferente. Como assim? Vamos lá com outros exemplos:

3) EU nasci (sujeito S, intransitivo)

4) ELE ME beijou (Sujeito A, agente)

No Yu’pik, essas frases seriam algo como

3a) ME nasci

4a) ELE ME beijou.

“Ô Letícia, você escreveu errado! Não é ME nasci, é EU nasci!”, você deve estar pensando. Mas eu não escrevi errado, não. É isso mesmo que você leu. Deixa eu destrinchar um cadiquim mais: o raciocínio semântico do sistema ergativo-absolutivo é o seguinte: o sujeito de frases intransitivas são capazes de alterar o próprio estado final. E tá certinho: em 1, Maria começou a frase com vida, e no final tava sem vida. Logo, se o sujeito de oração intransitiva altera o próprio estado final, ele merece “status” diferenciado. Vai ser tratado mais ou menos como um elemento de oração com papel semântico de paciente.

E é disso que se trata a ergatividade.

Se você, que fala português há [insira aqui a sua idade] anos, leu a frase 3a e entendeu ou que tava errado ou que era algo como voz reflexiva, então você nunca teve que conviver linguisticamente com uma estrutura Ergativo-absolutiva. Logo, não existe ergatividade em português.

E lá se foram duas páginas de Word só pra explicar o que é ergatividade. Seu cafezinho acabou? Pega outro, que a explicação mal chegou à metade.

Voz média, contexto, objetivos discursivos e agentes mocozados

Então, se os exemplos listados no artigo “O culpado sumiu” não são exemplos de ergatividade, o que é aquilo? Porque, de fato, o comportamento da oração

4) O caixa eletrônico explodiu

é atípico: temos uma oração intransitiva, em que o sujeito altera o próprio estado final.

Mas, ao contrário do sistema Ergativo-absolutivo, se você substituir o sujeito “caixa eletrônico” por um pronome, a frase vai ficar:

4a) ELE explodiu 

E não “SE explodiu”. Então, de saída já temos que esse troço daí de cima não é ergatividade. Mas é esquisitão.

Então vamos pensar um pouco mais. Se entendermos que a definição de sujeito é “o elemento da oração que aciona o verbo”, a gente faz uma série de inferências e conclusões ao lermos uma frase agentiva., ou seja, uma frase com um verbo agentivo e um sujeito com papel semântico de agente. Eu já listei essas inferências de causação no meu livro Gramática da Manipulação.

– O agente tem como objetivo a mudança física de estado do paciente;

– O agente tem um plano para chegar a seu objetivo;

– O plano demanda o uso de algum sistema motor (de movimento);

– O agente é primariamente responsável pela execução do plano;

– O agente é a fonte de energia, e o paciente é o objetivo do dispêndio dessa energia;

– O agente toca o paciente com seu corpo ou um instrumento;

– O agente executa o plano com sucesso;

– A mudança no estado do paciente é perceptível;

– O agente monitora a mudança no estado do paciente a partir da percepção sensorial.

A listinha daí de cima não é de minha autoria. É obra de George Lakoff, no livro Metaphors we live by, de 1980. Daí, o Payne (aquele mesmo da ergatividade e do Describing Morphosyntax), em outro capítulo desse livro, resolveu arrumar tudo um pouquinho mais e propôs uma “escala de agentividade”, que eu também cito no Gramática da Manipulação (tá na pág. 35, se você tiver o livro). Nessa escala, quanto mais humano, mais animado (isto é, mais capacidade de se mexer por conta própria), mais volitivo (volição é uma maneira besta de se dizer “vontade própria”), mais o elemento da oração terá “condições” de se encaixar na vaga de sujeito. Na outra ponta dessa escala, coisas, ideias, objetos, seres inanimados e não-volitivos estão muito mais propensos a ocuparem a vaga de paciente.

Eu acabei de descrever todo o seu estranhamento ao ler, com atenção destacada, a frase “O caixa eletrônico explodiu”.

Caixa eletrônico é uma coisa, não tem vontade própria (ainda bem que usei o exemplo de um caixa eletrônico, e não de uma impressora!) e não é animado. Logo, não é sujeito de frase nenhuma. O Talmy Givón colega do Payne e do Gildea na Universidade do Oregon dá a letra em Functionalism and Grammar, de 1995: voz verbal é trem cabeludíssimo, complexo até as tampas. Tem uma camada sintática, que é a camada da expressão final de uma série de esconjuros e combinações de semântica e pragmática.

Vamos pensar em

5) Vovó comeu banana

Porque eu adoro botar uma vovó pra comer banana nas minhas explicações. Vovós comendo bananas são claramente didáticas.

Você pode falar essa frase na ordem que quiser:

5a) Vovó banana comeu

5b) Comeu vovó banana

5c) Comeu banana vovó

5d) Banana vovó comeu

5e) Banana comeu vovó

Não importa a ordem dos “tratores”, o “viaduto” não vai ser alterado: você sabe que quem é a comedora da frase é a vovó, e quem é a comida é a banana. O que fazer, por exemplo, quando você quer dizer que houve uma inversão de papéis e a banana, de fato, comeu a sua avó?

É isso que o Givón tá tentando explicar lá em cima: pra fazer isso você vai rearrumar a ordem dos tratores do viaduto da sua oração, vai dar umas ênfases aqui e jogar outras coisas pra depois do verbo, pra que não haja sombra de dúvidas do que você está falando:

6) Minha avó foi comida por uma banana, socorro!

Olha só o que você fez: acrescentou um “minha” antes de avó, pra trazer a responsabilidade do enunciado toda pra você; jogou a bagaça pra voz passiva, e deixou o agente da passiva bem evidente: “por uma banana”.

Você brincou com a pragmática e a semântica.

A Pragmática cuida não só da organização dos elementos do enunciado, como das motivações por trás dessa organização enunciativa. A semântica dá o sentido da frase. É disso que se trata a voz verbal, segundo o Givón. É um misto de fuzuê e barata voa entre semântica e pragmática, e a sintaxe que lute pra dar a expressão final de todas as intenções daquelas duas loucas. E o Givón vai explicar que, se a voz ativa é aquela em que o sujeito é tópico pragmático e agente semântico, a voz passiva fica no outro canto da escala de voz: é o paciente que vira sujeito e tópico, e (atenção, é agora que o bicho vai pegar!) o agente é jogado para escanteio, pro fim da frase, e aparece se quiser. O agente, senhoras e senhores, pode ser mocozado de acordo com as conveniências de ocasião.

OPA! Estamos iniciando o procedimento de descida! Favor afivelarem os cintos de segurança!

Na frase 4, temos uma máquina de caixa eletrônico, que na escala do Payne só consegue emprego de paciente, e na descrição do Givón também não recebe muita moral de agentividade, logo não deveria ser, prototipicamente, um sujeito/agente. Mas ele tá todo pimpão na frase 4 comandando o verbo, como sujeitos sintáticos costumam fazer, e meio que se disfarça de agente. Mas ele, na verdade, é o paciente da história: ele foi explodido. Começou a frase inteiro, terminou a frase destruído. Ainda que, para isso, tenha saído usada uma estrutura / ordem direta, típica de frases agentivas.

O que está acontecendo aqui é o que Givón vai chamar de voz média. “Nossa, existe voz média? Eu nunca estudei isso na escola!” e eu sou obrigada a repetir: isso aqui é assunto de pós-graduação em Linguística.

Na voz média, o sujeito não é nem muito agente, nem muito paciente. Sim, senhoras e senhores. Existe um topo de muro sintático na bagaça. Só que esse topo de muro vai ser ocupado se você souber muito bem como e por que vai ocupá-lo.

7) O áudio de Lula e Dilma vazou

8) Mamãe, o vaso quebrou!

Olhem só que coisa maravilhosa essas vozes médias daí de cima!

Em 7, todo mundo entende que o áudio não vazou coisa nenhuma. O áudio foi vazado por um cabra com volição e anima até as tampas (e que fala um português bem pobrezinho, porque aprendeu com a Edite Piá).

Em 8, o Joãozinho quebrou o vaso, mas sabe que se ele disser “Mamãe, eu quebrei o vaso”, ele vai ficar de castigo. Como Joãozinho tem mais de 2 anos de idade e já consegue fazer operações linguísticas de forma a se proteger enunciativamente (traduzindo: Joãozinho sabe mentir direitinho) da situação, ele joga a culpa no vaso. Ainda que o vaso tenha sido quebrado por ele.

Em ambos os casos, temos que o falante negocia a língua. O falante vai dispor dos elementos linguísticos da maneira que ele bem entender para explicar e expressar o que ele quiser, como quiser. Ideologia também entra aqui nessa equação quando e como bem entender.

O que temos que ter claro aqui é o seguinte: a mente humana é complexa bagarai. A Língua é, sempre foi e sempre será o filtro com o qual o ser humano compreende e expressa o mundo à sua volta. A sintaxe vai ser a expressão final e concluída de uma série de raciocínios, negociações, conjecturas, ideologizações e ponderações do pensamento humano e de sua forma de expressar o ambiente, o mundo, a conjuntura, a situação (favorável ou desfavorável) e o escambau.

Mas o que eu não consigo entender é por que deturpar um conceito tão complexo quanto inútil como a ergatividade. Entendam: estudei ergatividade porque na pós em Linguística da UnB tem muita gente pesquisando línguas indígenas, e a ergatividade, pesadona e complexa até as tampas, como eu demonstrei aí em cima, é necessária e indispensável. Mas pra explicar comportamento de imprensa, ergatividade não presta. Desculpe.

Pra explicar comportamento e escolhas textuais da velha imprensa, o que ajuda é discurso. É van Dijk, é Foucault, é Maingueneau, é Fairclough. Quando muito, um Lakoff da Linguística Cognitiva. A sintaxe é a configuração final de muita coisa que aconteceu antes.

Ah! Recomendo o excelente artigo “A voz média como isenção de responsabilidade”, de Maria Claudete Lima, publicado na Revista do Gelne (Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste) em 2021. Pede pro Google que ele dá!

Aceite: ergatividade e letramento midiático não se conversam. Não têm nem por quê conversarem.

Leticia Sallorenzo – Mestra em Linguística pela Universidade de Brasília (2018). Jornalista graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Graduaçao em Letras Português e respectivas Literaturas pela UnB (2019). Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo e Editoração. Autora do livro Gramática da Manipulação, publicado pela Quintal Edições.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Letícia Sallorenzo

Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.

2 Comentários

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  1. Letícia amiga, você dá essa volta toda somente para nos dizer que o sujeito culpado e mocozado fala Yup’ik.
    Os termos ” …tanto que o valor elevado não se refere ao que foi gasto especificamente com MIM” ( é ergativo? kkkk) e ” gastos declarados pelo partido, só que eles abrangem outros indivíduos que não MIM” (estariam em Yup”ik segundo ensinamentos da Edit Piá?

    https://youtu.be/Pvzf1v_aVNA

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