Por que ‘Utopia’ é a série mais azarada do ano?, por Wilson Ferreira

No contexto da atual pandemia, “Utopia” teve um destino amargo: o enredo conspiratório parece ter saído de alguma fábrica de memes negacionistas de extrema-direita e seus protagonistas um grupo de crentes QAnon.

Por que ‘Utopia’ é a série mais azarada do ano?

por Wilson Ferreira

Criada em 2013 e transmitida pelo canal britânico Channel 4, “Utopia” era uma série inventiva e inquietante: conseguiu elevar o olhar conspiratório para a realidade a um nível crítico e de relevância cultural. Mas o seu remake da Amazon Prime Video “Utopia” (2020) não teve a mesma sorte. No contexto da atual pandemia, “Utopia” teve um destino amargo: o enredo conspiratório parece ter saído de alguma fábrica de memes negacionistas de extrema-direita e seus protagonistas um grupo de crentes QAnon. Fãs de uma HQ acreditam que nas suas páginas estão codificados pistas e símbolos que de alguma forma previram uma série de pandemias, do Ebola à SARS. E também a atual pandemia de vírus que invade a América, originada em morcegos no Peru. Um magnata da Big Pharma está por trás de uma conspiração global através de uma misteriosa vacina. E começa a perseguir e matar os fãs da HQ que descobriram a verdade… O grande azar da série “Utopia”: a propaganda da “direita-alternativa” apropriou-se do discurso conspiratório da série de 2013, conseguindo fazer ruir as noções de Crítica e Verdade.  

A crítica especializada vem apresentando a série da Amazon Prime Video Utopia (2020) como o programa mais azarado do ano. Originalmente, Utopia foi uma série britânica criada por Dennis Kelly e transmitida pelo Channel 4 até 2014.

Toda a série original girava em torno de um grupo de fãs que encontrava uma HQ não publicada (chamada “The Utopia Experiments”) sobre um cientista que faz um pacto com o diabo, abrindo um novo mundo para a humanidade. Embora fictícia, a HQ Utopia previa, de forma codificada, os maiores desastres que a humanidade experimentará nesse novo mundo envolvendo saúde global e superpopulação. Por isso, essa publicação passa a ser alvo de uma sociedade secreta com ramificações em governos e empresas.

Quando os originais não publicados da HQ são descobertos por um grupo de jovens, passa a ser perseguidos por essa sociedade chamada “The Network”.

Mas porque o remake é azarado? Quando começamos a assistir ao episódio piloto, a primeira coisa que vemos é um alerta de que “Utopia é uma obra de ficção não baseada na pandemia real ou eventos relacionados”. Para descobrirmos a incrível similaridade da série com os acontecimentos atuais: Utopia é sobre uma conspiração que se desenrola em uma pandemia viral de uma gripe fatal, originada em morcegos no Peru e que rapidamente se espalha pelos EUA – o leitor lembrará rapidamente das teorias sobre morcegos chineses da província de Wuhan, suposto epicentro da atual pandemia global do coronavírus.

O estranhamento não é tanto pela coincidência entre ficção e realidade – mais uma vez a vida imita a arte? O problema é que todo o enredo conspiratório de Utopia parece ter saído de alguma usina de fake news de extrema-direita.

Em 2013, a Utopia britânica era uma série estilosa, inquietante e cativante, que ainda abria espaço para um sem número de “easter eggs” culturais.

Porém, dentro do vernáculo de 2020, o núcleo dramático dos fãs de HQs que luta contra uma conspiratória pandemia parece mais um grupo de crentes do QAnon. A série explora ideias que há sete anos eram divertidas e instigantes.  Mas que agora, tudo soa como se os teóricos da conspiração da extrema-direita estivessem sempre certos.

Certamente ao remake não poderia prever os eventos atuais, mas as ironias em cada episódio de Utopia se acumulam a tal ponto torna-se difícil aceitar a verdade em seus próprios termos.

Utopia parece inverter totalmente a chamada “suspensão da incredulidade”, pacto firmado entre espectador e roteiro em toda obra de ficção. Ao contrário, colocada em perspectiva diante dos acontecimentos de 2020, parece tudo uma brincadeira de mau gosto.

Por isso, o azar do remake de Utopia é revelar a genialidade propagandística da chamada direita-alternativa (alt-right): se em 2013 o argumento da série era progressista e até gnóstica (através do estado alterado de consciência da paranoia romper o véu da ilusão produzida por demiurgos governamentais e corporativos), a partir de 2016 (Brexit + Trump que resultou no “case” brasileiro de Bolsonaro) o dispositivo crítico das teorias conspiratórias foi abduzido pela extrema-direita para se transformar em contrapropaganda: a partir de agora, qualquer crítica que for feita às manipulações do consórcio Deep State/corporações globais será rotulado como “agenda extremista negacionista” que atinge a Ciência, a racionalidade e a democracia.

O gênio da direita-alternativa: com o apelo das teorias da conspiração, erodir o conceito de verdade.

A Série

“Onde está Utopia?… Onde está Jessica Hyde?”. Essas são as perguntas que transpassam todos os oito episódios da série.

No início, havia apenas “Distopia”: uma HQ hipnótica e fantasmagórica que nasceu da mente claramente perturbada de um criador misterioso. Contava a história de uma jovem heroína e seu pai cientista, mantidos em cativeiro por um coelho humanoide chamado Sr. Coelho. A garota escapou enquanto o pai foi forçado a criar horríveis agentes biológicos para seu sequestrador.

Porém se olhar atentamente os quadrinhos, os mais obstinados (ou paranoicos) poderão encontrar pistas e símbolos que de alguma forma previram uma série de pandemias, do Ebola à SARS. Alguns fãs mais malucos criam o boato de que haveria uma continuação não publicada, “Utopia”.

Quando o manuscrito de “Utopia” é descoberto numa casa caindo aos pedaços, a comunidade de quadrinhos enlouquece. A possibilidade de adquirir essa raridade em um leilão é aberta durante uma convenção de quadrinhos em Chicago, que atrai a atenção de um grupo de fóruns online formado por cinco jovens dedicados à “Distopia : Samantha (Jessica Rothe), uma zeladora ecologicamente ativista; Ian (Dan Byrd), um funcionário de escritório nerd; Becky (Ashleigh LaThrop), uma estudante de vinte e poucos anos que flerta muito com Ian; um teórico da conspiração chamado Wilson Wilson (Desmin Borges); e Grant (Javon Walton), que tem apenas 13 anos.  Cada um deles dá uma olhada rápida neste item cobiçado.

Continue lendo no Cinegnose.

Redação

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