Abram as fronteiras!, por Arnaldo Cardoso

Em Isolda/Tristão, um grupo de refugiados se encontra na fronteira entre dois países, impedido de atravessar e tendo entre eles Isolda

Abram as fronteiras!

por Arnaldo Francisco Cardoso

Foi com o brado em coro “Abram as fronteiras!” que ocorreu a estreia mundial da opera Isolda/Tristão na noite do último 15 de setembro no Teatro Municipal de São Paulo, explicitando a radicalidade da mudança na montagem da ópera Tristão e Isolda cujas origens remontam a era medieval.

Fruto do encontro da compositora Clarice Assad, da libretista Marcia Zanelatto, do diretor cênico Guilherme Leme Garcia, do regente Alessandro Sangiorgi e de um talentoso elenco, a nova montagem precisou, para acontecer, suplantar as dores e angústias de uma pandemia e de um governo distópico, uma vez que a ideia nasceu em julho de 2019.

As mudanças na nova montagem vão desde seu nome, que move Isolda para o primeiro termo e substitui o “e” que sugere uma relação entre metades, para a “/” que os coloca lado a lado, como indivíduos. A ênfase dada na relação de Isolda com a mãe sugere que o espírito de luta contra o opressor tem sua raiz na condição feminina, é ancestral. O problema dos deslocamentos humanos forçados, que atravessa os séculos, ganha especificidade e dialoga com nosso presente.

Protagonismo feminino e luta pela liberdade

Em Isolda/Tristão, um grupo de refugiados se encontra na fronteira entre dois países, impedido de atravessar e tendo entre eles Isolda, “uma mulher que procura sua mãe a fim de tirá-la dali e salvar sua vida. Mas é justamente sua mãe que enfrenta o poder que fecha essa fronteira”.

Na versão clássica da opera, que no século XIX contou com libreto do compositor alemão Richard Wagner, o embate entre Marcos e Tristão pelo amor de Isolda ocupa o centro da trama, reproduzindo a tradicional dinâmica do poder masculino em ação. Na nova montagem, Isolda assume o protagonismo e luta pela liberdade. Tristão, transcendendo a paixão cuja convencional finalidade costuma ser a conjugalidade, se engaja na luta pela liberdade e a fraternidade, empenhando seu desejo na busca de melhora da humanidade.

Com cenário enriquecido por efeitos especiais, a plateia assiste a um naufrágio, levando todos a refletir sobre os naufrágios quase diários que ocorrem hoje em mares e oceanos de todo o mundo, com destaque para o Mediterrâneo que separa o norte da África do continente europeu.

Como não recordar do terrível naufrágio na costa da ilha italiana de Lampedusa que, dez anos atrás, matou 368 pessoas que buscavam liberdade e oportunidade? Ou sofrer com o desespero que diariamente continua levando centenas de pessoas, como os líbios fugindo da destruição causada por eventos climáticos extremos e de governos autoritários, a se lançarem ao mar sabendo que a morte é seu mais provável destino?

Nesse mesmo cenário, de Lampedusa, vimos recentemente mais um embate entre autoridades políticas nacionais e supranacionais, movidas sobretudo pelo cálculo frio da chamada “razão de Estado” exibirem a incapacidade de superar modelos fracassados para a solução de velhos problemas.

Muros contra o diferente

No extenso libreto de Isolda/Tristão, de 113 páginas, encontra-se dentre outros, texto do jornalista e escritor Jamil Chade que nos lembra que “nunca construímos tantos muros como nos últimos 20 anos. Ao final da Segunda Guerra Mundial existiam sete muros em fronteiras nacionais. Ao final da Guerra Fria, em 1989, existiam 15 muros. Em 2019, existiam 77 muros. Mas, desde 2000, construímos mais quilômetros de muros que em qualquer outro momento da história. Foram 26 mil quilômetros”.

E analisa: “Muros revelam o estado psíquico de uma sociedade. Se oficialmente são erguidos contra refugiados e imigrantes, eles são, acima de tudo, construídos contra o diferente”.

Na sequência reproduzida abaixo pode-se sentir a força e a pertinência com que a ópera Isolda/Tristão reflete o problema dos migrantes e refugiados.

{tristão}

essas pessoas precisam de uma saída
não podemos deixá-las aqui

{isolda}

se elas ficarem, são presas

{tristão}

se seguirem, se arriscam

{isolda}

e, se voltarem, elas morrem

{mãe de Isolda}

muitos embarcaram
nem todos chegaram
o mar é claro como um espelho,
mas o fundo do mar
agora eu sei
o fundo do mar é negro
o fundo do mar é vermelho
eram cinco milhões de ucranianos
seis milhões de afegãos
sete milhões de sírios
trinta milhões de africanos

{coro}

eram muitos e muitos milhões de humanos
cruzando os oceanos

Mudança cultural

O caráter de emergência sistêmica global das migrações internacionais forçadas por guerras, eventos climáticos extremos, miséria e violências perpetradas por governos autoritários que desprezam princípios básicos de direitos humanos, tem revelado, concomitantemente, a incompetência dos atores políticos responsáveis, nacionais e supranacionais, governamentais e intergovernamentais, bem como dos respectivos instrumentos adotados para o enfrentamento do problema, quer seja na mitigação das causas ou de suas consequências, tendo como sua face mais cruel  mortes e sofrimentos ininterruptos de milhões de seres humanos.

Crises sistêmicas demandam respostas sistêmicas e, para tanto, é essencial que mudanças culturais sejam operadas. Cada vez mais, ações sociais significativas estão demandando mudanças nos sistemas de cognição e compreensão, abrangendo a dimensão dos afetos, da empatia face ao Outro reconhecido como igual em humanidade e dignidade.

Interregno

O intelectual italiano Antonio Gramsci (1891-1937), levado à prisão e à morte pelo regime fascista de Mussolini, formulou o conceito de interregno, que parece auxiliar na compreensão do momento no qual nos encontramos. Interregno expressa um espaço de tempo entre um ciclo histórico e outro, no qual há grande instabilidade e vazio de poder. A debilidade do poder diante de desafios do presente intensifica os sentimentos generalizados de insatisfação e incerteza com o futuro.

Quanto aos ciclos históricos, Gramsci os classificou em curto, médio e longo, em termos de sua duração. Nessa perspectiva, não é difícil reconhecer o esgotamento simultâneo desses três ciclos, percebidos em suas escalas nacional e global. Modelos vigentes de organização do poder político e de desenvolvimento econômico em todo o mundo tem dado sinais eloquentes de sua insustentabilidade.

São nestes momentos que se abrem oportunidades para mudanças históricas.

Para todos que trabalham com a cultura, com as artes em geral, é grande a responsabilidade, uma vez que nosso tempo está clamando por uma mudança radical dos modos de pensar, sentir e agir, uma revolução cultural.

As vanguardas dos artistas reunindo atores, músicos, escritores, cantores, bailarinos, produtores culturais em geral, historicamente já revelaram sua capacidade de resistência e força propositora do novo, dada a preservação e cultivo de saberes e sentimentos que conectam o humano com a ancestralidade, com as diversas formas de vida no planeta e com o desejo mais profundo de felicidade germinadora de futuro.

Ergamos um brinde à Isolda/Tristão e às outras obras descortinadoras do futuro, que buscam nos despertar para o que ainda podemos realizar.

Arnaldo Francisco Cardoso, sociólogo e cientista político (PUC-SP), escritor e professor universitário.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador