Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
[email protected]

A felicidade dos antigos e a infelicidade do homem moderno, por Michel Aires de Souza Dias

Ao contrário dos antigos, o homem moderno perdeu sua harmonia com a natureza, perdeu a capacidade de ordenar sua vida pela razão

Reprodução

Por Michel Aires de Souza Dias[1]

APOIE O JORNALISMO CRÍTICO E INDEPENDENTE. ASSINE O GGN AQUI

Os antigos gregos pensaram sua existência e ordenavam sua vida a partir da ideia de Cosmo, palavra grega que significa  ordem.  O mundo era compreendido como um todo universal ordenado, possuindo uma racionalidade intrínseca à sua própria natureza. O problema ético de como devemos viver a vida era determinada por essa noção.  O conhecimento visava um aprimoramento da vida interior e deveria determinar as normas universais da própria existência. Cabia a cada qual, através da razão,  buscar as normas universais que deviriam guiar sua própria existência, propiciando o conhecimento de como enfrentar as adversidades da vida,  de como se viver melhor e de como atingir a serenidade interior. A vida dos antigos tinha uma finalidade (telos), deveria ser guiada pela ideia de natureza. Epicuro, em 306 a.C, chegou a abrir uma escola, o “Jardim de Epicuro”, ensinando como enfrentar as perturbações da alma, as adversidades da vida e como buscar o prazer de forma moderada. A filosofia era para ele um remédio (pharmakon), que podia libertar os indivíduos de suas perturbações e das crenças infundadas que os atemorizavam. Por meio do discurso filosófico eles deveriam conquistar o autodomínio das paixões e buscar da serenidade da alma.  Em sua opinião,  não são as festas contínuas, nem os prazeres da sensualidade ou os prazeres da mesa que tornam a vida boa e agradável, mas sim o sóbrio raciocínio, que analisa tudo e procura compreender as causas de todas as nossas escolhas ou repulsas, ensinando-nos a desvencilhar das opiniões, das perturbações e preconceitos que se apoderam do nosso espírito. Segundo esse ensinamento, todo indivíduo deveria obedecer à natureza e não as vãs opiniões, sendo racionais e prudentes em todos os seus empreendimentos.

A filosofia estóica também elegeu a razão como critério para guiar nossa vida. Segundo essa filosofia, o universo é um todo racional dotado de sentido e significado, como um corpo determinado por um sopro vital (pneuma), onde todas as suas partes são interdependentes. Esse todo foi identificado como razão (Logos). O mundo seria governado por esse logos universal responsável pela regularidade e harmonia de todas as coisas. Nesse sentido, a natureza é a própria personificação da justiça divina que deveria ordenar as relações sociais e a nossa vida interior. A conduta humana deveria ser guiada pela natureza evitando todo tipo de irracionalidade. O que a natureza nos ensina como manifestação desse logos é a prudência em todas as nossas ações. Para o estoicismo, a prudência seria o caminho para chegarmos à virtude. Ser virtuoso é viver conforme os preceitos da razão, aceitando o destino e conservando a serenidade do espírito, apesar de todas as adversidades. Sêneca, o maior representante do estoicismo, em uma carta ao seu amigo Sereno, ensinou o caminho da virtude, pois este vivia numa angústia interior diante dos prazeres da vida e da riqueza. Sêneca o aconselhou a ficar distante do luxo e a usar as coisas conforme sua utilidade, e a não comer e vestir-se segundo as exigências da moda. Também aconselhou a cultivar a sobriedade e a moderar nosso amor ao luxo, “a reprimir nossa vaidade; a dominar nossas cóleras; a considerar a pobreza com um olhar calmo; a considerar a frugalidade, apesar de todos aqueles que acharão aviltante satisfazer tão modestamente a seus desejos naturais; a não ter nas mãos, por assim dizer, as ambições desenfreadas de uma alma sempre inclinada para o dia seguinte e a esperar a riqueza menos da sorte do que de nós mesmos” (Sêneca, 1973, p. 215).  Para Sêneca, a boa vida está em se dedicar a si mesmo. e não a riqueza, ao vinho e aos prazeres da carne. Em sua época ele notou que os homens desperdiçavam sua vida com banalidades, viviam agitados, sempre em busca de algo que preenchesse o vazio de suas almas. Ele observou que alguns  desperdiçavam sua vida em trabalhos supérfluos, outros viviam dos prazeres do vinho, outros viviam apenas dos desejos da sexualidade, uns se preocupavam apenas com a opinião alheia, outros apenas comerciavam e não tinham tempo para usufruir. Em uma carta para seu amigo Paulino, ele expressou esse sentimento: “não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida, se bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a realização de importantes tarefas. Ao contrário, se desperdiçada no luxo e na indiferença, se nenhuma obra é concretizada, por fim, se não se respeita nenhum valor, não realizamos aquilo que deveríamos realizar, sentimos que ela realmente se esvai” (Sêneca, 2006, p.26).

Tal como Sêneca e Epicuro, no livro “Ética e Nicômaco”, Aristóteles pensou a felicidade como atividade prática da razão. Segundo seu principal ensinamento, a faculdade do pensar é o que há de melhor no ser humano, sendo esta sua melhor virtude, nesse sentido reside na razão o critério da boa vida e do bem viver.  Para ele, a felicidade humana significa “excelência da alma”, “é uma atividade da alma” (ARISTÒTELES, 2007, p.61). Para que o indivíduo tenha uma existência feliz é necessário o hábito continuado da prática da virtude e da prudência. Dessa forma, a felicidade está ligada a uma sabedoria prática: a de saber fazer escolhas racionais na vida. É feliz aquele que escolhe o que é mais adequado para si. Essas escolhas devem ter como critério a moderação. Toda escolha exige uma mediania, um equilíbrio entre o excesso e a falta.

A filosofia antiga tinha como critério da conduta humana uma concepção objetiva da razão. A razão não era somente uma faculdade subjetiva, presente na interioridade do indivíduo, mas era a consciência cósmica que governava toda natureza, era o princípio ordenador de todo universo. Era esse princípio que permitia o governo da alma e guiava a conduta moral dos indivíduos. A felicidade deveria ser alcançada por meio da busca da verdade: “O homem só alcança a felicidade se atingir o bem adequado à sua natureza racional. E é através da razão que se conhece esse bem e os meios para atingi-lo, uma vez que só a razão é capaz de aprender a realidade objetiva do bem e dos meios que permitem realizá-lo” (Costa, 1993, p.70).  

Ao contrário dos antigos, o homem moderno perdeu sua harmonia com a natureza, perdeu a capacidade de ordenar sua vida pela razão. No mundo capitalista a vida do indivíduo passou a ser determinado pelas relações impessoais do mercado. É por meio da pressão do mercado que ele se torna o que é. Sua vida, sua felicidade, sua existência é determinada por relações reificadas. Nesse sentido, ele é uma célula que reflete a lei social da exploração econômica. Como célula isolada, não consciente, ele permanece cego das forças que o determinam.  Desprovido de individualidade, ele se torna um modelo da gigantesca maquinaria econômica. Como avalia Erich Fromm: “O indivíduo deixa de ser ele mesmo; adota inteiramente o tipo de personalidade que lhe é oferecido pelos padrões culturais; e, portanto, torna-se exatamente igual a todos os outros e ao que os outros esperam que ele seja” (Apud GIDDENS, 2002, p. 176).

Em uma cultura que forja o indivíduo, forçando-o a ser de uma determinada forma e que promete, mas não cumpre suas promessas, gera um grande mal-estar. A frustração e o ressentimento se tornam partes da sociedade, gerando a agressividade como  consequência de uma realidade que condena os homens à permanente insatisfação. Freud já havia diagnosticado que a dominação da civilização sobre a natureza pulsional do homem é a grande responsável por toda violência e barbáries presentes no mundo moderno. Para ele, torna-se necessário “levar em conta o fato de estarem presente em todos os homens tendências destrutivas e, portanto, antissociais e anticulturais, e que, num grande número de pessoas, essas tendências são suficientemente fortes para determinar o comportamento delas na sociedade humana” (FREUD, 1969, p. 17). Para o pai da psicanálise, é a frustração,  a insatisfação e o ressentimento os grandes responsáveis pela infelicidade e o mal-estar na civilização.

Bibliografia

Aristóteles. Ética a Nicômaco. Edipro: São Paulo, 2007.

Epicuro. Antologia de textos de Epicuro. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002

Sêneca, Lúcio A. Da tranquilidade da alma. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. 1973.

Sêneca, Lúcio A. Sobre a brevidade da vida. São Paulo: L&PM Pocket. 2007.


[1] Doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador