A guerra que mudou o mundo, por Abrão Slavutzky

A década de vinte do século passado foi chamada de os anos loucos, pois havia uma sede de vida nunca vista

do Psicanalistas pela Democracia 

A guerra que mudou o mundo

por Abrão Slavutzky

Desde adolescente gostei de cartas. Escrever e receber cartas fez parte de meu cotidiano por décadas. Hoje encontrei uma forma de escrever cartas aqui sem ter que ir ao correio e por selos. As cartas de escritores, pensadores, leitores, são indispensáveis para se entender a condição humana. Conheci um apaixonado por escrever cartas, foram quase dez mil, e é conhecido por Sigmund Freud. A maioria das cartas escrevia no finalzinho da noite após uma caminhada pelas ruas de Viena. Um exemplo de carta foi a que escreveu no dia 28 de dezembro de 1914, uns cinco meses após ter começado a Primeira Guerra Mundial, a guerra que mudou o mundo. A certa altura da carta enviada a um médico holandês escreve: “…os impulsos primitivos, selvagens e malignos da humanidade não desapareceram em nenhum dos indivíduos, mas persistem, ainda que reprimidos, no inconsciente”. Freud já sabia essa verdade, mas ainda idealizava o ser humano, e por isso foi surpreendido pela guerra, como quase todo mundo. Escreveu sobre sua desilusão, pois confessa que não quis crer na guerra; agora estava desiludido com a mais sangrenta e devastadora guerra da História. Em alguma medida, há uma tendência até hoje de surpresa com a crueldade, com os requintes sádicos dos torturadores e seus admiradores.

A importância da Primeira Guerra Mundial foi decisiva na História da humanidade. A década de vinte do século passado foi chamada de os anos loucos, pois havia uma sede de vida nunca vista. Paris é uma festa, a capital francesa era o centro da vanguarda artística. O jazz embala as noites, as mulheres começam a revolução feminina, mudam a moda e fazem valer sua presença com suas admiráveis lutas. O Surrealismo enfatiza a morte e os artistas derrubam as normas com criatividade. O rádio e os eletrodomésticos geram uma revolução nos costumes. E os pensadores e escritores repensam o ser humano, o ser e o tempo, os desafios de como enfrentar pela cultura e a educação as tendências destrutivas da humanidade.

Uma pergunta se impôs sobre a Grande Guerra: de onde vem o entusiasmo guerreiro do homem? Freud, na Psicanálise, busca respostas, assim como as Ciências em geral. Para isso foi preciso estudar as raízes da guerra, do ódio ao inimigo, do fanatismo. Essas perguntas não são só sobre o passado, pelo contrário, pois seguem presentes. Um caminho para conhecer a guerra é estudar sua história. Uma história da guerra, escrito por John Keegan, começa assim: “A guerra não é a continuação da política por outros meios”, porque a guerra precede a política, o Estado, e é quase tão antiga como o homem. As guerras entre grupos e tribos ocorreram quando as armas inventadas para caça foram usadas para lutar contra os grupos intrusos. Um dos estudos que se destacam no livro é a de um antropólogo que lutou na Segunda Guerra Mundial. Ao retornar, decidiu estudar as guerras primitivas, a competição pelo alimento, os conflitos pelo poder. “Será o homem bom ou mau”, se perguntava. Artistas como Leonardo da Vinci e Michelangelo foram experts em fortificações, sendo que Da Vinci desenhou novas armas de guerra.

Após a Primeira Guerra Mundial, Freud mudou ao articular a psicologia social e a psicologia individual, como no seu livro Psicologia das massas e a análise do Eu. Antes já tinha escrito sobre a Pulsão de Morte a partir de uma nova teoria das pulsões. Chegou a usar a expressão pulsão de destruição como uma variável da pulsão de morte. A Primeira Guerra mudou o mundo, e revelou um mundo mais cruel do que se imaginava.

Um exemplo atual da crueldade é a guerra interna que vive nosso país. Ataques à aposentadoria dos mais pobres, ataques à educação, aos professores, às mulheres, ataques às universidades, ao carnaval, ataques à cultura, aos pobres, negros e índios. O inverno será longo, mas não vamos enlouquecer, e um dia chegará a primavera.

Redação

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