A risível musa da escrita caricatural, por Eliseu Raphael Venturi

Se a linguagem não nos faz quem somos, ao menos ela desenha com muita propriedade como nos fazemos presentes

Ilustração em DALL-E, prompt pelo autor, 2024.

A risível musa da escrita caricatural, por Eliseu Raphael Venturi

“[…] em sua maioria, as pessoas já são risíveis, assim como o são também as obras de arte, disse Reger, o que nos poupa de ridicularizá-las e caricaturá-las. Boa parte dos seres humanos, porém, é incapaz dessa caricaturização, contempla tudo até o fim com terrível seriedade, disse ele, de tal forma que a caricatura nem sequer lhes ocorre, disse ele” (Thomas Bernhard, Mestres Antigos).

A linguagem nos tornou (e nos torna) humanos.

Essa assertiva soa uma constante da cultura ocidental (moderna) na construção do que se foi considerando um humano racional, distinto das outras formas da vida (e cultura), sendo sua razão, inclusive, uma das justificativas não apenas aos atos de opressão como também a qualquer dominação e estruturação hierárquica que fundamente qualquer aniquilamento em nome de especismos e racismos diversos (ou etarismos, sexismos e assim por diante).

Ao mesmo tempo, não parece prudente se enganar que um domínio gramatical, por exemplo, represente essa tal linguagem, eximindo o falante de códigos éticos, do mesmo modo que o domínio de regras jurídicas não torna ninguém mais “justo”.

Essa linguagem vantajosa do ser humano não apenas foi (e é, em certa medida) a régua universal da dominação.

No mundo das redes, por exemplo, a linguagem deve ser simples, o que não significa sintética ou precisa: deve ser breve, curta, vazia, refletindo essas mesmas subjetividades que a consomem, e cuja memória de processamento não suporta um peso maior de significados. O nível de linguagem é um nível do político.

Vários processos eleitorais confusos, palavras postas e retiradas, e reações irresponsáveis daqueles que deveriam ser “as melhores pessoas”, a situações horrendas, estão aí para ilustrar o tamanho da arapuca.

Se a linguagem não nos faz quem somos, ao menos ela desenha com muita propriedade como nos fazemos presentes, as direções de nossas mudanças e as interações que somos capazes de fazer.

Hoje, a inteligência artificial, sobretudo a generativa, tensiona mais um ponto da nossa humanidade (ou seja, aquilo que nos faz humanos, nossa vida, nosso trabalho e nossa linguagem) em um já limítrofe cenário neoliberal, em que a vida e a dignidade humanas não são tão, poder-se-ia dizer, valiosos, posto que espremidos em outros mais quilômetros de justificativas e expedientes para serem (auto)exploradas, incorporadas e, finalmente, destruídas e descartadas.

Se as técnicas da subjetividade dominam ótimos procedimentos de controle – desde o ator ao terapeuta, desde o psicanalista ao psiquiatra, desde o professor ao influenciador digital – esse conjunto de sentidos, “que nos faz humanos”, cada vez mais tende a desaparecer, ou mais propriamente, a se dissipar em uma novidade desconhecida, mas não tão desconhecida assim e, como já se disse há muito, sem quaisquer garantias de ser “muito melhor” (Derrida leitor de Foucault) – e bem sabemos o quanto ruim e pior pode ser.

Qual ordem do social as mobilidades da leitura, e, agora, da escrita, produzem, mobilizam, redirecionam? Essa é uma escolha política, não neutra, não tecnológica, tomada a cada novo texto lançado. Cada novo resultado impressionante (risível e caricatural). Aquela escrita que ia mal das pernas, aquela escrita do mal e do débil pensar, a morta escrita delegada das faculdades e dos tribunais, agora poderia ser a escrita milagrosa ou a escrita automática de um inconsciente social. Não acredite.

Eliseu Raphael Venturi é mestre e doutor em direitos humanos e filosofia do direito, e pós-doutor em direito e tecnologia.

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Redação

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