Ainda temos um Constituição?, por Eliseu Raphael Venturi e Marcelo Paulo Wacheleski 

Somos uma sociedade do escárnio constitucional que não se envergonha da própria leviandade constitucional

Raoul Dufy. The birdcage. 1914. (1)

Ainda temos um Constituição?

por Eliseu Raphael Venturi e Marcelo Paulo Wacheleski 

Os primeiros meses do governo federal foram de mudanças radicais no rumo de políticas fundamentais para estabelecimento de um Estado Democrático de Direito naquilo que guarda do modelo constitucional vigente.

Completa devastação para uns, retorno às soluções milagrosas para outros, tais mudanças não deixam de evidenciar um signo de suspeição a qualquer leitura jurídica sintonizada com o significado histórico do constitucionalismo e com as bases mesmas da juridicidade construída nas últimas décadas.

Entre tantos temas que repousavam em um razoável consenso dentro do estado da arte de suas discussões, e que sentiram sobre si o peso fatal de políticas neoliberais especialmente mais agressivas do que outras dantes experimentadas, estão medidas explícitas de retrocesso evidente.

Citam-se: o corte de orçamento das Universidades Federais, a restrição de recursos para realização do Censo/IBGE 2020, a proposta de reforma da previdência altamente cerceadora, a diminuição de acesso ao benefício assistencial para idosos e pessoas com deficiência, a ampliação das possibilidades de uso não sustentável do meio ambiente, a facilitação do acesso ao porte de armas, apenas para mencionar exemplos recentes.

São medidas que, quando somadas em um horizonte de governamentalidade e em coerência a promessas de campanhas, dão azo a uma série de inquietações tanto no plano da Filosofia do Direito quanto do Direito Constitucional Positivo em sua mais basilar dogmática.

Não que o Direito esteja muito protegido na mão de seus guardiões, o que agrava ainda mais a urgência de se repensar este universo.

Por mais que a sobrançaria governamental e de setores da população e das grandes mídias gozem grande júbilo destes nefastos lineamentos, fato é que eles são índices alarmantes de desajustes profundamente questionáveis em termos de constitucionalidade.

O país deveria deixar de ser um grande palco de comentadores de redes sociais, de influenciadores e de espetáculos equivocados, e retornar a algum padrão de seriedade e de profissionalismo constitucional. Mesmo os ditos constitucionalistas silentes,  senão mortos.

Este compromisso deveria vincular juristas, pesquisadores, governantes sérios, advogados, jornalistas e todas as carreiras imediatamente implicadas pela democracia como valor político, como um dever cívico, como um anticinismo, e que não permitisse o dirigismo econômico do Direito, ou mesmo tolerasse imoralidades e antijuridicidades como se tem feito reiteradamente.

A constitucionalidade, é preciso insistir, se dá no plano da norma jurídica suprema vigente, pouco importando as preferências individuais por uma ou outra facção, dos insurretos ou dos patentes. O Direito para além do texto, a hermenêutica para além da literalidade, há mais do que a Lei quando sequer a Lei já não se observa.

Estas notícias, portanto, são representativas não somente de uma mudança de política partidária ou mesmo de direcionamento peculiar de políticas públicas, mas, antes, e de modo severo, colocam em questionamento a própria manutenção de um projeto de Constituição.

Um projeto que é nacional; o único projeto plausível de se afirmar que contempla o Brasil, este Brasil verde e amarelo sequestrado por um setor específico que pretende se afirmar como totalidade.

Insiste-se: um projeto normativo, de Estado, que se sobrepõe a qualquer coloração política e que se sintoniza com o Direito Internacional dos Direitos Humanos pós Segunda Guerra Mundial inclusive no plano obrigacional.

Goste-se ou não, faz parte da arte de governar e do poder de gestão a devida compatibilização de um texto constitucional com preceitos amplos, linhas políticas aparentemente contraditórias e atravessamento constante em um mundo globalizado.

Integra o dever de governar a observância dos compromissos desta pessoa jurídica de direito público interno e externo, fazendo valer a vontade insculpida na racionalidade do seu ordenamento e nas diferentes obrigações que se assume perante o povo e perante os Estados soberanos de modo impessoal. Um Estado não pode ser refém de um governo que não se importa com o Direito que prediz este Estado e que antecede às idiossincrasias.

A Constituição Federal de 1988 é fruto histórico e social de um processo de restabelecimento da democracia, após traumas profundos experimentados pela sociedade civil e não menos pelo Estado naquilo que fracassou em seus propósitos modernos.

Reflete o documento, na época e nas letras, diversos dos anseios históricos daquele momento, de modo que alberga importantes valores para formação de um projeto de sociedade, que ainda não expurgou seus monstros totalitários e ditatoriais em uma adequada justiça de transição vivida por todos.

Questione-se ou não a qualidade desta democracia ou o seu fracasso histórico no cerne das práticas sociais micropolíticas, fato é que, em termos jurídicos, se alcançou de modo declarado uma “forma” prescritiva.

Esteja-se ou não satisfeito com as extensões do projeto ali contido sobre a iniciativa privada, sobre os direitos sociais, sobre a afirmação das oligarquias do poder, em termos dogmáticos, pouco importa ao imperativo do respeito constitucional.

Um respeito constitucional que se dá no reconhecimento das diversas linhas de pensamento e, sobretudo, na sua conjugação, no seu diálogo, na composição de interesses tão conflitantes.

Não é senão esta democracia constitucional, portanto, indispensável instrumento para o desenvolvimento de dispositivos que promovam a mais possível equalização das desigualdades históricas que marcam geneticamente uma sociedade altamente sem paridades, assustadoramente violenta e quase que irremediavelmente excludente.

Há uma engrenagem de engenharia jurídica que não se deveria ignorar com tanta facilidade, seja no plano de governo, seja na acriticidade da sociedade civil, ou na leviandade da opinião pública.

Somos uma sociedade do escárnio constitucional que não se envergonha da própria leviandade constitucional.

Foi a partir das premissas do valoroso significado constitucional que, ao longo dos pouco mais de trinta anos de vigência, a comunidade jurídica, salvo suas contradições e cooptações de poderes, tem se esforçado para reconhecer uma constante materialização jurídica.

É dizer: a Constituição não é um projeto realizado ou esgotado e esvaziado em sua promulgação, e sim, sua força dirigente exige que os poderes constituídos atuem constantemente para ampliar sua afirmação material, seus ramos procedimentais, sua visão de mundo, sua estrutura de interpretação e valoração a partir de decisões históricas pontuais.

Uma das estratégias centrais de tal intento é a realização dos valores constitucionalmente protegidos, tais como a dignidade da pessoa humana e a cidadania (art. 1o, II e III), a construção de uma sociedade livre, justa e solidária com a erradicação da pobreza e da marginalização promovendo o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3o, I, III e IV), o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e de uso comum do povo (art. 225, CF).

Não há opção por um caminho ou outro: os valores são vias concorrentes, conjuntas, reciprocamente articuladas. Qualquer interpretação expressa na vida pública deve se dar na transversalidade destes preceitos, sob pena de se configurar antijurídica.

Se, em termos muito técnicos e de inegável observância político-governamental, tem-se inúmeras previsões normativas de caráter programático e indicativas do direcionamento das políticas e decisões dos poderes da República, é certo que são um parâmetro de juridicidade, de justificação, de legitimidade e própria condição jurídica de existência de políticas.

Tais vetores também são baliza de outras tantas garantias e direitos postos no texto constitucional, multigeracionais integrados, que estão estruturalmente sustentados nesses valores, como é o caso da própria proteção do meio ambiente, a assistência social, o desenvolvimento do ensino superior e a segurança pública.

Nesse período de vigência do texto constitucional os valores, no horizonte posto pelo constituinte, continuam preservados em sua textualidade, ainda que tenham ocorrido variações em sua interpretação e aplicação.

Parece que os limites da interpretação dados, ou da valoração (ou desvaloração conferida), cada vez mais aceleradamente no plano da informalidade dos agentes formais, abrem uma rota de conflito gravíssima em que inegavelmente se pode – e se deve, por força de ética profissional e científica – questionar a honestidade intelectual, a capacidade semântica e mesmo a adstrição pragmática a tudo aquilo que a Constituição determina em uma democracia.

Há, desta maneira, neste movimento do pensar crítico, uma pergunta anterior a ser feita: a previsão normativa, com tudo aquilo que significa tecnicamente, é suficiente para afirmarmos que ainda temos uma Constituição? Não ter ocorrido alteração formal do texto constitucional nos assegura um Estado Democrático de Direito? Para onde segue um país cujo governo o léxico constitucional abandonou?

Os primeiros cinco meses de governo federal nos dizem que “não”, a Constituição não importa tanto assim.

O corte nos recursos do IBGE para realização do Censo/2020 está na ordem de contingenciamento de 25%, o que sugere que serão reduzidas as perguntas na coleta de informações da população. Compete à União “organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional” (art. 21, XV, CF/88).

As informações coletadas pelo IBGE no Censo são diretrizes fundamentais para formulação de políticas de educação, saúde, assistência social, pessoa com deficiência, emprego, renda e diversos outros temas de acesso à serviços públicos como água, esgoto e energia elétrica. O corte nos recursos orçamentários para coleta de informações pode interferir na formulação e execução destas políticas na próxima década e a efetivação da Constituição e seu valores sofrem o primeiro revés na progressiva concretização.

Mais recentemente, o anúncio de contingenciamento dos recursos das Universidades Federais colocou em risco o desenvolvimento de suas atividades e de pesquisas em todas as áreas, incluindo tecnologia e saúde.

O contexto da educação superior no Brasil  resulta de que quase a totalidade de toda a pesquisa é realizada dentro das Universidades públicas e, assim, os recursos não implicam tão somente na redução de vagas, mas na restrição de outros importantes direitos que se refletem na pesquisa: direitos sociais, culturais, econômicos, da educação e da liberdade de consciência e de expressão, sem contar o próprio direito à democracia, que não existe sem uma formação à cultura democrática.

Da mesma forma, a redução de acesso à Previdência ou Assistência Social também implicará no alargamento das desigualdades sociais, na marginalização e na potencialização de franjas de desamparados, em sentido contrário ao texto constitucional.

Contudo, precisamos reconhecer que nenhum desses direitos foi excluído do texto constitucional, ou seja, não houve alteração por Emenda Constitucional (art. 60, da CF/88), até porque a eliminação de qualquer desses direitos esbarraria no conceito de cláusula pétrea (§ 4º, art. 60, da CF/88).

Porém, o modelo neoliberal de exercício político e de realização de políticas públicas vem matando a golpes de tortura a Constituição, sem a necessidade de alterar seu texto.

Não há Constituição se não se disponibilizam condições materiais para sua realização. Não há Estado Democrático de Direito se inexistentes as condições necessárias para realização da Constituição.

Ademais, não há Estado Social e Democrático de Direito, tônica do texto, se se decide aniquilar a dimensão da solidariedade do regime jurídico vigente ao bel prazer de políticas incompatíveis com os preceitos da norma.

O contexto atual aponta para a interrupção de um projeto constitucional, ou melhor dizendo, para a confirmação de um Estado de exceção que se institui sem a necessidade de ruptura com o texto constitucional. A despeito da norma permanecer vigente, juridicamente perfeita, textualmente intocada.

Não há Estado Democrático e não há Constituição se as políticas para sua concretização são esvaziadas e inviabilizadas por ausência de destinação de orçamento. O resultado: a ampliação das desigualdades sociais, da marginalização e da pobreza sem que se possa atribuir esse efeito a qualquer mudança formal no texto da Constituição ou um ataque normativo ao conceito de democracia.

Um retrocesso de direitos em que os cidadãos não estão a salvo da arbitrariedade, nem das desventuras do poder soberano e suas capilaridades em todos os ventrículos da vida.

É a ausência de uma violação expressa ao texto normativo que tem concorrido para manter inúmeros setores da sociedade, cujos interesses legítimos e direitos fundamentais estão sendo completamente usurpados, dentro de um estado de completa letargia.

Não se identifica o inimigo. Não se sabe exatamente contra quem lutar, não há uma liderança representativa, inspiradora, combativa, decisiva. Aquelas vozes pujantes não são divulgadas. Não se levanta uma voz da multidão, nem uma voz da soberania.

As instituições democráticas, no corpo da Constituição e de sua legalidade, igualmente velam o sono de suas atribuições, assistindo-se a uma exposição de aberrações jurídicas, que deveriam escandalizar muito mais do que qualquer nudez artística.

A morte da Constituição tem vindo de dentro, da ausência de condições materiais para sua realização e não há presente uma dinâmica social que possibilite um levante contra esse movimento mortífero.

Entre festas e recepções, lagostas, queijos e vinhos, entre abraços e homens e mulheres salvadores, descansa em um canto dos nobres salões um exemplar do Texto Constitucional.

Como que nunca aberto em um altar sem devoção, como que um fóssil histórico a ser redescoberto por uma geração futura, arqueóloga, que tal como fizemos um dia há pouco tempo, ainda se surpreenderão com o tanto que havia por ser feito, e que se deixou de observar.

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Marcelo Paulo Wacheleski é doutor em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí. Especialista em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Advogado.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Advogado.

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(1) Disponível em: <https://theartstack.com/artist/raoul-dufy/the-bird-cage>. Acesso em: 11 maio de 2019.

Redação

1 Comentário

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  1. Vocês já sabem a resposta. A constituição brasileira não vale nem o papel em que foi impressa.

    Porque não adianta apenas inventar leis e colocar elas no papel, é preciso também ter quem ENFORCE essas leis e pelo que eu estou vendo no Brasil não existe ninguém responsável pelo cumprimento das leis.

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