Algumas perguntas e hipóteses em torno da elegibilidade do ex-presidente Lula, por Roberto Bitencourt da Silva

A importância eleitoral de Luiz Inácio é ainda incontrastável. O seu retorno ao campo das disputas eleitorais na condição não de um conselheiro de luxo, mas de um jogador com a faixa de capitão do time, consiste em fato surpreendente. Inesperado.

Algumas perguntas e hipóteses em torno da elegibilidade do ex-presidente Lula

Por Roberto Bitencourt da Silva

Nos últimos dias parte expressiva da sociedade brasileira tem tido um especial motivo de contentamento. Trata-se da decisão do STF, que viabiliza a recuperação dos direitos políticos do ex-presidente Lula, como também atinge frontalmente a credibilidade da Lava Jato e do seu personagem maior, o juiz Sérgio Moro.

Todavia, ainda é bastante obscura a razão de o STF tornar o ex-presidente Lula elegível. Qual o propósito de um condômino importante da estrutura do poder recuperar o ex-presidente no cenário eleitoral e político? Sem muitas evidências e com poucos fatos claros restam especulações.

A importância eleitoral de Luiz Inácio é ainda incontrastável. O seu retorno ao campo das disputas eleitorais na condição não de um conselheiro de luxo, mas de um jogador com a faixa de capitão do time, consiste em fato surpreendente. Inesperado.

Esse acontecimento tem um impacto político transcendente. E ele exige a reflexão atenta sobre questões elementares, demandando análise concreta da situação concreta. Se o jogo está sendo jogado por cima, sem o influxo de pressões e mobilizações das classes populares e trabalhadoras, jogo destituído de interferência maior dos apelos das correntes partidárias de esquerda, por quê a decisão do STF? Qual o seu propósito em acolher o reclamo “Lula livre”?

A prisão e a proscrição do ex-presidente da cena eleitoral foram o resultado de uma sucessão de iniciativas e escolhas do bloco de poder no Brasil. O golpe de 2016 teve em vista retirar do governo federal um agrupamento político, ainda que dócil, inconveniente para a promoção da agenda flagrantemente entreguista, neocolonial, autoritária e ultraliberal das classes dominantes. 

Para usar os antigos e esclarecedores termos da teoria de Darcy Ribeiro, as classes dominantes do país são formadas pelo patronato, pelo estamento gerencial estrangeiro e pelo patriciado civil e militar (oligarquias políticas, altas cúpulas do Judiciário e das Forças Armadas). Nas últimas décadas, foi precisamente o estamento (capital) estrangeiro que alcançou hegemonia no bloco de poder. Os demais tenderam a virar seus satélites.

A crescente e ininterrupta desnacionalização da economia brasileira contribui para isso. Ela tem sido ainda mais intensificada após a destituição da presidente Dilma Rousseff (PT). A “compradorização” das burguesias domésticas e do patriciado é incrementada. Expandiu o avassalamento de ambos aos interesses do imperialismo e do capital internacional. Assim, qualquer laivo de interesse nacional tende a sumir completamente do horizonte de todas as frações das classes dominantes.

O golpe teve este propósito maior: reforçar a desnacionalização econômica e as taxas de superexploração da força de trabalho. Rebaixar ainda mais a inserção brasileira na divisão internacional do trabalho. Está alcançando êxito. Segundo dados da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), entre 2015 e 2019, o Brasil saltou do 7º lugar no ranking mundial de recepção do investimento estrangeiro para a 4ª posição.

A descapitalização nacional só aumenta, com a respectiva transferência de excedentes, meios de produção e riquezas para os países centrais do capitalismo. A miséria se expande e os direitos trabalhistas são pulverizados. Instituiu-se um regime neocolonial e rentista, que dispensa a já tímida capacidade autóctone de geração de conhecimento, de produção de bens de valor agregado, além de amesquinhar bastante o mercado consumidor. Território, somente.

Por mais limites que apresente a agenda desenvolvimentista do ex-presidente Lula, essa agenda tornou-se um anátema, suscetível à demonização pelas classes dominantes, pelos conglomerados de mídia. Isso embora seja um método de gestão econômica que não rompe com a moldura da dependência tecnológica e com o status periférico e subalterno do país no capitalismo global. O desenvolvimentismo tido como inaceitável pelos barões de cima: “populismo”, nos dizem.

A privatização, a desnacionalização e demais medidas que retiram instrumentos do Estado para coordenar e induzir o crescimento econômico são armas que estão aniquilando a viabilidade do desenvolvimentismo. Diga-se, desenvolvimentismo límpida e nitidamente apresentado pelo pronunciamento do ex-presidente, que chegou a ventilar a necessidade de uma política industrial, ainda que se trate de uma preocupação que não demonstrou nos seus anos de governo, em que desenrolou a desindustrialização e o desenvolvimentismo foi operado especialmente por meio de grandes obras públicas.

Tudo isso era ou é carta fora do baralho no jogo das altas rodas. Não há qualquer gesto das entidades empresariais que revele a aceitação da retomada dessa estratégia de gestão da economia. Pelo contrário. Fiesp, CNA, Firjan, Febraban, nada. Contudo, o patriciado parece movimentar-se. Meu amigo e sociólogo Marcius Coutinho me diz que as tensões entre o STF e a cúpula militar são variáveis relevantes e decisivas. Busca por proteção de margem de ação pelo STF, dando um chega prá lá nos generais. Evidências empíricas que ajudam a compreender o porquê da recuperação, ao menos momentânea, da elegibilidade de Lula. Concordo.

Nesse sábado, outro sinal de movimentação do patriciado, agora entre as oligarquias políticas:  Aécio Neves (PSDB) acena para uma candidatura presidencial que integre o “centrão”, envolvendo Ciro Gomes (PDT) e sem a necessidade do seu partido figurar na cabeça de chapa. Um sintoma de realinhamento das forças políticas institucionais? Não se pode esquecer que Ciro pertence ao mesmo terreno programático de Lula: o desenvolvimentismo.

Parece aqui revelar uma emergente lógica eleitoral que venha a apostar em um circunstancial descontentamento popular contra a agenda ultraliberal e vende pátria instaurada. Notadamente contra o criminoso negacionismo sanitário de Bolsonaro. Em todo caso, tudo ainda está muito nebuloso. Sem pretender me aventurar em especulações, só posso aventar rapidamente que fatores internacionais talvez tenham estimulado a decisão favorável – e justa – a Lula no STF.  O Brasil hoje é o centro da pandemia, um risco à saúde da sociedade internacional. Alguma pressão pode ter vindo desse ambiente mais amplo e o ex-presidente involuntariamente assumiria a condição de “remédio”.

Outras perguntas necessárias e principalmente voltadas às esquerdas não satelizadas pelo petismo, senão mesmo àquelas que assumem ideais mais radicalizados, ainda que esquerdas destituídas de expressão eleitoral. Muitos nessas faixas saudaram a justiça feita ao ex-presidente, mas questionaram a timidez das linhas programáticas do discurso de Lula. O questionamento me parece necessário. Mas, insuficiente e um tanto infecundo.

Nesse terreno do espectro político-cultural, na conjuntura atual, cabe indagar: a elegibilidade e a possibilidade, com isso, de o ex-presidente Lula participar mais intensamente do debate público pode contribuir para elevar o nível de politização das classes populares e trabalhadoras? Ou tenderia a atrapalhar esse exercício? Essa elegibilidade pode afetar positiva ou negativamente a draconiana correlação de forças sociais e políticas prevalecentes?

Essas me parecem questões relevantes a serem submetidas a uma análise criteriosa sobre o momento. Pessoalmente, entendo que a reinserção de Lula no centro do debate é fator político sobremodo positivo.  As suas ideias exploradas no pronunciamento de dias atrás se chocam abertamente com o liberalismo genocida e apátrida.

Convivendo nos últimos anos com a satanização, o semi-expurgo dos centros políticos decisórios e com o veto ao acesso e à visibilidade minimamente construtiva e respeitosa nos meios massivos de comunicação, ainda hoje o lulopetismo canaliza esperanças de grossa parte dos setores progressistas e dos movimentos sociais e sindicais.

O lulopetismo ainda não esgotou as suas capacidades de interpelação entre segmentos sintonizados com pautas progressistas. Isso não é gratuito. São décadas de hegemonia, contando ainda com uma liderança inegavelmente dotada de atributos carismáticos, com experiências de vida marcadas por situações persecutórias que mitificam, que dão certo caráter de exemplaridade aos atos de Lula.  

Outro amigo, geógrafo, inserido em coletivos populares e de formação da opinião com pendores antissistêmicos, Cícero Simões, me relatou recentemente as dificuldades que enfrenta no trato de certas questões e propostas de ação política que não se circunscrevam a pretensões eleitorais. Em outras palavras, ele deixa entrever que a ênfase conferida às eleições como meio exclusivo de resolução dos problemas populares, de setores médios e dos trabalhadores, ênfase marcante no lulopetismo e em demais partidos avizinhados, ainda predomina com folga. Isso em que pese a crescente alienação eleitoral. Ou talvez por isso mesmo ela cresça.

Isso posto, os círculos, coletivos e partidos portadores de aspirações e agendas de esquerda radical, antissistêmica, enfrentam barreiras ora semi-intransponíveis, demonstrando acentuadas fragilidades e impotências no tocante à participação na construção da opinião pública.

Cumpre às esquerdas e aos seus coletivos antissistêmicos persistirem no estímulo à organização, mobilização e capacidade crítica popular. O país necessita muito desse tipo de esforço político. Sobretudo, no contexto de desmonte dos direitos trabalhistas e de enorme desemprego e subemprego, que proporcionam uma debilidade gigantesca ao movimento sindical. Os sindicatos, enquanto ferramentas de politização e organização popular (há décadas dominados pelo apassivamento petista e dos seus aliados), têm perdido quase toda vitalidade. Um fato que demanda novas e criativas maneiras de reinventar a organização e a mobilização da nossa gente.

Sem dúvida, as condições áridas correspondem quase a um trabalho dos cristãos primitivos. Com ou sem Lula protagonizando a cena política, as esquerdas descoladas da institucionalidade são imprescindíveis, mas têm muito o que fazer.  Isso por que, não bastassem as medidas parlamentares e de governo desde 2016, o projeto recém aprovado no Congresso, que congela os salários dos servidores por 15 anos, representa mais uma dura iniciativa que tende a pavimentar a estrada da destruição não somente do Estado brasileiro, da realização mínima dos direitos coletivos, como do próprio mercado consumidor.

Amargando já alguns anos de salários sem reajustes, servidores vitimados por uma austeridade sem fim, esta é mais uma variável importante do regime acentuadamente neocolonial, rentista e primário-exportador implantado pelo golpe de 2016. Nada vai mudar, de fato, por dentro do sistema.

Trata-se de manobra adicional das classes dominantes, que almejam dar ares de perenização para um regime rentista neocolonial. Um novo regime que praticamente destruiu a Constituição de 1988, suas prerrogativas e aspirações. A PEC 186 assume o primado da calamidade nacional como justificativa para todo e qualquer ato contra o servidor e o serviço público. Na verdade, a calamidade nacional é o próprio regime que hoje ganha contornos claros.

É muito importante saudar a recuperação da liberdade e o retorno da grandeza do ex-presidente no centro do palco político. Contudo, é igual e forçosamente necessário procurarmos ultrapassar as visões semirreligiosas de um Lula “onisciente” e “redentor da nossa miséria e desgraça”.

Com o regime instaurado em 2016, cada vez mais encorpado em seu privatismo cavalar e em seu vende patrismo pornográfico, se o ex-presidente permanecer apossado da sua elegibilidade não seria exagero alinhavar a hipótese de um Lula ainda mais “aggiornado”, mais palatável ao bloco de poder. Ou, hipótese improvável, mas não impossível, um Lula sujeito a arbítrios inauditos. Em quaisquer destas alternativas, o Povo Brasileiro precisa se organizar, estar mobilizado e se defender. Amanhã, como hoje.

Roberto Bitencourt da Silva – cientista político e historiador.

Redação

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