Apesar dos assassinos de Marielle Franco, a democracia pode ser ressuscitada, por Álvaro Miranda

É a República que foi esbofeteada na maior caradura. Os assassinos de Marielle e Anderson mataram um pouco da República, da democracia, da cidade, do senso de civilidade.

Apesar dos assassinos de Marielle Franco, a democracia pode ser ressuscitada

por Álvaro Miranda

Por não ter “novidade” alguma em termos jornalísticos é que volto a escrever sobre o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Escrever não é só reclamar, cobrar, desabafar, marcar posição. Escrever é também pesquisar, procurar, abrir veredas do imponderável. Escrever é esticar a vida. É ver no feixe possível de várias sensibilidades. E fazer velhas e novas indagações. Além disso, “novidade” jornalística é relativismo do que realmente importa.

Os fatos mais recentes sobre o caso suscitam a intuição de que a polícia já sabe quem são os mandantes, os motivos, a mecânica, os detalhes, bem como os envolvidos indiretos e as reverberações criminais e políticas desse triste e revoltante episódio da histórica republicana brasileira. Haja polícia competente nesse Rio de Janeiro. O que falta agora? Quem é quem e de que forma no jogo das encenações que escondem a verdade?

Para aqueles que acham que é exagero falar em República, aqueles que acreditam que se trata de crime comum, como fato isolado e localizado no Rio de Janeiro, lembro que a boçalidade e as trevas se instalam por imagens também isoladas, sem palavras, sem reflexão e sem conexão com outros fatos. Ressalve-se que todo crime comum é horrível no caso de atentados contra a vida de quem quer que seja.

Não tem nada de exagero. É a República que foi esbofeteada na maior caradura. Os assassinos de Marielle e Anderson mataram um pouco da República, da democracia, da cidade, do senso de civilidade. Mataram um pouco de cada um de nós – nós, que podemos perder filhos, companheiros e companheiras, parentes e amigos da mesma maneira.

Além do assassinato de cada um de nós, os matadores e seus mandantes mataram uma perspectiva de esperança difusa e coletiva. Há coisas que renascem em outras dimensões. De Marielle e Anderson, bem sabemos, não se terá mais seus gestos, suas falas, sua alegria, seu trabalho, seu convívio familiar. Mas ela deixa um legado para sempre.

A eternidade pode até ter prazo de validade para determinadas obras. Mas a história de uma coletividade, uma vez recuperada e guardada, fica para as futuras gerações. Jesus Cristo que o diria, ou Tucídides. A República e a democracia podem ressuscitar, sim, também em dimensões cuja potencialidade não temos condições de medir agora.

Antes que algum leitor pergunte o que eu tenho a ver com Marielle Franco, sugiro voltar-se ao espelho da consciência e fazer a mesma pergunta para si mesmo. Para mim, trata-se de um caso pessoal, sim, por ser um caso político, um caso pessoal, repito, embora nunca tenha tido proximidade afetiva com ela e Anderson Gomes. Apesar de nunca tê-los conhecido pessoalmente. Pessoal porque político.

Essa é a questão: os afetos que nos movem pela cidade, pelos vizinhos, pelos outros, pelos mais distantes, pela diarista de nossa casa que mora longe e nos conta seus problemas, pelo morador debaixo da marquise da agência bancária. Pelos nossos pares profissionais, pelo sentido, enfim, de sermos o que somos para nós e para os outros.

Desde 14 de março de 2018, essa audácia dos criminosos ficou entalada na minha garganta como eu mesmo, na minha obscuridade, na minha individualidade – mas também como cidadão que pago impostos e voto em determinados políticos de quatro em quatro anos. Se fôssemos decentes, como coletividade, iríamos em massa para a rua exigir prisão dos mandantes. Marielle não era representante apenas dos seus eleitores, mas da cidade.

Eu, que me sinto impotente em termos práticos para o caso, eu que resolvo escrever para me enlaçar de afetos a quem quiser compartilhar, falar, comentar, acrescentar. Para escrever, enfim, a quem quiser nunca fazer esquecer como faz certo critério jornalístico com assuntos que não dão uma pauta “boa”.

Escrevi outro dia no Facebook que, desde o golpe que derrubou Dilma Rousseff em 2016, estamos sendo golpeados dia após dia e assombrados com tamanha frieza e egoísmo de muitos extratos, sobretudo, da classe média supostamente letrada. Sem falar dos truculentos imbecis com sangue nos olhos e espírito genocida. O assassinato de Marielle Franco é o ápice ou o fundo do poço da miséria a que o Brasil chegou.

Se os policiais já sabem o que aconteceu, o que falta para botar os mandantes na cadeia? Se as peças do quebra-cabeça estão sendo entortadas por manipulações, nós vamos engolir essa tragédia assim fácil como absurdo transformado em realidade goela abaixo? Como se fôssemos idiotas?

Marielle e Anderson foram assassinados e não voltam mais, apesar de sua sobrevivência em outras dimensões concretas e abstratas aqui na terra, através de livros, trabalhos, eventos, outras pessoas. Apesar da tentativa dos assassinos, a República e a democracia também podem ser ressuscitadas.

Redação

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