Chega de cancelar o desejo!, por Rita Almeida

O desejo é revolucionário porque não é sobre o querer, principalmente o querer colonizado pela economia capitalista.

Maty Vitart

Chega de cancelar o desejo!

por Rita Almeida

A estrutura de poder fascista, com todas as suas derivações e nomenclaturas, não é apenas uma forma de autoritarismo, é um modo específico de tratar o desejo: o mais revolucionário dos afetos. Se o fascismo é o resultado de uma revolução fracassada, como se diz, seu objetivo é censurar, colonizar e controlar o desejo.

O desejo é revolucionário porque não é sobre o querer, principalmente o querer colonizado pela economia capitalista. O desejo é, sobretudo, sobre o que eu não posso ou não deveria querer, mas quero mesmo assim. O desejo é errático, politicamente incorreto, desobediente e incurável. É “o que não tem governo, nem nunca terá. O que não tem remédio, nem nunca terá”. O desejo não tem a ver com a ordem, com o bem ou com a paz. O desejo não busca nenhuma universalidade ou unanimidade. A ética do desejo tem a ver com sustentar o mal-estar, a diferença, as impossibilidades e o conflito, e assumir todos os riscos e consequências que isso implica. O desejo é a vida pulsando corajosa.

Já o fascismo tem a ver com a morte, principalmente a morte do desejo. Mas como é quase impossível matar o desejo depois que ele se apresenta, a proposta fascista é barrar o desejo antes que ele compareça, é eliminar o mal-estar e o conflito antes que se manifestem. É por isso que a produção do medo é muito importante na economia fascista, a censura é importante, a moralidade que regula a sexualidade e os afetos é importante. O fascismo precisa localizar e delimitar o mal-estar, a fim de transformá-lo num único alvo a ser eliminado, e eliminado previamente. Por isso, a violência fascista não é contingente; efeito do conflito, da diferença ou de um deslize moral. A violência fascista é premeditada, planejada e organizada. Os milhões de judeus dizimados no holocausto nazista, não morreram por efeito de um conflito ou da guerra entre dois povos, morreram por efeito de uma estratégia política genocida, de evitação do mal-estar (do desejo).

O que Hannah Arendt percebe em Eichmann – carrasco nazista, principal responsável pelo envio de judeus aos campos de concentração – é que o mal que ele impôs não decorreu do ódio ou da necessidade de transgressão, era o mal banalizado, burocratizado, efeito de uma convicção ideológica e uma decisão política. Era um mal obediente, e não um mal desobediente. Aliás, reparem bem, as maiores atrocidades cometidas na humanidade foram resultados da obediência e da servidão, não da desobediência.

É por isso que qualquer tipo de censura prévia, é mais fascista do que qualquer demonstração de indignação ou fúria. Por outro lado, escancarar o conflito e lidar com as consequências disso, é sempre mais saudável do que criar guias e regras para evitá-lo. A essência da democracia é o conflito, não a ordem. É mais fascista proibir alguém de usar uma fantasia do que, eventualmente, perder a linha e socar ou cuspir na sua cara. É mais fascista bloquear seu interlocutor do que mandá-lo ao raio que o parta. É mais fascista incitar o medo e impor o toque de recolher a uma população, do que, tomado pela fúria desejante, partir pra cima com uma retroescavadeira.

Cancelem as fantasias, cancelem aquilo ou aqueles que lhes causam mal-estar, cancelem as arenas para o conflito, cancelem o desejo, cancelem o riso, além disso, permitam que eles cancelem o carnaval, a arte, o sexo, as manifestações de rua, os sindicatos, os partidos de oposição e verão o fascismo jorrar com toda a sua força.

O fascismo pretende cercear o desejo, o antídoto contra isso é saber ir às últimas consequências para fazê-lo valer.

Retroescavadeira, sim!

Bacurau!

Rita Almeida

Redação

1 Comentário

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  1. “É mais fascista bloquear o seu interlocutor do que mandá-lo ao raio que o parta”. Estou impressionado com a quantidade, relativa, por óbvio, e pelo nível, absolutamente alto, dos artigos psicológicos, psicanalíticos e afins que vêm sendo publicados no GGN. Aproveito a deixa para registrar minha idiossincrasia diante da maneira de dar opinião com o polegar sobre o comentário de leitores dos posts. Atitude muda, silenciosa, premeditada, escondida, de um polegar pra baixo que tenta bloquear uma idéia sem usar interlocução; de polegar para cima, embora pense que não de mão própria, muitas vezes não passa de vitupério. O “raio que o parta”, justo ou desaforado, assimilado corretamente ou com desvio interpretativo, é um raio de luz. Clareia o caminho, fazendo-nos mudar a rota se estivermos na errada, ou continuar a jornada em frente se mantivermos fé no trajeto.

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