Como explicar para Argentina o que acontece no Brasil?, por Santiago Gómez

O problema não é se Bolsonaro é louco, psicótico ou paranoico, o problema é que é do mal. Bolsonaro provou também desde a presidência que não está nem aí com a vida das pessoas

Como explicar para Argentina o que acontece no Brasil?

por Santiago Gómez

Não tem dia que não receba uma mensagem da família, amigos ou colegas perguntando: “O cara é ou se faz?”. É difícil entender na Argentina o que está acontecendo no Brasil, porque nós crescemos com a ideia do Brasil como modelo de república. Típico de países colonizados: o melhor está em outro país. Também sei que é difícil para os brasileiros entenderem alguém considerar esse país como modelo. Para quem me pergunta pelo “Bostan’água”, como o chama o artista pernambucano, a minha resposta sempre é a mesma: apoiou genocidas, votou no Congresso para acabar com um governo democrático homenageando genocidas, colocou no ministério da fazenda um economista que trabalhou no governo Pinochet, é genocida. Ou como é que deve ser chamado aquele que sabe que as suas ações produzem milhões de mortes? 

“Mas como é possível que votaram nesse retardado?”, me perguntam todo dia e eu sempre respondo: a Argentina votou no Macri e está provado que se você alimentar o ódio contra alguém, e depois der  para as pessoas a opção de escolher entre o odiado e qualquer outra coisa, a maioria escolhe qualquer outra coisa, e assim chegam subnormais que nem esse na presidência da maior economia da América Latina. Eu imagino que em alguma ilha do Pacífico devem estar Steve Bannon e dois desses financistas que ninguém sabe o nome, bebendo uns drinks, e o Bannon dando risada diz: e vocês que não acreditaram que podíamos colocar esse imbecil na presidência do Brasil. 

Não são somente os argentinos que não conseguem entender o comportamento de Bolsonaro, até a direita brasileira sente vergonha de um presidente que leva humorista para entregar bananas aos jornalistas, que responde “e daí?”, quando questionado pela quantidade de mortos. Estão aí as publicações do FHC para me desmentir. O brasileiro é um povo educado, que cuida das formas, e defendo isso com a maior certeza, levo seis anos morando nesse país, morei em três estados, conheço sete e sempre encontrei pessoas extremamente educadas, que evitam fazer sentir mal a outra pessoa. Tem muita hipocrisia também, mas vale mais o silêncio, que o comentário que possa parecer grosso. Então, como não se irritar após ouvir o presidente?  E esse não é o presidente da república, porque não tem república. 

Caso tiver, é outra, essa não é a república da Constituição. Essa não é a república do Estado de direito, porque não tem. Foi e continua sendo golpe. Então quando os argentinos me perguntam se os militares vão dar golpe contra o Bolsonaro, eu conto para eles que os militares governam-nos desde 1º de janeiro de 2019. Presidente militar, vice-presidente militar, dos vinte e dois ministros, oito são militares. Tem um neoliberal no ministério da fazenda, formado com o pai do neoliberalismo Milton Friedman, que foi trabalhar no Chile de Pinochet consciente de que para implementar aquele modelo econômico não interessava a democracia, nem a vida das pessoas. Novamente é mais do mesmo, mas dessa vez, o judiciário emprestou a fantasia de democracia para aquilo parecer uma eleição.

Eu conto para a Argentina, nas matérias que publico lá, que o Bolsonaro é coerente. Passou trinta anos dizendo que não acreditava na democracia como via de uma transformação social, que para isso está o caos. Que é preciso acabar com o Supremo Tribunal Federal, que a ditadura errou em torturar sem ter matado 30.000. É um desequilibrado impulsionado pelo ódio. O problema não é se Bolsonaro é louco, psicótico ou paranoico, o problema é que é do mal. Bolsonaro provou também desde a presidência que não está nem aí com a vida das pessoas, coisa que era bem sabida no Rio de Janeiro, e ainda assim ganhou. 

Mas como é possível que aguentem, me perguntam da Argentina? Conto que infelizmente a escravidão aqui chegou até o século vinte. Ainda que proibida, sabemos que existe. A submissão nesse país dói. Enquanto Argentina julgava os militares em 1985, no Brasil criava-se uma emenda constitucional que reconhecia o direito FACULTATIVO dos analfabetos votarem, 30% da população estava fora da política. Se o Brasil tivesse julgado os militares, se condenasse quem homenageiam torturadores no congresso, estes caras hoje não estariam aí no governo, estariam na cadeia. 

É tão forte a segregação no Brasil. Senti a primeira vez que vim ao país, convidado pela UFRGS em 2008. As pessoas negras que vi eram terceirizadas para limpar o prédio, atendiam na lanchonete.  Contei isso para um amigo gaúcho que mora no Rio, bebendo uma na Lapa. “Não é tão assim, Santi”, ele me respondeu.  Pedi para ele contar quantas pessoas negras tinham no bar, entre as dezenas de mesas e das quais não estivessem levando uma bandeja. Não eram nem cinco. Quantas lideranças negras reconhecidas nacionalmente têm a esquerda? É mentira que a maioria dos partidos de esquerda são compostos de pessoas brancas de classe média universitárias? Estou me referindo à estrutura partidária e não as bases, que por isso se afastaram de alguns partidos. 

Outro assunto sobre o qual sempre me perguntam é: e o PT? Então eu conto que tem coisas que dá para entender. Quatro séculos de escravidão, até 1985 os analfabetos sem direto de votar, trinta anos para o PT chegar ao governo, e o dia que chegaram os quadros que tinham nas bases foram ocupar cargos no governo. O Estado é um aparelho grande, precisa de muita gente. Continuaram fazendo política, mas só dentro do Estado. Na campanha de 2014 o PT acabou pagando pessoas para ondar bandeiras nas esquinas. O PT tem milhões de filiados, mas hoje não tem força de mobilização social, e isso é tudo na política. A disputa é na rua. E o PT padece problemas que não são culpa do PT. 

Não foi o PT que criou esse sistema político, onde as pessoas votam candidatos e não votam partidos. Então o dia que “X” fez acordo com empresário, conseguiu grana para fazer campanha, virou seu rosto conhecido e se assegura toda eleição uma banca, então muda a relação com o partido. Ele não precisa tanto do partido quanto o partido dele, porque assegura uma banca. Lula falou infinitas vezes sobre isso. Dos cinco pontos propostos pela Dilma, após as manifestações de 2013, só não conseguiu implementar a reforma política, porém conseguiu tirar recursos do petróleo para educação, mas não conseguiu a reforma política e até mesmo legisladores do PT foram contra. Lula impulsionou a reforma política, Dilma impulsionou a reforma política, Dirceu vem batendo sobre o assunto há anos, mas não teve reforma política. Eu falo para meus amigos argentinos que acho que essa questão no futuro próximo será inevitável. 

Já os movimentos sociais, é um assunto sobre o qual meus colegas sempre querem saber. Escrevo para uma agência de jornalismo militante, Agencia Paco Urondo e quando o faço opino que os movimentos sociais sairão fortalecidos da pandemia, são eles que hoje estão nas quebradas assegurando as cestas básicas, distribuindo máscaras, promovendo saúde, e recuperando a presença no território que os partidos da esquerda perderam. Cobri e militei todas as eleições para o PT desde 2014 até 2018 em três estados diferentes e em todos sempre ouvi: “o PT sobe de dois em dois anos no morro, quando precisa votos”. Quem sabe a base petistas dos movimentos sociais, que não participa da burocracia do partido, tenha maiores oportunidades em 2022? 

E, por último, sempre vem a mesma pergunta: “você não pensa em voltar”? Minha resposta sempre é a mesma,  me apaixonei por esse país, pela alegria e sensibilidade do povo brasileiro. Prefiro a vida contada num samba do que num tango.  Acho que o samba “O que é o que é?”, mostra bem a diferença entre um argentino e um brasileiro, onde diz: “Eu sei que a vida devia ser bem melhor”, aí tem um tango e o brasileiro acrescenta: “e será, mas isso não impede que eu repita, é bonita, é bonita e é bonita”. Ainda com esse energúmeno no governo, a vida aqui é bonita, pelo povo e por esse mesmo povo será ainda mais bonita, mais uma vez. 

 

Redação

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