Dr. Kouchner e o Sr. Hyde: o médico e o monstro? Parte 1, por Ruben Rosenthal

Bernard Kouchner, co-fundador da organização Médicos Sem Fronteiras, em seu alter ego amoral, se tornou o mentor intelectual de intervenções militares criminosas pela OTAN, com consequências devastadores para muitos países

do Chacoalhando 

Dr. Kouchner e o Sr. Hyde: o médico e o monstro? Parte 1

por Ruben Rosenthal

No livro do escocês Robert Louis Stevenson, publicado originalmente em 1886, e tendo como cenário a nevoenta Londres, o respeitado médico, Dr. Jekyll, passa por uma metamorfose física e moral, que o transforma em um assassino contumaz, o senhor Hyde. Na França do final do século 20 e início do 21, Kouchner, refinado médico e humanitarista,  co-fundador das organizações Médicos Sem Fronteiras e Médicos do Mundo, em seu alter ego amoral (ou imoral?), se tornou o mentor intelectual de intervenções militares criminosas pela OTAN, com consequências devastadores para muitos países. Além disto, o francês teve o seu nome associado ao tráfico internacional de órgãos em Kosovo, e poderá ver ainda, em vida, sua responsabilidade comprovada.

Este primeiro artigo  foi baseado principalmente no texto de Philip Hammond, escritor e professor  britânico, intitulado “Bernard Kouchner é o homem mais perigoso da Europa?”. Será analisado o começo da trajetória de Kouchner, indo até o final dos anos 80, período em que sua atuação foi essencialmente como médico humanitarista, embora o viés político e midiático já estivesse presente. No restante do atual artigo, Kouchner será referido apenas como “K”.

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O início. Conforme consta no relato de Hammond, K orgulha-se ainda de ter sido um dos jovens rebeldes que estiveram na linha de frente da revolta estudantil de maio de 68, na França. Ele contava então com 29 anos, e era um pouco mais velho que alguns dos líderes, e com uma origem mais convencional na esquerda, por ter se envolvido com o PCF, do qual fora expulso por planejar um golpe interno. Mas poucos destes jovens radicais de 68 tinham sérias expectativas de encontrar “em casa”, uma causa impactante, como a da geração dos resistentes à ocupação nazista. A culpa recaía sobre o consumismo do boom econômico pós-guerra mundial, visto como o aburguesamento da classe operária ocidental.

Sem a proximidade de uma revolução, estes jovens olharam para as lutas de libertação colonial no Terceiro Mundo, como as da África, Indochina e outras. Dentro deste espírito, K se apresentou à embaixada cubana em Paris, em 1960, para ir em defesa de Fidel Castro e Che Guevara. A oferta foi recusada, e, ainda em 68, menos de 6 meses após os eventos de maio, K foi como médico voluntário  para a guerra civil na Nigéria, onde Biafra havia declarado sua independência no ano anterior. A França apoiava Biafra, enquanto que a Inglaterra defendia a manutenção da integridade territorial da Nigéria, sua ex-colônia.

O governo nigeriano impusera um bloqueio aos separatistas, que resultou em fome generalizada. K ficou chocado que a Cruz Vermelha respeitasse a soberania nigeriana, e a estrita aderência ao princípio na neutralidade humanitária, o que o proibia, e a seus colegas médicos, de se pronunciarem contra “o genocídio pela fome”. Parecia a ele, uma repetição do silêncio mantido pela organização em relação aos campos nazistas. K considerava que, ao se manterem em silêncio, “os médicos estariam sendo cúmplices do massacre sistemático da população Ibo”.

De volta a França, ele estabeleceu o Comitê Contra o Genocídio em Biafra, que deu origem, em 1971, à organização Médicos Sem Fronteira, da qual foi co-fundador. MSF seria diferente da Cruz Vermelha, pois seus agentes não deixariam de agir, e não ficariam em silêncio, face à constatação de atrocidades sendo cometidas.

Mas a verdade sobre a história de Biafra é um pouco diferente da que fora denunciada por K. Ocorria, certamente, grande sofrimento da população Ibo, mas não havia genocídio ou perseguições em áreas controladas pelo governo central. É o que relata Fiona Terry, ex-diretora de pesquisa de MSF e, atualmente, chefe do centro de pesquisa operacional do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (ICRC). K e seus colegas simplesmente não consideraram que estavam no meio de uma guerra civil.

Pouco tempo depois, em 1980, K deixou MSF, para fundar uma ONG menor, Médicos do Mundo, juntamente com 15 médicos franceses. MDM surgiu a partir da campanha de K, “um barco para o Vietnam”, que visava recolher refugiados vietnamitas no mar da China, que fugiam do governo comunista. Seus colegas do MSF consideraram que a ação era essencialmente midiática, e não aderiram à causa.

K justificava a relevância de se chamar a atenção da mídia, como forma de compelir Estados a aderirem à ações humanitárias. Em 1979, ele partiu em sua “ambulância marítima”, Ile de Lumière (Ilha da Luz), para o Mar da China. Um vídeo de cerca de 2 minutos, falado em francês, e mostrando a operação de recolhimento de refugiados no mar e algumas entrevistas, pode ser acessado aqui.

O então presidente Jimmy Carter ficou tão impressionado com a visão do barco de K, que enviou a marinha norte-americana para ajudar no resgate do “boat people”. Isto possibilitou que os militares dos EUA aparecessem como salvadores de vietnamitas, poucos anos após as inomináveis atrocidades cometidas pelas tropas norte-americanas, no próprio Vietnam.

Nos anos 80, já através de MDM, sua nova organização, K participou de atendimentos médicos em diversas regiões do mundo que passavam por crises humanitárias. De 1983 a 1985, em meio a uma situação de conflitos internos, a Etiópia atravessou uma crise generalizada de fome, com todas as consequências que decorrem em casos de desnutrição aguda.  E lá estava K, conforme mostrado na  foto de Sebastião Salgado.

No final da década, com a queda do muro de Berlim, o “direito à intervenção” ganhou força. Para a elite ocidental, privada de seu inimigo da “guerra fria”, o humanitarismo ofereceu um novo sentido de missão. O mundo estava pronto para K, e K estava pronto para brilhar no mundo. Na nova era, que se iniciou essencialmente na década de 90, a soberania nacional de países fora do Ocidente deixou de ser respeitada, diversas vezes com base  em falsas alegações de limpeza étnica, genocídios e perseguições. As consequências das intervenções foram devastadoras, em vários casos.  Para muitos críticos, uma nova forma de colonialismo se iniciou, com o advento da intervenção humanitária.

No próximo artigo da série, será mostrada a atuação direta de K na política, inicialmente no Parlamento Europeu, e depois em posições ministeriais no governo francês, tanto em governos de esquerda como de direita. Uma vez dentro do círculo de poder, ele pôde melhor implementar sua ideologia intervencionista.

Redação

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