Era tudo inevitável…, por Antonio Delfim Netto

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Valor

Era tudo inevitável…

Por Antonio Delfim Netto

É perturbador e preocupante a reação da autoridade que se irrita quando alertada dos riscos que ignora (por conveniência ou miopia) e da possibilidade de ter de enfrentar sérias dificuldades (a tempestade perfeita, por exemplo), se não tomar medidas preventivas adequadas.

Não se trata de recusar as “receitas” da crítica (provavelmente tão contaminada como a sua, pelo viés ideológico), o que é razoável. Mas, pelo menos, deveria repensar o curso dos acontecimentos e procurar uma solução melhor dentro do espaço de viabilidade política e da coerência técnica de que dispõe.

É temerário repetir Felipe II, que ao responder ao duque de Parma quando este o advertiu dos riscos de enviar a Grande Armada para o Canal, sem que contasse com um porto seguro, disse-lhe: “Como tudo é por Sua causa, Deus enviará o bom tempo”.

Até o governo agora reconhece que houve ‘exageros anticíclicos’

O primeiro “cientista” social, Alexis de Tocqueville, cuja argúcia nunca foi superada, ensinou que os líderes (particularmente nas democracias) sempre descobrem “post factum” uma explicação determinística para o que aconteceu.

“Constroem longos raciocínios – disse ele – que constrangem e comprometem os homens. Para eles não é suficiente tentar convencê-los de como os fatos aconteceram. Mais importante é fazê-los crer que eles não poderiam ter ocorrido de outra forma”. Esse escapismo determinístico exime-os de suas escolhas, e o que é melhor, de toda a responsabilidade moral sobre o acontecido.

Diante da evidente deterioração do equilíbrio interno e das incertezas da situação externa, a presidente Dilma tomou uma medida sensata: alterou o curso da política econômica em 180°, sem impor mudança significativa no avanço da igualdade de oportunidades dos últimos 12 anos, que só foi possível, aliás, graças à cavalar ajuda externa que recebemos e que terminou.

Qualquer pessoa de bom senso – e agora o próprio governo – reconhece que houve “exageros anticíclicos que precisam ser corrigidos” para que o país recupere a energia necessária para o crescimento econômico com avanço da inclusão social.

Até os piromaníacos disfarçados de bombeiros sabem que a nova orientação do governo objetiva o crescimento inclusivo de longo prazo e que é puro oportunismo afirmar que o “ajuste fiscal é contra o emprego do trabalhador”, ou que é “a causa da estagnação da economia nacional”.

Obviamente, a crise não foi construída pelas novas políticas social e econômica, pois elas ainda não chegaram a ser postas em prática. Pelo contrário, a sua execução promete ser cuidadosa e bem calibrada para distribuir com equanimidade os seus inevitáveis custos.

O “ajuste” fiscal é uma necessidade, mas não é um objetivo em si mesmo. É apenas uma ponte que, bem construída e sólida, nos levará ao outro lado do rio, onde recuperaremos a nossa capacidade de crescimento com a expansão dos investimentos, do consumo, das exportações e a continuidade da inclusão social. É essa que dá relativa moralidade à eficiência dos mercados quando civilizados pelo sufrágio universal.

O importante protagonismo do ministro Joaquim Levy, e o seu sucesso, é condição necessária, mas não suficiente, para a volta ao crescimento.

Quanto mais cuidadoso e mais rápido ele for, maior a probabilidade de que possa ser acompanhado: 1) pela expansão dos investimentos com bons projetos executivos, leilões bem feitos que garantam a modicidade tarifária e encontrem financiamento, que é a missão do ministro Nelson Barbosa; 2) pelo ministro Armando Monteiro no esforço para mobilizar rapidamente a nossa indústria com evidente capacidade ociosa (mesmo com as dificuldades na oferta de água e energia), e devolver-lhe a demanda interna que lhe foi roubada pela desastrosa política de valorização cambial usada para combater a inflação. Num prazo mais longo, temos de recuperar a nossa posição nas exportações mundiais de manufaturados, com uma política industrial que aumente a nossa produtividade; e 3) pelo trabalho da ministra Kátia Abreu para continuar a estimular os setores agrícola, pecuário e florestal, que são as joias da economia brasileira e que têm sido a “salvação da lavoura”, com o apoio tecnológico, o crédito adequado e a expansão do seguro-safra.

Esses são os fatores do crescimento real que não poderão operar sem o preliminar “ajuste fiscal”, mas que, se não forem acionados simultaneamente com ele, reduzirão a probabilidade de seu êxito.

Hoje sabemos que o sistema econômico é muito complexo (gerado pela interação de agentes independentes que produzem uma certa auto-organização), mas sujeito a emergências insuspeitadas, imprevisíveis e destrutivas, que podem levá-lo ao colapso.

Quando o ministro da “propaganda” admite, em documento reservado, que “estamos no caos”, é bom que o governo e o setor privado introjetem a ideia que elas nos espreitam. É preciso apoiar a celeridade do “ajuste” para não termos que inventar no futuro a narrativa que a tragédia era “inevitável”…

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

12 Comentários

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  1. exageros evitáveis ?

    O equilibrio e a sobriedade do texto de Delfim Netto são marcantes. Entretanto há o fator “engenheiro de obra acabada” que permeia todo o artigo. Em 2012 ou 2013, assistindo à tragédia economica europeia , por exagero de ortodoxia, seria dificil imaginar que havia “exagero anticiclico” na economia brasileira. Somente consolidado o fato do não crescimento do PIB é que tudo ficou claro. Prefiro acreditar que a guinada da economia veio no momento e com a dosagem corretos.

    1. Ajuste com desvalorização é a tempestade perfeita nossa

       

      Marcelo Castro (terça-feira, 24/03/2015 às 13:03),

      Perfeito. Sem a desvalorização do real, o ajuste seria idiota. A desvalorização sem o ajuste exporia a economia a nova valorização do real.

      O ajuste com a desvalorização do real é a tempestade perfeita para o bem. O único problema é a desvalorização não está sendo do tamanho necessário.

      Clever Mendes de Oliveira

      BH, 24/03/2015

      1. tripé economico

        Clever, a desvalorização do real se deu no contexto dogmatico do tripé economico. Cambio flutuante é uma receita que Joaquim Levy não ousaria se contrapor. O governo Dilma tem desvalorizado paulatinamente o real, mas concordo com vc, é preciso flexiblizar ainda mais as regras.

  2. Lúcido, professoral, muito inteligente. . .

    Lúcido, professoral, muito inteligente este comentário do professor e ex-ministro da Fazenda e da Agricultura, Antonio Delfim Netto. É admirável que Delfim Netto escreva tão bem, já com seus 86 anos, quase 87 (01/05/1928. Meus parabéns, que Deus o conserve com essa invejável saúde para nos brindar  ainda muitas vezes com seus excelentes comentários.

    1. Comparação

      Interessante o Krugman ao ser questionado sobre a crise de 2008, prevista por ele, afirma que  as autoridades monetárias mesmo sabendo do que viria não conseguiriam evitar.

  3. Além dos diabinhos

    Na conjuntura política atual(Richelieu/PMDB e o Rei/Dilma não se entendendo) haja otimismo:

    Quanto mais cuidadoso e mais rápido ele for, maior a probabilidade de que possa ser acompanhado: 1) pela expansão dos investimentos com bons projetos executivos, leilões bem feitos que garantam a modicidade tarifária e encontrem financiamento, que é a missão do ministro Nelson Barbosa; 2) pelo ministro Armando Monteiro no esforço para mobilizar rapidamente a nossa indústria com evidente capacidade ociosa (mesmo com as dificuldades na oferta de água e energia), e devolver-lhe a demanda interna que lhe foi roubada pela desastrosa política de valorização cambial usada para combater a inflação. Num prazo mais longo, temos de recuperar a nossa posição nas exportações mundiais de manufaturados, com uma política industrial que aumente a nossa produtividade; e 3) pelo trabalho da ministra Kátia Abreu para continuar a estimular os setores agrícola, pecuário e florestal, que são as joias da economia brasileira e que têm sido a “salvação da lavoura”, com o apoio tecnológico, o crédito adequado e a expansão do seguro-safra.

    Esses são os fatores do crescimento real que não poderão operar sem o preliminar “ajuste fiscal”, mas que, se não forem acionados simultaneamente com ele, reduzirão a probabilidade de seu êxito

  4. “O primeiro “cientista”

    “O primeiro “cientista” social, Alexis de Tocqueville, cuja argúcia nunca foi superada, ensinou que os líderes (particularmente nas democracias) sempre descobrem “post factum” uma explicação determinística para o que aconteceu…”

     

    …E os analistas econômicos também!

  5. E as saúvas continuam…

    Enquanto isso, na Cãmara Federal e no Senado, 34 partidos se “ajuntam” para dar a tal governabilidade. Segundo o Senador Raupp -Rondonia, 27 agremiações esperam  por registros. Espantoso!!! A mãe da corrupção age e devora a moralidade. Haja ideologia!!!

    A corrupção é um fenômeno político e sociológico no nosso país. O professor Francisco Fonseca, em publicação de set/2011, Le Monde Diplomatique Brasil, coloca em evidência os mitos  da corrupção que encobrem seu entendimento como fenômeno político, com consequências sociais, políticas, econômicas e culturais. Enquanto não houver coragem de atacar esses mitos de frente, vamos ter que continuar convivendo com as saúvas, inclusive as pretéritas.

  6. Nunca imaginei que faria um comentário a favor ,mas…

    Delfim tem feito bons comentários desde os governos Lula e Dilma 1.Tem se colocado inclusive contra a corrente do mercado pelo mercado. Acho que ele poderia compor o  grupo de Barbosa pela sua visão  desenvolvimentista,apesar de ter feito parte  do período tenebroso da Ditadura , sempre se mostrou um desenvolvimentista.Também o Bresser Pereira poderia  ter lugar no Governo.

  7. O primeiro movimento é um falso despiste que não se vê

    Luis Nassif,

    Tenho a impressão que você não precisa fazer esses malabarismos de redação para manter o nível de atratividade do seu blog. Eu tenho insistido muito nesse assunto e hoje vi um post no blog de Brad de Long que vale a pena mencionar. Aliás se for permitido talvez o Ivan the Union faz uma tradução do post e ele pode virar post aqui.

    Trata-se do post “Internet Media and the Fall of GigaOm: The Honest Broker for the Week of March 15, 2015”.

    Os seus malabarismos começam no título deste seu post de terça-feira, 24/03/2015 às 09:54: “Finalmente, o governo Dilma começa a se mover”. Aguça a curiosidade de qualquer um. Mesmo para mim que lembrava que na campanha ela prometera mudar a política econômica e o futuro demitido ex-ministro da Fazenda não se furtou em debater com o Armínio Fraga a fazer a defesa do governo, e que, portanto, já ali não tinha dúvidas de que ela estava se movendo, o seu título ficou atrativo. O que será que ela fez que Luis Nassif conseguiu transformar neste post pensei eu!

    Bem, para esclarecer fui ler o post e veja como você o inicia, embora com você a frase viesse negritada, o que não farei:

    “No front político, houve a reorganização do conselho político da presidência, com a redução simbólica e elegante do Ministro-Chefe da Casa Civil Aloizio Mercadante do centro das articulações”.

    Ora, não se trata de um movimento governamental, mas de um passo de ballet.

    Salvo a proeminência de Michel Temer, o seu texto não chega a fazer um “pas de deux”, mas não foge do diapasão introdutório. E falando em Ballet, isso me lembra de trazer para as páginas do blog o texto de Mauro Rasi para o suplemento Mais da Folha de S. Paulo supondo Fernando Henrique Cardoso sendo derrotado em 1994. E talvez transcrevo o texto em um segundo comentário aqui neste post onde ele fica bem a calhar.

    E quase ao fim do post você diz que não cabe o questionamento em saber se o Plano de Joaquim Levy é recessivo. Não sou economista, mas poderia dizer que só os que não são Keynesianos é que podem imaginar que um plano que corta gastos não seja recessivo. E como já disse Richard Nixon imitando Milton Friedman: somos todos keynesianos agora, não há ninguém que não diga que o plano é recessivo. Só que o plano é recessivo porque ele precisa contrabalancear a desvalorização da moeda que não é recessiva e assim fica elas por elas. É como diz a presidenta Dilma Rousseff muda-se a realidade muda-se o Plano

    Eu abordei isso em comentário que enviei para Marcelo Castro junto ao comentário dele enviado terça-feira, 24/03/2015 às 13:03, para o post “Era tudo inevitável…, por Antonio Delfim Netto” de terça-feira, 24/03/2015 às 12:29, aqui no seu blog e com a transcrição de artigo do ilustre economista publicado no jornal Valor Econômico. Em meu comentário, que intitulei “Ajuste com desvalorização é a tempestade perfeita nossa”, considerei que a conjugação de corte de gastos com desvalorização do real é o que o Brasil precisava no atual momento. Reproduzindo minhas palavras:

    “Sem a desvalorização do real, o ajuste seria idiota. A desvalorização sem o ajuste exporia a economia a nova valorização do real”.

    E se é assim tão simples por que não se fez a desvalorização antes? Porque, dado o tripé e dado as condições externas, não se conseguia fazer muita coisa.

    Clever Mendes de Oliveira

    BH, 24/03/2015

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