Frente Ampla Progressista?, por Cesar Calejon

A ascensão do bolsonarismo no Brasil do século XXI promoveu uma reorganização da estrutura social brasileira, não somente nos âmbitos político e social coletivo, mas no cerne das famílias e das relações afetivas das amizades

Frente Ampla Progressista?

por Cesar Calejon

Um dos aspectos mais interessantes de estudar as Relações Internacionais no âmbito acadêmico é que, para avançar na disciplina, é necessário fazer uma reflexão sobre a “natureza predominante do ser humano” como ser político em determinada época e em certo local. Existem correntes de pensamentos e filosofias que foram sintetizados e interagem para descrever diferentes maneiras de enxergar “o funcionamento do mundo”. 

Algumas das principais, durante o curso da História, são o realismo (político), o liberalismo (político) e o construtivismo (político), este último bem mais recente (começo do século XX), apesar de possuir origens kantianas e hegelianas do século XVIII. 

De forma hiper-resumida, os realistas são as pessoas geralmente mais pragmáticas, que acreditam que as relações (entre estados ou pessoas) se produzem, quase que estritamente, com base no equilíbrio do balanço de poder que existe entre as partes e visando sempre aos melhores ganhos possíveis como frutos das interações. Os liberais acreditam que as principais forças desta equação são a igualdade e a liberdade entre as pessoas (liberalismo político) e o poder econômico, a negociação entre as partes (liberalismo econômico). Os construtivistas dizem que todos os aspectos contam, mas o que realmente importa são os valores das ideias preponderantes que norteiam determinada abordagem. 

Por exemplo: um realista tradicional escreveria um artigo sobre os perigos de uma guerra nuclear entre duas potências usando como base quantas ogivas nucleares cada parte possui e o que cada uma delas tem a perder com o conflito, basicamente. O liberal diria que a interação entre os mercados e as economias de ambas as nações pode evitar a guerra. O construtivista diria que todos estes fatores importam para o desfecho da questão, inclusive o tom que foi utilizado pelo realista para redigir o artigo sobre o tema. 

A dificuldade de formar um grupo realmente progressista e coeso reside no fato de que a sociedade internacional, assim como os parlamentares brasileiros no contexto doméstico, em linhas gerais e neste começo do século XXI, ainda são muito orientados pelos parâmetros realistas, herança de um legado humano histórico que vem evoluindo ao longo dos séculos. E o progressismo (legítimo) é uma ramificação do construtivismo político. Assim como o nacionalismo é fruto das premissas originalmente mais afinadas ao realismo. 

Exatamente por isso e a despeito da ascensão iminente do bolsonarismo que vinha se desenhando desde o impedimento de Dilma Rousseff, por exemplo, os partidos que se identificam à esquerda do espectro político (PT, PDT, PSOL, PCdoB, PCB, PCO etc.) não conseguiram (e ainda não conseguem) atingir o nível de coesão e entendimento necessários para formar uma única frente ampla e realmente progressista. Apesar de se considerarem do “campo progressista”, estes partidos também participam do jogo político, que é extremamente realista até este ponto. Ou seja, o ímpeto de se coligar ou atacar determinada figura ou partido muda de acordo com o equilíbrio de forças que se apresenta em certo momento. 

Após mais de um ano da eleição de Bolsonaro e apesar de todos os incêndios na Amazônia, do vazamento de óleo nas águas e praias do litoral brasileiro, dos assassinatos de lideranças indígenas, da evidente implicação do presidente da república na execução sumária da vereadora Marielle Franco e de desvios de recursos via candidaturas de fachada, as duas principais figuras capazes de unir a esquerda brasileira atrás da mesma bandeira continuam batendo cabeças. 

“Eu não me recuso a conversar com ninguém, mas não tenho nenhum apreço político pelo Lula, nenhum. Acho que ele é o grande responsável por essa tragédia econômica, social e política que o Brasil está vivendo, não tem grandeza, só pensa em si e virou um enganador profissional”, declarou Ciro Gomes (PDT), em entrevista ao portal Congresso em Foco, durante a semana passada.

O rancor do pedetista está relacionado ao veto de Lula para que o PSB o apoiasse na disputa presidencial de outubro de 2018. Em troca, Lula retirou a candidatura do PT em Pernambuco, pleito no qual o PSB batalhava pela reeleição do governador Paulo Câmara. 

Cálculos políticos, pragmatismo e realismo. Enquanto a esquerda brasileira não assumir um viés um pouco mais construtivista na forma como se articula e organiza, o Brasil seguirá, muito possivelmente, sendo governado por filosofias e propostas que são mais capazes de construir um consenso uníssono, seja este qual for, porque o progresso efetivo depende desta construção. 

Assim como Leonel Brizola (PDT), ex-governador do Rio de Janeiro, conseguiu encontrar um equilíbrio de forças com a Globo durante o caso Proconsult, em 1982, dizendo em entrevista ao jornalista Armando Nogueira que o Rio e a Globo são uma única coisa e que eles precisariam “conviver”, Lula e Ciro precisam estabelecer um diálogo mais produtivo, que transcenda as metáforas com a atriz Fernanda Montenegro e ataques iracundos e cheios de ressentimento. 

Desta forma, algumas pautas, tais como uma convocação de Assembleia constantemente autônoma, a revogação da Reforma Trabalhista e da Reforma da Previdência, a anulação dos Leilões do Pré-Sal, da venda da Embraer e da concessão da Base de Alcântara aos EUA devem estar entre as prioridades de qualquer administração que se diga à esquerda e progressista.

“Pode crer que para assumir essas responsabilidades de governo no Rio de Janeiro, nós vamos ter que trabalhar juntos, vamos ser companheiros de viagem, vamos ter que trabalhar juntos por esta comunidade, porque vocês aqui têm as raízes sobre ela, não é verdade? Então falar em Rede Globo e falar no Rio de Janeiro é como falar de uma coisa só”, afirmou Brizola nesta ocasião. 

A ascensão do bolsonarismo no Brasil do século XXI promoveu uma reorganização da estrutura social brasileira, não somente nos âmbitos político e social coletivo (trabalho, clube, mercado etc.), mas no cerne das famílias e das relações afetivas das amizades mais próximas. Melhores amigos brigaram. Tios e sobrinhas discutiram. Pais e filhos se desentenderam aos gritos. Foi um período muito conturbado para a sociedade brasileira em geral. Como estadistas legítimos, estes dois líderes precisam oferecer um ponto de apoio para que a sociedade brasileira possa cicatrizar esta cisão que nos dividiu de forma tão profunda. 

Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas e escritor, autor do livro A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI

Redação

2 Comentários

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  1. Como negociar com alguém que afirma que “o PT é o único partido do Brasil; os demais são siglas circunstanciais” ? Como negociar com alguém que coloca os interesses de seu partido acima dos interesses nacionais ? Como negociar com alguém que trata como inimigo a ser abatido aquele que foi seu leal aliado por muitos anos, e contra o qual usou de todo seu poder político, com ameaças, chantagens, negação de acordos políticos firmados, invalidação autoritária de decisões democráticas internas ? Como negociar com alguém que considera seu principal interlocutor um menino que precisa ser conduzido por suas sábias mãos ?
    Haja pragmatismo !
    Porém, Churchill, Stalin e Roosevelt formaram uma aliança que derrotou o nazismo.

  2. Caramba!
    A melhor síntese que encontrei sobre o cenário poltico nacional atual. Predomina mesmo a perspectiva realista e/ou a liberal. A construtivista só se ampliará com uma nação devidamente escolarizada e com um movimento social efetivo que cicatrize as feridas políticas. A ruptura social foi grande na micro e macro esferas. O que temos hoje ainda é um enorme rancor entre as partes ditas progressistas e seguimos pagando alto preço por isto.

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