Nem santo nem profano: somos pessoas, por Samuel Lourenço

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Nem santo nem profano: somos pessoas

por Samuel Lourenço

A saída temporária de alguns presos em regime semiaberto no período da Páscoa sempre incomoda os setores reacionários da sociedade que, consequentemente, ignoram um outro grupo do efetivo prisional, que é bem maior.

Enquanto preso em regime semiaberto, gozei de saídas temporárias. Eu já gozava de saída temporária para fins de estudo e, na ocasião, eu cursava Pedagogia na UERJ. Todos os dias úteis, me liberavam às 16h30 e eu era obrigado a voltar pra cadeia até 00h40. Fiz isso durante 3 anos. De um universo com mais de 10.000 presos em regime semiaberto, uns 1.000 devem gozar de saída temporária. Não tem esse negócio de semiaberto. Existe o semifechado, isso sim. Diferente do que afirmam por aí, a lei no Brasil pode até promover liberdade mas, na prática, a cultura é do encarceramento e da manutenção da prisão. É a cultura da tranca.

Mas antes do regime semiaberto, os presos ficam em regime fechado, e a “Semana Santa” é uma experiência bem complexa. Tenho como exemplo, no período que fiquei preso em regime fechado, pois era habitual, sob uma administração estatal laica, eu receber uma comida típica da data: Arroz, pirão e peixe. A galeria é inundada por um cheiro horrível de peixe com uma gosma de farinha com ervilhas. São poucos os que comem, a comida é horrível! Mas como dizem por aí: “deveriam comer pedra ou morrer de fome!”. Se temos o que comer jogamos fora, quando não temos reclamamos.

Ficar preso ou ficar solto depende da Execução Prisional de cada preso. Santo ou profano é uma adjetivação que tentam colocar em nossa singularidade. Não somos coitadinhos, mas também não precisam destituir a nossa humanidade. Uma vez preso, não somos obrigados a comer peixe por causa da data. Com permissão de saída temporária, não somos obrigados a ficar presos por conta do ódio, nem mesmo ser condenado a morte.

Somos pessoas, cidadãos, alguns direitos ainda nos alcançam. “Pergunta pra vitima se ela tem o direito de saída temporária do cemitério?” ; “a pessoa que ele matou não tem direito a segunda chance!” – dizem.

A morte é uma anulação violenta, reconheço, contudo, não é menos tão bruta quanto a prisão. E se o cemitério marca o local de anulação dos mortos, pasmem, a cadeia é o local de anulação dos vivos. As lágrimas de dor que inundam o rosto de uma mãe no cemitério é a mesma da mãe no dia de visita. Ninguém cria um filho para se tornar assassino. Cemitério dos vivos e dos mortos, qual dor merece ser evidenciada ou silenciada?

Entre Barrabás e Jesus, estão os condenados. A multidão ensandecida continua a mesma: escolhendo um bandido preferido para o ver solto, enquanto aspira mortes de outros. Com uma pequena observação: acho que hoje eles matariam todos. Na ocasião, três foram crucificados, hoje, eles crucificariam os três e apedrejariam o que acabara de ser posto em liberdade. Esse povo é ruim, entendem que “bandido bom é bandido morto”,então que o renascimento pascoal conceda aos tais um novo coração.

Samuel Lourenço Filho – Cronista, palestrante, egresso do Sistema Prisional, aluno de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social -UFRJ

Samuel Lourenço Filho

1 Comentário

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  1. Tenho lido seus artigos e

    Tenho lido seus artigos e acho importante tudo que nos traz aqui. Eh raro, com exceção de alguns livros, termos testemunhos em artigos de ex-condenados contando como é a vida de fato nas prisões.  Tem um filme francês de algum tempo de Jacques Audiard “Um profeta” que mostra a terrivel vida dentro das prisões francesas e de como se faz “carreira” ali dentro mesmo sem querer. Imagino que no Brasil não deva ser muito diferente, em algumas questões bem pior. Que tenhamos paz neste fim de semana pascoal.

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