O aborto legal e gratuito nunca esteve tão próximo da realidade: a “ola verde” chega novamente ao Congresso, por Camila Koenigstein

O tema do aborto jamais poderá ser dissociado de toda essa realidade de práticas violentas.

O aborto legal e gratuito nunca esteve tão próximo da realidade: a “ola verde” chega novamente ao Congresso

por Camila Koenigstein

Há séculos o corpo feminino sofre múltiplas formas de violência e cerceamento de liberdade. As razões para tal dominação remetem às bases patriarcais assentadas centenas de anos atrás.

O casamento, embora já não seja obrigatório em diversas culturas, ainda marca, em muitas sociedades, o controle masculino sobre os corpos femininos. Contudo, tanto a privação de direitos como as variadas formas de violência não circulam somente no âmbito privado, mas também transbordam para a esfera pública.

O patriarcado é uma criação histórica trabalhada por homens e mulheres em um processo que levou quase 2.500 anos para ser concluído. A primeira forma de patriarcado apareceu no Estado arcaico. A unidade básica de sua organização era a família patriarcal, que constantemente expressava e gerava suas normas e valores. Vimos como as definições de gênero influenciaram profundamente a formação do Estado.

Gerda Lerner

Entre todas as formas de controle sobre o sexo feminino, a gravidez é a que determina de maneira decisiva a total ausência de respeito pelo corpo da mulher. No momento em que ela descobre que está grávida, sua individualidade é completamente reduzida. Durante a gravidez pode ser exposta a violência obstétrica, mas, se decide pela interrupção e não tem condições econômicas para isso, pode morrer em clínicas clandestinas, como de fato ocorre com milhares de meninas e mulheres anualmente.

Na América Latina o tema da legalização sempre foi um grande tabu, precisamente por envolver estruturas políticas reacionárias e a forte influência da religião no âmbito social, o que sempre deixa a dúvida se de fato existe laicidade no continente.

Hoje, apenas em Cuba, Guiana, Guiana Francesa e Uruguai o aborto é legal e sem restrições, dentro das 12 primeiras semanas de gravidez.

É considerado ilegal, mas com restrições, na Colômbia, Chile, Argentina, Brasil, Equador, Paraguai, Venezuela, República Dominicana, Honduras, Bolívia e Peru.

No Haiti, Nicarágua e El Salvador o aborto é crime, não importam as circunstâncias em que tenha ocorrido. Em El Salvador, por exemplo, a pena por aborto pode ser de até 50 anos de prisão.

No México, um país federalista, cada Estado determina suas leis. Atualmente, só na Cidade do México o aborto é legal.

O tema é claramente o maior símbolo da dominação patriarcal, uma vez que homens abandonam com facilidade os filhos e a lei, de certa forma, os protege, sem questionar a conduta moral desses indivíduos. No âmbito legal, os homens não são obrigados a exercer sua paternidade. O máximo que ocorre é um juiz determinar o pagamento de uma soma mensal dentro das possibilidades do sujeito e determinar  visitas, geralmente quinzenais, e em alguns poucos casos a guarda compartilhada – de maneira ampla, a mulher exerce o cuidado do filho/a sozinha.

Dentro da nossa sociedade de falsas liberdades, o corpo da mulher pode ser vendido, alugado, abusado, mutilado e esquartejado, o que às vezes gera algumas notícias momentâneas, mas, passado o horror, a conivência com aqueles que seguem o mandato patriarcal continua, mostrando que a impunidade predomina. Não precisamos ir muito longe: esportistas, atores, empresários, acadêmicos, para não dizer quase todos os homens, têm algum tipo de abuso em seu “currículo”, mas são protegidos pela tessitura social de um continente arcaico.

Velhos jargões hipócritas, como: não sabia o que estava fazendo, eram meninos, o ser humano erra, não podemos radicalizar, e tantas outras expressões asquerosas são utilizadas com frequência para isentar os homens de suas responsabilidades. Na maioria das vezes, diante dos abusos diários nós nos calamos, o medo da perda de credibilidade, espaço, trabalho ou até da vida permite que os homens avancem cada vez mais nas esferas pública e privada, e a mulher fique atada ao temor ancestral da eterna punição.

O tema do aborto jamais poderá ser dissociado de toda essa realidade de práticas violentas.

Segundo determinados setores mais conservadores da sociedade, o feto é alheio ao corpo da mulher, portanto, não cabe a ela o direito de decidir por abortar, mesmo que depois esse feto “social”, que enquanto está no corpo da mulher é de domínio público, venha, após o nascimento, a ser esquecido e abandonado pelos mesmos indivíduos que condenam o aborto.

A “ola verde”

 Na dianteira do debate sobre a despenalização do aborto está a Argentina, país com forte tradição feminista. Com destaque para as avós da Praça de Maio que seguem lutando pelo direito à memória e justiça por seus filhos mortos e desaparecidos durante a ditadura até o presente momento, a Argentina é marcada pela luta das mulheres pela expansão dos seus direitos civis.

Em 2018, em pleno governo de Mauricio Macri, a Campanha pelo Aborto Legal e Seguro apresentou seu projeto de lei. Embora o cenário não fosse o mais favorável, as ruas foram tomadas por centenas de mulheres. Sob um frio intenso e chuva, veio a negativa e com ela a frustração, mas também a abertura ao debate e a presença do tema em diversos âmbitos sociais, o que de certa forma fortaleceu a campanha e seguiu levando milhares de mulheres às ruas, nas mais variadas ocasiões, um mar verde (o lenço verde é o símbolo da campanha) que nunca perdeu a esperança e se fortaleceu dentro dos muitos “feminismos” anualmente.

Após dois anos de longa espera, o projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez finalmente chegou ao Congresso.

Embora o estado sanitário de emergência em decorrência da pandemia de covid-19 tenha impossibilitado sua apresentação no início do ano, o atual presidente, Alberto Fernández, anunciou o cumprimento da promessa feita 1º de março, e anunciou um projeto elaborado pelo próprio governo, e não o divulgado pela campanha em 2018.

“El Estado debe proteger a los ciudadanos en general y, obviamente, a las mujeres en particular. En el siglo XXI, toda sociedad necesita respetar las decisión individual de sus miembros a disponer libremente de su cuerpo.”

Alberto Fernández

“O projeto segue as bases de 2018”, disse a ministra da Mulher, Gênero e Diversidade da Nação, Elizabeth Gómez Alcorta, após o anúncio do presidente, e pronunciou: “A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito acolhe a apresentação do Projeto de Interrupção Voluntária da Gravidez, elaborado pelo Poder Executivo Nacional, e espera que comece de imediato o seu tratamento no Congresso Nacional, juntamente com o nosso projeto, que foi apresentado no dia 28 de maio de 2019 com o apoio e mais de 70 assinaturas de deputados legislativos do todo o arco político e que ainda tem estatuto parlamentar”.

Embora a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito tenha um projeto próprio, não contempla alguns aspectos que o governo deveria levar em consideração”, afirmou Dora Barrancos, assessora de governo.

A ideia central é resolver a discussão do “aborto sim ou não” e trazer o debate para o núcleo da questão: o aborto deixará de ser feito clandestinamente ou será parte do sistema de saúde? Além disso, há outras extensões: o projeto abrange diferentes dimensões e perspectivas, deve incluir aspectos de punição que, por outro lado, existem em qualquer lugar onde o aborto tenha sido legislado”, acrescentou Barrancos.

O projeto apresentado pelo Executivo abrange também as idades: as gestantes menores de 13 anos devem dar seu consentimento, com a assistência de um dos pais, representante legal ou adulto de referência, para a realização do aborto. Dos 13 aos 16 anos, a decisão é individual, a menos que o procedimento a ser feito envolva sério risco à saúde da gestante. Nesse caso, aplicam-se os mesmos critérios válidos para as menores de 13 anos.

As equipes médicas devem garantir um tratamento digno e fornecer à pessoa informações suficientes antes da realização do procedimento. No artigo 4º, o projeto estabelece o direito de decidir pelo aborto até a 14ª semana inclusive, e além desse período, em caso de risco à vida ou à saúde, ou se a gravidez foi resultado de estupro.

Estabelece o direito de receber atenção pós-aborto, independentemente da forma como a intervenção se deu. Garante um prazo máximo de dez dias corridos a partir da solicitação para a realização do aborto e exige a formação do pessoal de saúde no conteúdo da lei e dos regulamentos que ela contempla.

O aborto deve ser coberto gratuitamente tanto no setor público como nos convênios particulares, incluindo os medicamentos necessários e terapias de apoio.

Uma das questões que geraram debate em 2018 foi a objeção de consciência, ou seja, ninguém pode ser obrigado a agir contra suas convicções.

“A Campanha não fez menção – nem poderia ter feito – em seu projeto de objeção de consciência. Não prevê essa possibilidade; e ele fez muito bem em não prever isso. Acontece que na elaboração que o Executivo fez tomou aspectos que haviam alcançado consenso nas discussões de 2018. Um desses consensos foi dar a possibilidade de objeção de consciência”, ponderou Barrancos.

O projeto contempla também a Educação Sexual Integral com políticas ativas que são protegidas por todas as leis atuais. Funcionários públicos, autoridades de estabelecimentos de saúde ou pessoas que retardam, obstruem ou negam o acesso ao aborto podem sofrer detenção de três meses a um ano. A pena máxima para as grávidas que desejam fazer um aborto e estão fora dos motivos protegidos pela lei também é reduzida: será de quatro para três anos, ou seja, essa ação torna-se passível de liberação.

A punição caso o aborto ocorra sem o consentimento da gestante é de três a dez anos, e a pena é aumentada para quem o faz sem intenção, mas onde se constata o andamento do processo da gestante.

É a primeira vez que o Poder Executivo apresenta um projeto com essas características, um ato político firme, que busca de fato obter a aprovação.

A possível votação dos deputados está prevista para 14 de dezembro. Também é importante ter em mente que ambas as câmaras são presididas por políticos pró-aborto (Sergio Massa e Cristina Fernández de Kirchner).

A cada ano, aproximadamente 38.000 mulheres são hospitalizadas por abortos mal realizados e pelo menos 3.000 mulheres morrem em lugares clandestinos, uma realidade que não pode seguir dentro de um Estado que se reconhece democrático e de direito.

O debate e a ansiedade estão presentes novamente, embora o contexto seja mais favorável e gere bastante esperança.

É esperado que o Legislativo atue de maneira consciente, respeitando os corpos femininos e o direito à autonomia e escolha.

Parte da sociedade argentina deseja um debate menos misógino entre os políticos, e que a discussão caminhe em consonância com os valores progressistas do presidente Fernández, que seja um passo efetivo de avanço e possibilite que a “ola verde” se espalhe por toda a América, levando as mulheres de outros países a lutar pelo direito de escolha sobre seus corpos.

Basta de retrocessos e violência, aborto seguro e gratuito é urgente.

Que seja lei!

Bibliografia

https://www.eltiempo.com/mundo/latinoamerica/paises-en-america-latina-que-permiten-el-aborto-230340

https://www.culturamas.es/2018/01/10/gerda-lerner-el-origen-del-patriarcado/

Camila Koenigstein. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica – SP e pós graduada em Sociopsicologia pela Fundação de Sociologia e Política – SP. Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina y Caribe pela Universidade de Buenos Aires (UBA).

Redação

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