O Brasil que espera, mas não deveria, por Paulo Endo

Passados alguns meses o resultado desse pacto, citado por Toffoli, foi um país mais desgovernado, um presidente abusador e incontrolável, instituições fragilizadas e o STF de novo nas cordas.

do Psicanalistas pela Democracia

O Brasil que espera, mas não deveria

por Paulo Endo

Estragon: Lugar encantador. (Dá a volta, caminha em direção

à boca de cena, junto à plateia) Esplêndido espetáculo. (Volta-

se para Vladimir) Vamos embora.

Vladimir: A gente não pode.

Estragon: Por quê?

Vladimir: Estamos esperando Godot.

Estragon: É mesmo. (Pausa) Tem certeza de que era aqui?

Vladimir: O quê?

Estragon: Que era para esperar.

Vladimir: Ele disse: perto da árvore. (Olham para a árvore)

Está vendo mais alguma?

Estragon: É o quê?

Vladimir: Um chorão, eu acho.

Estragon: E as folhas?

Vladimir: Deve estar morto.

Estragon: Chega de choro.

Vladimir: A menos que não seja época.

Estragon: Para mim, parece mais um arbusto.

Vladimir: Um arbúsculo.

Estragon: Um arbusto.

Vladimir: Um… (Recobra-se) O que você está querendo dizer?

Que erramos de lugar?

Estragon: Ele devia estar aqui.

Vladimir: Não deu certeza de que viria.

Estragon: E se não vier?

Vladimir: Voltamos amanhã.

Estragon: E depois de amanhã.

Trecho de Esperando Godot, de Samuel Beckett

 

Em agosto de 2019 o presidente do ministro Dias Toffoli fez uma confissão estarrecedora em entrevista a revista Veja (https://veja.abril.com.br/politica/dias-toffoli-o-stf-deve-oferecer-solucoes-em-periodos-de-crise/).

Segundo o ministro entre abril e maio do mesmo ano ocorreram diversas reuniões entre ele, o presidente da câmara e do senado e as forças armadas a fim de pactuar uma ‘pacificação’ entre governo, parlamento, judiciário e forças armadas. A razão disso era o risco de enfraquecimento do governo bolsonaro que, por sua vez, colhia insatisfação em diversos setores da sociedade e também entre integrantes dos 3 poderes. Nessa ocasião após mais de 3 dezenas de reuniões, segundo Toffoli, algumas providências foram pactuadas. Cito trecho da reportagem da Veja:

“Resultado: no Congresso, o projeto do parlamentarismo voltou à gaveta, a CPI da Lava-­Toga foi arquivada e a reforma da Previdência se destravou. No Planalto, o vice-­presidente Hamilton Mourão reduziu suas barulhentas aparições públicas, e o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo, um dos alvos das suspeitas de Carlos Bolsonaro, foi demitido. No Supremo, Dias Toffoli pôs a polícia nos calcanhares de grupos que pregavam ações violentas contra os ministros, adiou o julgamento que poderia soltar Lula e concedeu uma liminar que paralisava as investigações sobre o senador Flávio Bolsonaro. A Praça dos Três Poderes ficou, ao menos momentaneamente, pacificada.”

Toffoli na ocasião disse que era necessário fazer um acordo para que se mantivesse a estabilidade do país e que a função de um presidente do STF era também o de avaliar contextos e circunstâncias. Disse Toffoli:

“O Supremo deve ter esse papel moderador, oferecer soluções em momentos de crise. Estávamos em uma situação de muita pressão, com uma insatisfação generalizada. Mas o pacto funcionou.”

Toffoli estava errado. Não funcionou. Tal pacto serviu para bolsonaro acelerar sua máquina de guerra, colocar pessoas em risco e insuflar o país com sua única (anti)política homicida de armar a população para uma guerra civil iminente.

Nessa apreciação do ministro percebemos com rútila clareza que o papel do STF no Brasil não é necessariamente o da defesa da constituição, mas a da preservação dos poucos dispositivos que dão ao país uma aparência de democracia, entre os quais a preservação da própria existência de um STF.

Passados alguns meses o resultado desse pacto, citado por Toffoli, foi um país mais desgovernado, um presidente abusador e incontrolável, instituições fragilizadas e o STF de novo nas cordas.

Antes ainda, se bem lembrarmos a ação do STF durante a ditadura, não foi muito mais que leniente com os atos do governos que matava, estuprava, desaparecia com pessoas. A circunstância ali era complexa ante uma escolha simples: ou os membros do STF se faziam de rogados diante das atrocidades cometidas ou o olho da rua -ou pior- a cassação, como no caso do ministro Hermes Lima, aposentado pelo AI-5, e a perseguição seriam a serventia da casa.

Não se trata, obviamente de julgar indivíduos e atos individuais de coragem e covardia, mas de olharmos para a história de funcionamento do STF diante de crises gravíssimas e abissais que assolam o Brasil historicamente e, nesse particular, as perspectivas não são promissoras.

Como disse Sepúlveda Pertence: “É muito difícil julgar essa relação do Supremo com a ditadura. Como toda instituição humana, há momentos de grandeza e há momentos de fraqueza.” (https://exame.com/brasil/como-era-o-stf-na-ditadura-e-o-que-isso-ensina-sobre-o-stf-de-hoje/)

Mas como precisaríamos que esse fosse um momento de grandeza!

Retomemos: em 2010, durante a vigência do governo Lula, num momento em que aparentemente não havia a mais remota possibilidade de termos um governo Bolsonaro no poder. Naquela ocasião a suprema corte votaria contra a ADPF 153 ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil, cujo teor e os efeitos mais importantes, ansiados e defendidos por inúmeros sobreviventes, ativistas e grupos de direitos humanos no país era, simplificando,  suspender a anistia aos crimes comuns praticados por agentes do estado durante a ditadura e reinterpretar o termo “crimes conexos” e, portanto, reinterpretar a própria lei da anistia de 1979.

Tratava-se de uma luta, na ocasião, para encontrar os meios jurídicos para punir torturadores, assassinos e estupradores do passado, que à época se utilizaram de cargos públicos e fardas para violentar brasileiros e brasileiras. É bem possível que caso isso ocorresse se criaria uma onda simbólica, institucional e interpretativa que impediria que incitadores desses mesmos crimes no Brasil fossem agraciados, no futuro, com a impunidade e viessem a ser presidentes da república, por exemplo.

Mas os operadores do direito, uma vez mais, atuaram para fazer regredir a lei ao seu estágio tabu, contribuindo para que se criasse no país uma atmosfera temerosa, silenciosa e pusilânime sobre os crimes cometidos durante o período de exceção. Lições de Totem e Tabu.

Esse fato, de extrema importância no país, foi decisivo para que, anos mais tarde, um discurso de apologia à tortura ganhasse notoriedade pública, apoio e agregasse ativistas da barbárie. Esses que, secretamente e de maneira modesta e privada, sempre apoiaram tais práticas e que agora podiam admiti-las e defendê-las publicamente. Porque, a partir da chegada à presidência de um incitador de crimes tais discursos e práticas poderiam ser interpretados como direito à opinião. São esses os 30 por cento da população brasileira que reconhecem no atual presidente seu legítimo representante.

A decisão da suprema corte naquela ocasião, ao negar os argumentos da ADPF 153, jogava um balde de água gelada em, ao menos, duas gerações de sobreviventes, ativistas, ongs, pesquisadores, estudiosos e pessoas comprometidas com a erradicação dos restos da ditadura civil-militar de 1964 que ainda corroem a fraca e frágil democracia brasileira.

O desafio de hoje lançado no colo do ministro Celso de Mello, do Procurador Geral da República Augusto Aras e do Congresso Nacional é o mesmo, e o encaminhamento da abertura de inquérito para apurar crimes de responsabilidade do atual presidente corre o risco de não passar de uma enorme pantomima, e se converter numa pizza de sabor amargo que provocará indigestão nacional por décadas a frente.

No momento em que o governo é inteiramente comandado pelas forças armadas, dos quais o presidente depende figadalmente, assistimos os militares que compõem o governo submissos ao seu líder colocando em risco pessoas, instituições e a vida de brasileiras e brasileiros em todo canto.

A reunião ministerial exposta semana passada não trouxe explicitamente nada de novo, mas implicitamente aniquilou com quaisquer esperanças de que os militares poderiam, ou quereriam, representar qualquer castração aos arroubos do líder do governo que coloca em risco toda a população brasileira porque, e ele o disse inúmeras  vezes, sua única prioridade é proteger a si mesmo e aos seus familiares enquanto o país desmorona. O atual presidente não tem qualquer dúvida de que a prioridade do governo deve ser defender e enaltecer sua própria figura e proteger sua família e ponto final.

Nessa reunião vimos também, do começo ao fim, a destruição de qualquer expectativa de que os militares no governo atuariam em favor da constituição, quando houvesse um mano a mano entre a família bolsonaro versus a Constituição Brasileira.

Calados e obedientes os militares do governo ouviam absurdos sem interferir, eram indiretamente citados e ofendidos durante a reunião e serviam como alvo de broncas indiretas, acompanhadas de tapinhas nas costas, enquanto silenciavam. Eles abdicavam de qualquer protagonismo durante o ‘encontro ministerial’ cujo objetivo parecia ser apenas dar cenário para os arroubos de um chefe descontrolado, vaidoso e incompetente.

As manifestações mais barulhentas, fazendo ecoar o estardalhaço do presidente, vieram de civis e eles, sem farda, não teriam muito a fazer senão tentarem ser mais bolsonaro que o próprio bolsonaro. Além de bajular e fazer o que manda seu líder, eles não tem muito mais a oferecer. Guedes, Sales, Weintraub foram vistos, submissos, tentando convencer o presidente que sim, estavam com ele e fariam o que ele mandasse.

Nesse quadro triangular composto por sua família, boa parte dos militares muito favoráveis ao presidente, há os famigerados e ativos 30 por cento que jamais vão ceder.

Não podemos nos dar ao luxo de não compreender que são esses os que mantém, não apenas representantes como os bolsonaro no poder há décadas, como entre eles há muitos que seriam até mais radicais, cruéis e indiferentes à população de brasileiros e brasileiras se estivessem ocupando qualquer cargo de poder, seja como vereadores, deputados, prefeitos, senadores, etc.

Há no Brasil milhões de pessoas que apostam na violência, na crueldade e na eliminação de pessoas para dirimir conflitos e impor vontades, desde que sejam eles, é claro, que violentem, cruelizem e exterminem, e sejam eles que imponham suas vontades a outros. É isso que o atual governo lhes promete em sua política de armar a população.

Primeiro dá-se o exemplo: os bolsonaro fazem o que bem entendem sem serem limitados. Depois o instrumento hipnótico e identitário: ‘você com a arma na mão também será um dos nossos.’ Esse é o triângulo que mantém o governo em pé: exército, família insufladora de violência armada, os literalmente armados por definição (as forças armadas) e os que pretendem alcançar as armas para compor o grupo de violentadores que dominará o país ou que desejam apenas se submeter a eles.

Hoje entendemos que 30 por cento da população brasileira não abrirá mão dessa fantasia identitária em troca de promessas de igualdade, democracia e justiça.  Essa é a luta do presente que persistirá com bolsonaro, mourão, moro, dória, witzel ou qualquer um desses que têm grande apoio popular e, por isso, foram eleitos e recebem amplo suporte de parte da população brasileira.

O tempo da reação está chegando ao fim. E ela não virá para muitas/os que esperam as eleições de 2022; para outras e outros que esperam o apoio inarredável de 30 por cento cair e, para outros/as ainda, que aguardam a atitude grandiloquente do STF para por fim ao caos que já está instalado, aguardando apenas o passar do tempo para se consolidar.

Devemos contabilizar aí também aquelas/es outros que aguardam a prometida e impossível aliança das esquerdas no Brasil. Nada disso acontecerá num tempo hábil o suficiente para reverter o rolo compressor que avança resoluto e com um único método: ameaçar com a violência armada os insatisfeitos e os divergentes.

A cada dia o discurso dos militares que apoiam o governo engrossa em ameaças. “Consequências imprevisíveis”, “guerra civil”, “excesso do STF” são sinais visíveis deque os militares consideram legítimo ameaçar constantemente as brasileiras e brasileiros com o retorno de violências cometidas arbitrariamente quando estiveram no poder. Lamentável para o Brasil e vergonhoso para as forças armadas, mas é o país que temos e que precisamos defender porque nele vivem nossas/os filhas/os, netas/os e amigas/os queridas/os.

Encontrar um meio de voltar as ruas é não apenas urgente mas imprescindível e a resposta, se houver, estará na capacidade de mobilização da sociedade civil ora confinada.

A voz solitária que ecoou ontem, enquanto o atual presidente passeava e zombava da pandemia uma vez mais, alcançou todas as mídias e redes sociais dos que temem pela erradicação da democracia no Brasil, carentes de reação contundente ante o descalabro que nos assola.

“Vai trabalhar vagabundo”. Alguém grita.

Pois é pessoal, mas já é tempo de admitir que eles estão trabalhando direitinho, quem precisa encontrar um meio de fazer um trabalho eficaz somo nós.

Redação

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